31.1.05

PARA M.M.M.O NÃO ESCRITOR. GRATIDÃO NÃO SERIA A PALAVRA MAIS INDICADA.










Nasci trazendo comigo toda a esperança do mundo.
Cresci ouvindo minha mãe contar histórias sobre meu pai.
Um grande homem. Lutou pela igualdade dos homens na terra.
Não o conheci. Morreu enquanto eu ainda era uma pequena
semente dentro da barriga dela. Dizem que antes de morrer
ele sussurrou meu nome muitas vezes. Olhava para o vazio
e falava baixinho “Asclépio, Asclépio”. O oficial que
cuidava dele na cela não entendia nada. Gritava pra ele
falar mais alto o nome do comparsa e ele
não alterava o tom de voz. Continuava sussurrando
bem baixinho “Asclépio, Asclépio”. Desceram o cassete nele.
Coitado. Homem bom. Lutou pela igualdade dos homens na terra.
Morreu sem me conhecer. Eu o Asclépio.
O camaradinha, como seus amigos ainda fazem
questão de me chamar. Camaradinha Asclépio.
Dizem que foi esse seu último desejo.
Um mundo melhor. Horas antes de trazerem ele de volta
para a cela alguns de seus camaradas ainda puderam
falar com ele. Dizem que ele não falava de outra coisa.
Quero um mundo melhor pro meu filho. Só isso. Veja só.
Um mundo melhor pro meu filho. Imagine quanta grandeza
existia dentro daquela alma. Eu nem havia nascido e ele
já idealizava um mundo melhor para mim.
Lutou pela igualdade dos homens na terra.
Morreu sem me conhecer. Ainda outro dia,
no ponto de ônibus encontrei um de seus camaradas.
Olhou pra mim e disse: "É camaradinha Asclépio,
seu pai foi um grande homem. Idealista. Justo.
Brigou até o último minuto de sua vida pela igualdade
dos homens na terra. Um Jesus Cristo dos trópicos!
Um Gandhi tupiniquim! Que homem! Não tinha ódio no coração.
Apesar de tudo. Apesar das surras constantes que levou
dos policiais. Ele dizia que era tudo culpa da imobilidade social
e política do país. Eles são inocentes ele dizia.
São vítimas assim como nós. Vítimas." E os olhos do camarada
amigo do meu pai se encheram de lágrimas. Eu acredito.
Só posso acreditar. Nem quero pensar em outra hipótese.
Quem sou eu pra duvidar? Antes de embarcar no ônibus ele
ainda apontou pra cara do cara de boina estampado na
camiseta que eu usava e falou: "é camaradinha, passou,
foi-se o tempo, os homens e suas ideologias, estão mortos.
Todos! Não nos resta mais nada. Nada!"
Eu heim! Que coisa! Que falta de esperança!
E pensar que esse camarada foi amigo do meu pai!
Um homem que lutou tanto pela igualdade dos homens na terra!

30.1.05

PRESENTE.






Espero ansioso o lançamento do
livro de contos de Patricia Highsmith.
Sempre me impressionei por sua
capacidade de escrever sobre uma variedade
enorme de temas. Surpreendentes,
dos mais realistas aos mais fantásticos.
Tomara poder comprá-lo antes do carnaval.


29.1.05

CLOSER.

Fui assistir “Closer”, traduzido aqui como
“Perto demais”. Gostei mais do que pensei
que fosse gostar. Bem feito. Bem dirigido.
Julia Roberts bonitinha mais ordinária, mas
convence. Jude Law uma bobagem, funciona
no papel mas não me convence como ator.
Clive Owen, faz direitinho o macho traído e
além disso uma raridade no atual universo de galãs
que temos a disposição: maduro e masculino. Não
tem cara de menininho mimado, nem cabelinho espetado.
Natalie Portman eu não conhecia e gostei.
A trama é boa e tem diálogos acima da média.
O final não me surpreendeu, mas não por isso deixa
de ser realista. O casal que soube jogar e brincar
com a verdade e a hipocrisia resistiu.

O que não soube e quis desvendar tudo não agüentou.
Vale a pena ver.E ouvir. A trilha sonora é deliciosa.

28.1.05

BONEQUINHOS CHORÕES.








Eles choram, os bonequinhos. Nem todos
pelo mesmo motivo, mas inevitavelmente,
eles choram. Descubra a razão.
Acabo de postar na sessão CONTOS INÉDITOS,
mais uma estória pra você.
BONEQUINHOS. Divirta-se e faça comentários!.

REFLEXÕES E NADA MAIS.










Nesses dias em que minha bateria andou baixa
volta e meia lembranças do passado surgiram
do nada a superfície dos meus pensamentos.
Lembrei-me de pessoas que há muito se foram,
e de outras que ainda aqui estão e não mais dividem
suas vidas comigo. Percebi que ainda guardo
muito respeito e bons sentimentos por elas.
As lembranças, mesmo as não tão boas,
me fizeram repensar verdades que sempre considerei
intocáveis, ou até mesmo definitivas.
Confirmei então reflexões que há muito
tempo vinha fazendo a respeito do passado.
Ele não está longe ou distante como gostamos
de afirmar. Está mais próximo de nós do que pensamos.
Colado ao presente, e certamente ao futuro. E talvez
dos três tempos, seja o único palpável.
Impossível não brincar com as hipóteses do que
teria sido ou acontecido se. Um exercício constante
que nos ajuda a construir o dia a dia e também
a imaginar o amanhã. O tempo não para.
Corre aparentemente livre sobre os trilhos.
O garoto tenta alcançá-lo correndo logo ao
lado e é facilmente ultrapassado por ele.

Ficam as lembranças.Da corrida. Do tempo.
E da vontade de ultrapassá-lo.







26.1.05

PAZ OU COISA PARECIDA.








Diariamente leio todos os signos
do horóscopo. Não apenas o meu.
Costume que tornou-se vício compulsivo.
Disseram-me uma vez, que independente
de nosso signo, somos um pouco de todos os outros.
Típico aquariano, carrego bastante curiosidade dentro
de mim. Então depois de ler aquário, leio virgem
meu ascendente, e depois libra, já que a ascendência
em virgem acusa 29° e eu penso que talvez possa também
sofrer as influências de signo seguinte. Há semanas
o astrólogo do jornal Estado de São Paulo, pede para que
todo aquariano dispense a paz em nome do bem que deve ser
conquistado. Primeiro estranhei o recado. Depois achei
que ele estivesse sofrendo do mesmo tipo de vazio que
tem me afetado nos últimos dias: falta de criatividade,
vontade de falar, de escrever, de insistir nos assuntos.
Mas hoje, talvez influenciado pelas palavras do astrólogo,
comecei a prestar mais atenção em mim. Não sei de onde
isso vem, essa ausência de vontade de tudo, mas ela é real.
Parece com paz, pra quem está do lado de fora, mas
visto por dentro, eu sei o quanto não tem nada a ver com ela.
É aflitivo e angustiante, cansativo. Nada sério, penso eu,
mesmo porque, caso contrário eu não teria energia suficiente
para tentar resolver a “coisa”. Então é isso, vou ter que dispensar
essa sensação em prol de mim mesmo. E vou jogá-la fora mesmo.
Cansei de não querer nada e de não ter vontade de nada.
A marquinha que acusa o quanto minha bateria está carregada
ainda não alcançou meus joelhos, mas está próxima, está subindo.
Quando senti-la no meio do corpo haverá vida novamente dentro
de mim, e a paz que procure outra pessoa para se encostar.


22.1.05

MÁQUINA DE MOER.









Chove ininterruptamente lá fora.
Ocupo o tempo como sei e posso.
Leio, escrevo, olho através da janela,
assisto a filmes que por algum motivo
não pude ou não quis assistir antes,
caminho (mesmo sob chuva) e penso:
somos todos contadores de estórias,
só alguns fazem história, mas todos
voluntária ou involuntariamente fazemos
parte dela. Inevitável. Também o rumo
de nossas vidas. Nossa, porque pensamos
que ela nos pertence, ou que somos responsáveis
por ela. Mas será? Será mesmo?
Tenho muitas dúvidas. Inúmeras.
Assisto televisão por apenas algumas horas.
Impossível não me entristecer. Por tudo.
Pelas vidas perdidas, pela pobreza de idéias
,
pela divulgação do que há de pior.
Pobreza de espírito em meio a ofertas de
sub-submundos vendidos como o supra-sumo
do que há de melhor. Não sou chocólatra,
mas acabei com um saco de sonho de valsa
branco em poucos minutos. F.M. reclama
que vou engordar mais ainda. Fazer o que?
Talvez um confinamento. Uma câmara apertada
seria a solução para mim. Ajustada a meu corpo
para que ele não conseguisse se expandir.
Expansão também é um tema delicado.
Expansão e delicadeza. Palavras.
Apenas duas palavras que na maioria
das vezes caminham em direção opostas
.

21.1.05

A.Z. E A DESCOBERTA DO ÓBVIO.









Uma pequena luz se acendeu dentro de seu cérebro.
Primeiro fraca, quase insuficiente para ultrapassar
os limites de sua mente. Em seguida, auto-suficiente,
ela se encheu de energia e cumpriu sua função:
irradiou claridade e se espalhou por todo seu corpo.
A. Z. sorriu. Então era isso. O segredo era mais simples
do que imaginara. A ausência de uma única fórmula
era o próprio segredo. A.Z. sentiu-se leve e relaxado
como há muito tempo não se sentia.
Até o momento antes da pequena luz se acender
dentro de sua cabeça, sua vida havia sido
um shake longo de esforço mental com períodos curtos
de alegria e cansaço. Tudo por causa dessa busca
ininterrupta. Não havia sido fácil chegar até aqui.
E com certeza, não seria fácil continuar. Mas agora,
depois da descoberta, não haveria tanto sofrimento.
A receita estava dentro dele. Desde o início, e para sempre.
Agora era só aceitá-la, e nunca mais esquecê-la: um shake
longo de esforço mental, com períodos curtos de
alegria e cansaço.


20.1.05

TROCA-TROCA ALÉM MAR.

Mesmo depois de atravessar o
imenso oceano (partiu ontem do Porto
e chegou hoje de manhã em S.P.), o poema
sem nome do querido amigo
do blog http://www.livejournal.com/users/je_bois
chegou intacto. Retirado do fundo de seu baú
depois de ler o post Terreno Baldio.
Obrigado, por ajudar-me a enriquecer o meu blog.



Ontém,
dormi com as tuas cuecas,
na cabeça,
entaladas nas minhas pernas,
na boca,
amordaçado,
como quando me possuías,
ontém,
dormi com o teu cheiro,
e a noite
fundiu todos os odores.
Hoje,
pus a máquina de roupa a trabalhar.

AMIGOS DO PEITO.









Por volta das três horas da manhã abri
os olhos e não mais consegui adormecer.
Sonâmboliei pelo apartamento e me acomodei
na poltrona da sala. Ali fiquei em silêncio.
Por alguns minutos deixei-me alisar pela
brisa fresca que circulava ao redor do meu corpo.
Um recado. Era isso. Minh’alma queria
dizer-me alguma coisa. Fechei os olhos e
tentei auscultar palavras de dentro do vasto
peito da escuridão. Nada, exceto o silêncio.
Talvez na próxima madrugada, e, se
novamente não for possível auscultá-las,
então tentarei nas seguintes.
Escuridão e silêncio, amigos fiéis,
estarão a minha espera.

19.1.05

CHEIRANDO A PÃO QUENTE.

Acabo de postar mais um conto,
PARA SEMPRE NUNCA MAIS
conta a estória de Silvinha e Ferreirinha
e quem sabe também um pouco da sua.
Na sessão Contos Inéditos. Logo ao lado.
Clique para saber mais sobre os dois.

TERRENO BALDIO.









Hoje,
caminho inevitável,
rua sem nome,
castelo de areia,
cavalo sem rédeas,
trem fantasma.


Amanhã,
pedra sobre pedra,
fato consumado,
pirâmide de titânio,
cão adormecido,
nave espacial.

Hoje,
meus pés,
amanhã,
teus olhos.

Hoje,
intenções,
amanha,
a vida,
a morte,
a história.




17.1.05

ESPELHO D'AGUA.










- Este aí que você está me mostrando sou eu?
- Sim é você mesmo.
- Não pode ser. Nunca me imaginei assim.
- Pois é. Alguém já disse que é mais fácil reconhecer-se
no outro que em si mesmo.
- Oh, isso me parece tão difícil!
- E é. Antes de tudo é preciso ser um bom observador.
- Ah..., e depois?
- Depois? Depois, nada.
- Nada?

- Nada. Normalmente depois disso você prefere se calar.

15.1.05

UM EXEMPLO DE FILME RUIM.








Ontém fui assitir ao filme Alexandre.
Uma enorme decepção. Em todos os sentidos.
Da escolha do ator que interpreta o rei da Macedônia
até a trilha musical. Fraco, mal filmado, cansativo, cheio
de pudor, moralista e conservador. Melhor seria se não o
tivessem feito. É dificil passar credibilidade quando
somos obrigados a ver na telona um Alexandre parecido com
um desses superstars bregas loiros desbotados que tem ataques
histéricos o tempo todo e fazem caras e bocas como recurso dramático.
A música é velha. Não transmite sentimento de grandeza
e emoção. É preguiçosa e imprópria. Angelina Jolie, linda e
como sempre deixa a desejar. Impressionante mesmo, apenas
a maquiagem feita em Anthony Hopkins e duas ou
três cenas da batalha entre Alexandre e os
soldados armados com elefantes. Só. Três horas de
muita insatisfação. E irritação provocada por parte dos
espectadores que a cada cena de demonstração de carinho
(raríssimas e cheias de maneirismos e clichês) entre
Alexandre e Hephaistion, manifestava-se publicamente
rindo alto ou fazendo comentários do tipo, "ah era só o
que faltava", ou " o babaca é viado". O que dizer sobre
essas manifestações? Num país onde o parâmetro medidor
de bom gosto é o tamanho da bunda e do silicone
nos peitos, pensei que o loirão desbotado e musculoso
fosse fazer sucesso!!!

14.1.05

QUANDO EU ME CANSAR...








E quando eu me cansar,
serei então,
o homem
que sempre quis ser.
Simples,
sem desejos,
sem ambições.

Serei mais um
que atravessa a rua

a segurar o guarda chuva,
a sacola plástica do supermercado,
o filão de pão,
os cigarros,
a garrafa de aguardente.


Serei também,
um a menos que deixou de insistir,

e ainda,
um a menos
que deixou de existir.



13.1.05

MAIS UM PRA VOCÊ!!!

É isso mesmo. Mais um novo conto!
"Bobagem meu caro, bobagem" é o
nome dele. Vale a pena clicar em
Contos Inéditos, mesmo sendo
apenas uma bobagem
meu caro, bobagem.

12.1.05

MALDITA ESCALA.








Tenho a sensação de chegar
sempre até Lá com facilidade.
Depois, não sei, tudo parece estagnar.
Apertar a próxima tecla, seria o natural.
Nada mais fácil do que acompanhar a
seqüência de sons. Dó, ré, mi, fá, sol, lá...
Mas quando me deparo com ele, pronto,
não consigo. Repito o exercício,
dó, ré, mi, fá, sol, lá...
Começo a suar. O Si meu Deus, falo para
mim mesmo, é uma nota como qualquer outra.
É só apertá-la! vamos, pressione. Pressione!
Não sei. O Si me incomoda. É uma nota
condicional. Depois dela, vem o recomeço de uma
nova escala. Só depois dela é possível recomeçar.
Do contrário a escala estará incompleta.
Você pode até deixar de tocá-la. Pular.
Simplesmente pular. Sair do Lá e ir diretamente
ao Dó. Mas não é a mesma coisa. Fica uma sensação
de vazio, de inacabado. Falta o último degrau.
Falta o Si. Sempre ele, a condicionar o final de uma

seqüência ao recomeço de uma outra.

MIGALHAS.










A vida não cabe na palma da mão.
Não.
Há quem diga que sim.
Sim.
Há ainda aqueles que não dizem nada.
Nada.
Vivem. Do sim e do não.
Não.
Da caridade e do pão.
Pão.
Dos homens que
doam,
amor e compaixão.


11.1.05

QUANTA HONRA!!!

Após ler o conto Stardust, o
amigo do Je Bois mandou-me
este lindo poema que há tempos
escreveu. Pedi permissão para
publicá-lo aqui do outro lado
do oceano atlântico. E ele me concedeu
a honra. Saudades de Portugal.
http://www.livejournal.com/users/je_bois
Obrigado.


(sem título)

Já não o via há muito tempo.
Envelheceu.
Envelhecemos.
Mas mantém aquele olhar frio
sobre um pescoço de touro.
Já não o via há muito tempo,
nem ele a mim,
por isso olhámo-nos com prazer,
a deixar que os olhares lambessem
todas as alterações.
Já lá vão alguns anos.
Está diferente.
Estamos diferentes,
e o tempo não conheceu o desejo.
Mordi-lhe a nuca.
Ele assegurou-se que o meu

ventre não tinha dilatado.

NOVO CONTO!!!








STARDUST , conta a estória de
Ernesto e Marlene. O conto foi postado
de ontém para hoje, na madrugada.
Prepare seu Dry Martini, clique em
Contos Inéditos e boa leitura!

10.1.05

NEM EU, NEM VOCÊ, NEM NINGUÉM.





Vermelho — Quanto tempo ainda?
Verde — O que?
Vermelho — Quanto tempo ainda?
Verde — Não sei.
Vermelho — Pensei que pudesse me explicar.
Verde — ...
Vermelho — Parece interminável.
Verde — Não pense mais sobre isso.
Vermelho — Não consigo.
Verde — Tente dormir. Vamos, relaxe!
Vermelho — Não consigo. Por favor, responda-me.
Verde — Também não sei, é um segredo.
Vermelho — Armadilha.
Verde — Talvez.
Vermelho — Não suporto segredos.
Verde — Melhor assim. Essa é a chave de tudo.
Vermelho — ...
Verde — Vamos, tente dormir, já está quase clareando.
Vermelho — Graças a Deus! Graças a Deus!

8.1.05

NUANÇA.









Reconheço
a estampa
dos retalhos
grudada em sua pele.
Também tenho uma.
.
Apenas as cores são diferentes.



7.1.05

DE UMA CHEGADINHA.

Faça como eu,
pegue uma carona e
vá até o http://apeh.blogs.sapo.pt
O caminho, para andarilhos,
iniciados, heréges, crentes ou
simplesmente curiosos.

IL FAULT CHANGER LA VIE, TOUJOURS.









Ainda prezo mudanças,
transformo projetos,
transmito sentimentos,
redefino ideais.
Quanto a vida?
Bem, ela acompanha meus desejos.

BRAZUCAS.

O ano novo já começou.
Reclamações só serão aceitas
após o carnaval.
Até lá, vá costurando suas fantasias.

6.1.05

VIDAS SECAS.










Casarão.
Portas e janelas abertas.
Sob o batente. De joelhos.

Suja-imunda-fedida.
Olhos, nariz e boca melados.
Bicho encurralado.

O que mais você quer de mim?
O corpo?
É isso? É isso o que você quer?
Não basta já ter invadido meus pensamentos?
Quer também minha voz?
Meus ouvidos?
Minha genitália?
Braços e pernas, e depois?
E depois?
Vai fazer como todos os outros e
abandonar meu coração
coberto de gelo, batendo lentamente,
até que eu me esqueça para sempre dos dias
quentes que antecederam sua chegada?

Do outro lado da rua.
De pé. Altivo.
Olhos vermelhos.
Narinas abertas.
Lábios comprimidos.
Gosto de fel.
Tiro perdido.
Muros resistentes.

PROCURANDO O CARA.










Como encontrar a maldita casa, se naquele morro
nenhum barraco tinha um número?
Com um pacote na mão contendo ouro, mirra

e incenso, Baltazar discutia
com Belchior e Gaspar o jeito mais fácil de descobrir.
O primeiro argumentava que a solução seria contratar
um helicóptero e jogar panfletos com o nome

do cara sobre todos os barracos daquela favela.
O segundo era contra, alertava sobre os perigos que o
piloto correria. Afinal da última vez que alguém tentou
fazer a mesma coisa, o helicóptero foi atingido por

rajadas de metralhadoras e caiu sobre dezenas de
barracos matando muitas pessoas.
Gaspar, que ainda não havia falado nada, perguntou:
“Mas afinal quem é que a gente está procurando?”
E ao ouvir o nome Jesus, desanimou.
“Vocês são loucos? Nesse morro nascem todos os dias

pelo menos uma centena de caras chamados Jesus!
Tô fora, tô fora, se quiserem vão vocês sozinhos!”
Imediatamente Baltazar protestou.
“A gente não chegou até aqui pra desistir! Você não viu
o sinal? Os pequenos cometas atravessando o céu?
“Que sinal seu babaca! Aquilo era tiro, bala indo de um
lado para o outro.”
Belchior então interveio.
“Calma gente, calma, não vamos discutir por causa disso.
Eu sugiro que a gente de uma chegadinha naquele boteco
e beba alguma coisa até o dia amanhecer. Aí, o clima vai
estar mais calmo. Achar ou não achar o cara,

historicamente vai dar na mesma.
De quaquer maneira ele não terá vida longa.
Além do mais quem vai querer incenso e mirra?”

5.1.05

ATEMPORAL.

Tudo parece ter um tempo determinado.
O que vemos.
O que não vemos.
O que queremos ver.
O que não queremos ver.
O que podemos ver.
O que não podemos ver.
O que já foi visto.
O que ainda veremos.
Começo, meio e fim.

4.1.05

FRUTA DA PAIXÃO.










Brasil. Ano 1789. Do alto de uma colina,
Dom Francisco observa saudoso o oceano atlântico.
Entre picadas de insetos e o calor insuportável,
dezenas de imagens passeiam livres em sua cabeça.
Araras azuis, bichos preguiça, lambaris,
jaguatiricas e uma em especial: a da jovem índia nua,
portadora de um olhar ao mesmo tempo malicioso e inocente.
Visão tentadora, por ele, antes nunca experimentada.
Nem mesmo quando pousou seus olhos pela primeira vez
sobre uma tela de nu artístico.
Um ruído, vindo da mata, assusta Dom Francisco.
Ouvira falar sobre índios canibais naquela região.
Rapidamente recolhe seus pertences: chapéu, rifle,
cesta de mantimentos, o inseparável bloco
de anotações e o dicionário de bolso.
Novamente o ruído, agora muito próximo,
seguido de outro ainda mais forte.
Dom Francisco sente o arrepio atravessar-lhe as costas.
Gira nos calcanhares a procura do perigo, e quando levanta
os olhos para a copa de uma árvore, o encontra.
Nem onça, nem canibais, nem cobras gigantes.
Apenas um pequeno macaco. Um mico ainda mais
assustado do que o próprio Dom Francisco.
Morador ancestral daquela colina, ele se defende como pode.
Protesta contra a presença do intruso atirando-lhe o que
encontra pela frente: pitanga, jambo, banana, maracujá…






3.1.05

DER REGEN, DER MANN, UND DAS MEER.









A chuva,
o som,
os pingos,
o telhado.

O homen,
a chuva,
que forma poças,
que une grãos.

O amor.
Meu Deus!
A dor.

O homen
a chuva,
a lama,
gotas unidas,
que formam um rio
que desagua no mar.

A chuva.

O homen.

Os olhos secos
a desejar,

Um oceano
imenso
para navegar.



SORRISO-TROCO.








O dia amanhecera exatamente como ela
havia desejado antes de dormir. Céu azul,
o sol brilhando como um ovo estalado sobre a terra
e o mar assustadoramente calmo.
Deus, enfim, havia ouvido suas preces.
Aquele seria um dia especial.
Pensou até em fazer um bolo, comprar flores, enfeitar
a casa, mas decidiu não ceder a tentação de usar qualquer
tipo de artimanha que pudesse contribuir com o ritmo
natural daquele dia.
Alguma coisa cochichava dentro de sua cabecinha:
aquele seria um dia especial de qualquer forma.
Independente de seus atos. Independente dos fatos.
Escovou os dentes, tomou um banho demorado,
maquiou-se, e vestiu-se com o rigor de alguém
que se prepara para ir a uma festa.
Ainda era cedo quando botou os pés na rua.
De alguma maneira até o ar lhe pareceu mais leve.
Respirou fundo, atravessou a rua, e sorriu para a primeira
pessoa que cruzou o seu caminho. Em seguida, sorriu
para a segunda, para a terceira, para a quarta e para
toda a gente que encontrou. Independente de cor, raça,
sexo, cabelo, perfume, jeito de falar. Ai meu Deus!
Fazia tanto tempo que ela não olhava para a cara das
pessoas, que até havia se esquecido de como elas eram
diferentes. No fim do dia voltou para casa.
Cansada, porém satisfeita.
Os músculos ao redor da boca doendo de tanto sorrir.
Não quis nem assistir a novela. Entrou na cama e
agradeceu a Deus por aquele dia especial.
E fez um pedido. Que todo os dias fossem especiais.
Para todas as pessoas desse mundo.
Especialmente para àquelas que haviam lhe
virado o rosto enquanto sorria.
E também para aqueles, que como os últimos,
certamente um sorriso-troco lhes negariam.