31.8.09

FORA DE LUGAR II

Hoje voltando para casa, vi um casal se bolinando sob um cobertor imundo no meio da rua. Além da má aparência e da sujeira do próprio casal, o colchão, o que circundava os dois, a calçada, tudo ao redor era lixo e fedia. Indignação? Imagina! Fico indignado com outro tipo de coisa. Fumantes subversivos, leitores de poesia, gente que tem opinião própria, isso sim ainda consegue me deixar indignado.

Estou lendo dois livros que estão me dando muito prazer. Um deles é “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes” de um filósofo chamado André Comte-Sponville. Um livro que aborda temas bem incômodos. Moral, ética, compaixão, humildade, enfim, está mais para um livro de história do que para filosofia, porque tudo isso já faz parte do passado para muita gente. O outro se chama “O culto da emoção” de Michel Lacroix. São ensaios que falam sobre o novo homem (me divirto com essas classificações). Ensaios que tentam nos esclarecer por que somos o que somos hoje.

30.8.09

FORA DE LUGAR

Assim como eu não acreditei da primeira vez que ouvi o galo cantar, você também pode achar esquisito, mas desde hoje de madrugada tem um galo morando próximo do meu prédio. Tão logo o dia nasceu ele começou a cantar e a cantar e a cantar e ainda não parou. Peguei o meu binóculo para ver se descubro onde ele mora, e consegui visualizá-lo no quintal de uma das casinhas da rua sem saída que fica entre o meu prédio e a próxima rua. Apenas para esclarecer, moro praticamente no centro, além de cachorro de madame e maritaca, o resto da população de bichos do bairro é composta apenas de homens e mulheres. O bicho é enorme e está amarrado com uma cordinha no pé. Acho que vão comê-lo logo logo. Ou é uma encomenda para alguma entidade espiritual. No começo até gostei de sua cantoria, lembrei das minhas férias na chácara dos meus avós, mas agora está passando dos limites. Ele canta de tempos em tempos. Faz uma série longa da sua cantoria homogênea e monocromática e descansa. Depois de alguns minutos recomeça. Espero que alguém decida logo sobre o seu destino, porque a julgar por sua energia matinal, ele é incansável.

29.8.09

IMPRESSÕES

Quando reencontro alguém que durante algum tempo fez parte do meu cotidiano, mas que por algum motivo deixou de participar, demoro um pouco para atualizar a memória com os detalhes que compunham a personalidade do sujeito. O primeiro sentimento é de ah que bom te encontrar, depois a conversa começa, as perguntas, e os pedaços de lembranças daquele tempo que ficou para trás vão se unindo e pronto, a pessoa que está ali na minha frente, é novamente aquela com quem eu convivia. Nem sempre incompatibilidades ditam desencontros e distanciamentos. Gente se une e desune por inúmeras razões. Ontem no lançamento do livro do João Silvério Trevisan encontrei muita gente que não via há bastante tempo. Uns continuam exatamente iguais em gênero, número e grau, outros mudaram a cor do cabelo, outros ainda fazem questão de afirmar que mudaram e que sou eu quem não tenho sensibilidade para perceber a mudança, e outros mudaram tanto que nem com uma lupa eu os reconheceria. Mas a sensação que tenho depois desses reencontros é a de que por dentro todo mundo continua igual, raramente as pessoas fazem mudanças interiores que as modificam na essência.

Obs: me esforço para enxergar o próprio rabo, acredito que alguns devem ter tido o mesmo tipo de pensamento em relação a mim, é só uma constatação, não uma crítica.

26.8.09

SAUDADES DO MEU GATO

Hoje senti muitas saudades de um gato que tive quando morei na Áustria. Ele se chamava Grafit. Era um viralata que foi se aproximando de meu amigo e da casa pouco a pouco bem antes de eu ir morar lá. No começo ele vinha, comia a comida que o meu amigo colocava para ele e desaparecia. Depois, além de comer, começou a passar a noite na cadeira do terraço e durante o dia ele sumia. Repetiu esse movimento por alguns meses e quando percebeu que meu amigo era inofensivo resolveu ficar de vez. Depois de algum tempo engordou uns cinco quilos, seu pêlo passou da cor preta para o cinza chumbo e ele tomou posse da poltrona mais confortável da sala. Quando cheguei para morar lá, a casa já era dele. Me fez companhia por doze anos. Apesar de conviver com a gente, não gostava de ser carregado e nem que o colocássemos no nosso colo, mas amava ser penteado. Era teimoso. E desaforento. Quando saímos por mais tempo do que ele achava que podíamos ficar fora de casa, ele jogava toda a areia de sua caixinha de fazer necessidades para fora dela e a espalhava pela sala, depois nos dava as costas. Não queria conversa. Só fazia as pazes de novo com a gente quando sentia o cheiro de rim picadinho ou fígado que colocávamos no seu pratinho. Era um gourmet. Sabia escolher o que queria comer, e não adiantava ficar tentando abrir seu apetite com outras comidinhas, o que ele queria mesmo era rim de porco picadinho. No café da manhã ele adorava gema de ovo quentinha com pedacinhos de manteiga. Nos últimos sete anos que eu morei lá ele foi minha grande companhia. Sabia quando eu estava triste e quando eu estava alegre. Falava comigo através dos olhos. E começou a pedir colo. Bastava eu me sentar no sofá da sala para ele subir no meu colo. Um ano antes da minha volta, quando eu já começava a pensar em como ele se adaptaria no Brasil, ele adoeceu. Começou a ter dificuldades renais, depois perdeu os dentes e seu rosto adquiriu uma fisionomia de gente velha. Parecia que estava usando óculos. Passou a se sentar com freqüência na minha frente e a me fitar pó horas. Como se quisesse me registrar em sua memória. Eu conversava com ele e ele ronronava de volta ininterruptamente. Depois de um tempo começou a mancar e não querer comer e foi minguando e minguando até que um dia morreu. Fazia frio naquele dia e havia nevado muito, com a ajuda de um vizinho eu o enterrei sob um pinheiro canadense que ele adorava afiar as unhas. Não sei por que, hoje me lembrei muito dele. Espero que ele esteja bem onde quer que possa estar. Foi um grande companheiro. Desses que sabem escutar e te deixam ficar sozinho quando percebem que você não está para conversa. E um grande comilão, assim como eu.

25.8.09

ACORDES IMPRESSIONISTAS

Tenho uma réplica do quadro “O Beijo” do Gustav Klimt pendurado na parede em frente a minha mesa do computador. Hoje notei que parte dele se desbotou. A lateral que contorna o corpo do homem beijador clareou, a outra lateral, que contorna o corpo da mulher que está sendo beijada, continua com as cores de sempre. O beijo já tem mais de cem anos. Recentemente eu pude revê-lo no museu belvedere de Viena. Lá ele continua com todas as suas cores intactas, ao lado de outras obras do Klimt, e é bem maior do que a minha réplica. Pensei em algumas hipóteses que o levaram a decidir se rebelar contra mim: a) cansou de suportar meu olhar desejoso, b) desenergizou de tanto beijar a moça c) não agüenta a claridade do céu brasileiro, d) não suporta saber que eu sei que ele é uma réplica e por isso decidiu se suicidar e) nenhuma das razões acima citadas, o problema está em mim, que insisto em achar que ele está desbotando porque é uma réplica.

Estava dentro do elevador subindo para o meu apartamento quando a música “Pavane pour une infante défunte” do Ravel penetrou os meus ouvidos. O volume foi ficando mais alto à medida que eu me aproximei do meu andar. Quando o elevador parou, os acordes haviam invadido o hall de entrada. O filho do meu vizinho, que calculo tem no máximo doze anos, estudava essa peça que eu considero uma das mais tristes do repertório do Ravel. Tratei de enfiar logo a chave na fechadura e entrar correndo para fugir de seus tons fúnebres, não queria que ela me fisgasse, despertasse o “infante mélancolique” que há dentro de mim. Não teve jeito. Ele deve ter repetido a Pavane por mais de uma hora. Nessa mais de uma hora percebi que “O Beijo” está desbotando, que a metade do conto que eu havia começado escrever ontem a noite não serve para nada, que o último pedaço de bolo de laranja que a Maria fez para mim, e que no caminho para casa eu imaginei poder proustianamente comer tomando chá, havia mofado. Bem. Não. Sim. Talvez. Estou mais calmo agora.

24.8.09

ASAS

Foco. Ajuste. Enquadramento. Veja bem. São palavras que dentro de um contexto querem dizer a mesma coisa. Não gosto. De manter o foco. Me ajustar. Muito menos de me enquadrar. Sou uma ilha. Camaleoa. Na maior parte do tempo tento fazer parte do continente. Mas sou uma ilha. Idiossincrática. Não vou pedir perdão por isso.

Generalizações. Estratégias. Viver vem antes de sobreviver. Não confunda. O que abunda. Nem sempre é repetição. Pode ser uma variação de modos de vida. Sucessão. O que provoca sobrevida, mas não necessariamente significa sobreviver.

Entenda. Apenas. Sou parte, não o todo. Não me interessa. A cor. A língua. O grupo. Muito menos o valor. Parte. Engana. Desencana. Aparte.

Ai de mim. Dói. Ser. Não estar. Escutar. O vento. As ondas. Que arrebentam e recuam. Recuam. Para depois retornar. Recuar. Retornar. Recuar.

22.8.09

ENQUANTO VOCÊ ESTÁ PARADO E OLHANDO

Acordei com vontade de sair, caminhar. Não sei por que, mas a ordem interior era saia já de casa e vá passear. Fui para a região da Paulista, entrei na Cultura, comprei livros, fui almoçar com uma amiga e quando já me preparava para voltar para casa, dei de cara com meu tempo de faculdade. Uma passeata não muito cheia, algumas centenas de pessoas talvez, com cartazes de “Fora Sarney” e slogans “enquanto você está parado olhando, o Sarney está te roubando”. Karl Kraus e Elias Canetti ficariam decepcionados. Muita gente nas calçadas parava para olhar, mas não entrava para somar e participar, eu incluído na turma do muita gente. Estou tão descrente da política praticada no país e naqueles que nos representam que na hora que era preciso entrar para somar mais um naquela passeata fiquei paralisado e ela passou. Ouvi muita gente buzinar e outras que estavam ao meu lado faziam comentários positivos e tal, mas como eu, continuaram a fazer o que estavam fazendo. Acho que a gente se acostumou a ver o congresso como uma bolha, ou uma história fictícia, do gênero big brother. Já não sabemos o que é verdade e o que é mentira, mas não queremos nos envolver. Algo que não tem nada a ver com nossas vidas, a gente só fica assistindo, não interfere, um bando que está lá para ser mal falado, que a gente torce contra, ri, faz piadas. Mas a questão é que o que eles fazem lá tem diretamente a ver com as nossas vidas. Sai um malandro e entra outro que a gente pensa que pode ser melhor, mas ele acaba nos decepcionando, cria outras malandragens, assume uma postura quase idêntica a dos seus antecessores e assim, sucessivamente de decepção em decepção, a descrença se estabelece entre nós. Tomara que esse movimento cresça e se espalhe pelo país. Seria bom ver renascer a crença de que é possível participar como autor nessa obra de ficção, dizer quem fica e quem sai.

Passada a passeata entrei no cinema. Assisti ao filme “Gigante”. Não é um puuuuuuta filme, mas é um bom filme. Fala de possibilidades, do que podemos fazer quando queremos e do que acontece independente da nossa vontade. Um pouco monótono, mas bem feito. Acho que é isso, não me emociona.

21.8.09

RAW FOOD

Limpando gavetas e armários, encontrei antigos originais dos livros que já publiquei. Primeira versão, segunda versão, terceira versão, quarta versão, quinta versão, sexta... Enfim, muitas versões até eles se transformarem nos livros com capas e textos como são vendidos. Sem contar as inúmeras correções que fui fazendo quando escrevia. Enquanto fazia a faxina refleti sobre essa busca constante, e nem sempre prazerosa, que me acostumei a me exigir em quase tudo que faço. Não corro atrás da perfeição. É diferente. O que é perfeito para mim pode não ser para os outros. É insistir, insistir, insistir até me dar por satisfeito. Dificilmente abandono algo no meio do caminho. Muitas vezes me canso. Nesses casos, ainda consigo me perguntar se é cansaço o que estou sentindo ou se o que estou fazendo não é bom e não tem futuro. Se for só cansaço, paro e qualquer hora recomeço, se perceber que não tem futuro, esqueço.

Gosto do frio e da cor chumbo do dia que muita gente acha feio. Melhor para caminhar, comer, beber vinho, tomar café, ir ao cinema, ler e outras atividades que a maioria das pessoas que não gosta de dias assim também não gosta.

O apressado come cru é um ditado popular que por mais que você repita a uma criança, ela não tem nenhuma condição de compreender. Não consegue relacionar a pressa com seus urgentes quereres, nem o comer cru com algo que poderia ser ainda melhor se ela soubesse esperar. Depois, muito tempo depois, quando ela já não for mais uma criança e seus cabelos deixaram de enrolar em forma de cachinhos, a chance de entender o que aquele ditado, antes insistentemente repetido, quer dizer, aumenta. Para alguns pode ser tarde demais, porque mesmo sem os cachinhos só conseguem pensar em seus urgentes quereres.

19.8.09

ÍNDIO

Garantias. É o que todos querem. Não importa se a gente está falando de contratos, relacionamentos, gente ou coisa. Ninguém se dispõe a arriscar. Talvez essa vontade de “se garantir” sempre tenha existido, mas aonde foi parar a vontade de apostar, “ver no que vai dar”, tentar, acreditar no outro?

Ontem comprei um livrinho de contos do Gore Vidal, “Sede do mal”, Contos de decadência e corrupção. Contos que ele escreveu no final da década de 40 e início da de 50. Conheço muita gente que entorta o nariz para ele. Por tudo que ele representa, seu tom provocativo e esnobe, um homem que incomoda porque tem opiniões que divergem da maioria, e acima de tudo porque é um sujeito que pensa. Só que não dá para negar que ele escreve bem. Nesses pequenos contos a lógica que constrói sua narrativa está presente de forma clara, sem prejuízo dos ingredientes que preenchem as suas histórias. O livro tem um formato menor que o normal, de bolso, editado pela editora José Olympio. A gente começa a ler e não para mais.

Dia desses usei o metrô que faz o trecho Paraíso-Vila Madalena. Trem novo, cores novas, cheiro de carro novo e o que ainda me chamou a atenção foi a voz da locutora. Uma gravação padronizada que anuncia as próximas estações de forma clara. Gostei. Nos outros trens quem anuncia as próximas estações são os motoristas. E anunciam mal, muitas vezes a gente não entende o que falam, têm dificuldades para articular as palavras ou preguiça de dizer corretamente. Enfim, talvez acham que não tenham obrigação de anunciar. O usuário que pouco utiliza o metrô ou desconhece o itinerário acaba se confundindo. No Rio já saiu da forma assim, e a gravação é bilíngüe.

Da janela do meu apartamento consigo ver a Serra da Cantareira. Estou aqui no triângulo, Higienópolis/Sta Cecília/Centro. Hoje a Serra me parece muito próxima, dá a impressão de que se a gente quiser pode tocá-la. Anúncio de tempo ruim. Já reparei, quando a distância visual parece mais curta, o tempo vai piorar. Não venha me pedir certezas ou uma garantia do que estou alegando, é só uma aposta baseada na minha observação.

17.8.09

CLARO

Devagar aprendo a lidar melhor com o tempo e seus caprichos. No fundo acho que o tempo é o tempo e nada mais, os caprichos são uma invenção minha. Fazem parte dos últimos vestígios da minha imaturidade para lidar com ele. É que a coisa é mais complicada do que parece. É preciso fazer uso do próprio tempo para aprimorar e melhor se relacionar com ele. Um pouco parecido com tudo na vida. Com a história dos dois lados da mesma moeda ou a velha máxima de que tudo tem um lado bom e um lado ruim.

Estou me divertindo com o livro de contos “É claro que você sabe do que estou falando” de Miranda July. Não conhecia a autora, o livro me foi indicado pelo Gustavo Vinagre. A moça que é americana, além de cineasta é escritora e performática (achava que essa história de ser performático já tinha acabado, tinha ficado para trás junto com a década de 80, mas é assim que ela está descrita na pequena biografia na orelha do livro, talvez todos nós ainda sejamos um pouco, mas...). É muito boa. Um conto muito diferente do outro, mas todos, sem exceção são surpreendentes e ágeis, contam histórias com uma roupagem contemporânea e provocam um enorme prazer enquanto a gente lê.

15.8.09

AS TRAÇAS

Na sexta passada recebi um e-mail convite para a estréia da peça “As traças da Paixão” escrita por Alcides Nogueira. O e-mail dizia que eu deveria trocá-lo na bilheteria do teatro Augusta. No domingo esperei dar a hora de abertura da bilheteria e fui trocá-los. Queria ver a peça e prestigiar meu querido amigo Tide no dia da estréia. Assim que apresentei o e-mail na bilheteria a mocinha me disse que eu só poderia trocá-lo a partir da quinta feira, isto é, um dia antes da estréia. Reclamei que isso poderia estar claro no e-mail, a mocinha disse que não poderia fazer nada e eu fui embora contrariado. Voltei lá ontem, para pegar os meus ingressos, e a mesma mocinha me disse que não poderia trocá-los para a estréia porque não havia mais ingressos. Veja bem, a bilheteria abre as 15 horas, eu cheguei lá às 15:45 e não tinha ninguém além de mim para resgatar ingressos. Reclamei novamente e como fui incisivo, a mocinha me disse que ela só estava obedecendo ordens da produção e que a mesma havia dado ordens no domingo para que ela segurasse os ingressos e depois os trocou. Uma outra mocinha, muito atenciosa, se aproximou querendo saber o que estava acontecendo. Expliquei tim tim por tim tim e para resumir a história ela gentilmente telefonou para a produção que confirmou que os ingressos para convidados estavam esgotados, não poderia fazer nada e me ofereceu dois ingressos para hoje a noite. Lógico que vou. Quero ver a peça do Tide, que considero um dos melhores dramaturgos do país. Porém quero registrar minha queixa para a produção da peça. Se querem convidar, que mandem convites direto para os convidados, e não os obriguem a ir ao local para trocá-los e ainda encontrar obstáculos para fazer a troca. Convidem as pessoas que quiserem e peçam confirmação de presença com antecipação, é civilizado, simpático e o convidado se sentirá realmente um convidado.

13.8.09

LEVE MUITOS LENÇOS

Fui assistir “A Partida”, filme do diretor japonês Yojiro Takita. Quando cheguei em casa tentei me informar para saber sobre seus outros filmes, descobri que ele fez quase um filme por ano desde 1981. “A Partida” trata de um tema que quase todos nós temos dificuldade de lidar, a morte. Durante o filme eu senti todo tipo de reação, da repulsa ao nojo, do riso ao choro, descobri que mais gente tem as mesmas repulsas que eu. Algumas cenas do filme me fizeram lembrar de um prato que nunca mais comi desde a morte de uma tia avó quando ainda era menino, só porque ligo ele a morte, o cheiro e a aparência me viram o estômago. Acho um belíssimo filme, sensorial. Falar da morte, de perdas, de sentimentos que a gente pensa poder resolver só porque decidiu ignorar, não é fácil. Não sei se o roteiro é do diretor, mas é muito bem feito, conduz a gente com maestria da leveza de uma cena em que acabamos de rir ao peso de outra em que não conseguimos conter as lágrimas. Quase no fim, quando pensei que ele já tinha dito tudo o que queria dizer, ele segue adiante e finaliza o filme com uma habilidade incrível. Uma beleza de história, com músicas muito bem escolhidas e atores competentes. Recomendo. Só um porém, o filme não está rodando nos horários normais, está na sala dois do Belas Artes/HSBC às 14 horas ou às 18:30. Vale quanto pesa.

LONGO.

Ser ansioso é diferente de estar ansioso. Ser ansioso é um estado constante e permanente, e estar ansioso é temporal, tem começo, meio e fim. Normalmente a ansiedade do sujeito que está ansioso acaba quando o motivo que gerou sua ansiedade é satisfeito. Pode acontecer do motivo não se satisfazer, então a ansiedade se transforma em frustração. Já o sujeito permanentemente ansioso quase nunca está satisfeito, sua ansiedade nata gera outras que formam a base robusta que sustenta sua ansiedade crônica.

Comer pode ajudar a mascarar a ansiedade. Mas tem que comer muito e quase toda hora. Há quem prefira beber ou se drogar, ou fazer compras e desfilar com suas sacolas cheias pelos shoppings, ou ainda fazer sexo compulsivamente, os que vão morar em academias de ginástica, os que procuram nas religiões e crenças alternativas uma solução, os que querem reaprender a respirar, os que saem correndo pelas ruas e marginais e nunca mais voltam para casa, e os que se dizem convencidos de que o melhor lugar é aqui e agora.

Cabeça vazia é laboratório do diabo. Preenchê-la incessantemente pode ajudar, mas o diabo fica ali, espreitando e esperando a oportunidade. Ócio é bom, mas é coisa para quem já mandou o diabo há muito tempo para o inferno.

12.8.09

INCONSCIENTE GULOSO

Dizem que a gente sempre sonha. Não importa se a gente consegue se lembrar ou não, a gente sonha e ponto. Quase nunca consigo me lembrar dos meus sonhos. Seguindo o raciocínio de que sonhamos todas as noites, fico me perguntando por que quase nunca consigo me lembrar deles quando acordo. Seria um péssimo paciente para um analista freudiano. Teria que inventar sonhos para ser analisado. Outra pergunta que me faço quando sonho e consigo me lembrar, é de onde vem ou quem são algumas pessoas que participam deles, e eu nunca as vi ou ouvi falar delas. Como assim? Como é que alguém que eu nunca vi se intromete nos diálogos ou na paisagem dos meus sonhos? Deve ter algum diretor de atores ou coisa parecida que os chamou para trabalhar no meu filme particular sem me avisar. Essa noite sonhei com um amigo que assim como eu adora comer e descobrir novas receitas e restaurantes. Estávamos no terraço de algum lugar que eu sabia localizar-se na Toscana. Enquanto degustávamos os Chiantis e observávamos o pôr do sol ele foi emagrecendo gradativamente. Cada vez que ele reaparecia do outro lado da mesa ele estava mais magro. Foi emagrecendo até ficar muito parecido com ele mesmo quando jovem numa fotografia que conheço e que está pendurada no corredor de sua casa. Súbito surgiu um sujeito bonachão com uma dessas peças inteiras de prosciutto na mão e a colocou sobre a mesa. Começou a cortá-la em fatias muito finas e a nos servir. Comíamos e bebíamos como sempre fazemos, prazerosamente. Lembro-me de ter acordado no meio do sonho e de quase sentir o gosto e o cheiro dos alimentos que faziam parte do meu sonho. Para encurtar a história, acordei com uma sensação de ter acabado de sair da mesa. Não consegui sequer tomar o café da manhã. Uma sensação de saciedade me acompanha até agora. Não sei como essas coisas funcionam, nem como nosso organismo as metaboliza. Para prevenir tomei meu remédio de colesterol antes da hora que costumo tomar. Vou ligar para meu querido amigo e perguntar se ele gostou do que comeu e bebeu. Sonhos têm dessas coisas, a gente viaja sem precisar desembolsar um tostão, num fechar de olhos estamos do outro lado do mundo, falando línguas desconhecidas e até se relacionando com gente que nunca vimos. Uma amiga minha diz que são lembranças de outras vidas que ficaram gravadas no disco rígido da nossa alma. As lembranças reaparecem por algum motivo. Eu não tenho certeza de nada. Mas quando um sonho me leva para a Toscana e me inclui numa paisagem como a da última noite, e ainda inclui no pacote um saborosíssimo chianti, eu adoro sonhar. Ficou faltando apenas à sobremesa. Se houver uma continuação, uma espécie de sonho Toscana II, vou pedir ao bonachão que trouxe o prosciutto para que me traga um panna cotta. Afinal no sonho tudo acontece com muita facilidade, então ele pode muito bem dar um pulinho até a vizinha Piemonte e me trazer um docinho.

10.8.09

EXISTENCIALISMO

Melhorei da gripe que não era suína, mas nem por isso era menos porca. De molho o final de semana inteiro, vi alguns filmes em dvd, e acabei de ler o livro do Murakami. Apesar do início cheio de vícios, gostei da história e de como ele a conduziu até o fim. Não é fácil escrever, quem fala o contrário está mentindo. E acho que ler também exige um pouco de maturidade. Não sei bem se é maturidade a palavra certa, mas percebo que hoje tenho mais paciência/preparo/disposição para ler alguns livros que antes achava que eram chatos ou demoravam a me fisgar. Insisto mais um pouco antes de desistir, e alguns vingam, acabam me pegando.

Hoje dentro do vagão do metrô, ouvi duas moças conversarem. Uma dela falava muito mais que a outra. Incentivava a amiga, que pelo o que pude perceber estava meio deprimida, reclamava da vida. A amiga/terapeuta tentou de todos os jeitos levantar a moral de sua amiga/vítima. Argumentou. Ouviu. Argumentou. Ouviu. Depois num rompante genial, não sei se com conhecimento de causa ou por uma dessas tiradas “que vem de dentro” falou: “ o importante é você fazer alguma coisa com o que você está falando que a vida faz com você, e não ficar reclamando da vida o tempo todo”. Genial. Acho que seu argumento é muito próximo do que Sartre já disse antes. Depois disso a amiga se calou. Parou de reclamar e ficou olhando para o vazio (cheio) do vagão. E eu saí de lá com uma curiosidade insuportável. Queria tanto saber se a amiga/terapeuta leu isso em algum lugar ou tirou de dentro da barriga.

5.8.09

DIFERENÇAS GRITANTES

A gripe também veio me visitar, não a suína, a normal mesmo, mas é tão forte e chata quanto sua prima mexicana. Como não tenho disposição para nada a não ser para me deitar, aproveito para ler o que tenho em mãos. Gosto de intercalar a leitura, quando um livro é muito denso ou mais difícil de ler, alterno com outro mais leve. A não ser que gosto tanto do que estou lendo que não consigo parar até terminá-lo. Na semana passada resolvi que faria a releitura de “No caminho de Swan” do Proust, romance que não é nada fácil e requer dedicação e tempo. Às vezes interrompo sua leitura faço um chá e pego o “Após o anoitecer” do Haruki Murakami. Dois livros que não tem absolutamente nada a ver um com o outro. Estilos e linguagens diferentes, tempos e narrativas que se estranham. Mas independente dessas diferenças, a qualidade do escritor e do tradutor fica exposta, ainda mais quando a leitura é feita simultaneamente. Não gosto de comparar e nem acho justo, já que um escritor escreve de um jeito e outro de outro jeito. Não sei se é a tradução do Murakami, ou sua forma narrativa, fato é que ao contrário da tradução impecável feita pelo Mário Quintana para o livro do Proust, há alguns diálogos e trechos do livro do escritor japonês que são irritantes por causa da repetição e da freqüência com que se explica ao leitor quem está se dirigindo a quem. Na página 77, por exemplo, há um diálogo do tipo bate bola que é assim:

- Que legal! Exclama Komugui
- E não é que isso é possível? – diz koomugui, admirada.
- Que prático!......................... – diz Komugui.
- Tá vendo só?........................ – aconselha Kaoru.
- O céu sabe, o inferno sabe.... – conclui Komugui.
- Realmente, o melhor a fazer é... – concorda komugui.

E assim o diálogo prossegue, subestimando a capacidade do leitor de compreender quem está falando o que para quem. Qualquer revisor, ou editor sabe o quanto isso empobrece a qualidade do texto e atrapalha a leitura. Ouvi muita gente falar bem do livro e me interessei. A história é boa, os perfis dos personagens são bons, modernos e blá blá, mas assim não dá, sinto muito, para não dizer da quantidade de “nés” que têm no livro. “Não faz mal, né?”

Acho que vou abandoná-lo e começar a ler o novo livro do Santiago Nazarian, “O prédio, o tédio e o menino cego”. Ainda não comecei, mas tenho certeza que, independente de gostar ou não de sua história, não encontrarei esses obstáculos pela frente.

3.8.09

EM MUTAÇÃO

Fui ver “A Deriva”, filme escrito e dirigido por Heitor Dhalia. Bem escrito, bem dirigido, bem editado, bons atores, boa história. Um filme totalmente diferente dos seus dois outros filmes, “Nina” e “O cheiro do ralo”, que, aliás, já não tinham nada a ver um com o outro, a não ser pela qualidade e competência com que foram feitos. Anos atrás, quando Miriam Muniz ainda estava estudando a possibilidade de fazer a protagonista do “Nina”, comentou comigo que havia sido convidada, ainda estava em dúvida, não conhecia o diretor, havia ouvido dizer isso e aquilo. Tempos depois quando nos encontramos novamente e ela já estava filmando, disparou um “ele é bom para car....., esse f d p tem futuro”. Acho que sua previsão se concretizou. E melhor ainda, porque são filmes que fogem da onda hiper realista dos que foram feitos no Brasil na última década. Com algumas exceções, quase nenhum diretor brasileiro fez filmes cujos temas abordassem assuntos que não necessariamente falassem da triste e miserável situação social do país. E quase sempre pela mesma ótica e pelo mesmo lado, o que entendo, já que desde sempre a grande maioria da população sempre foi ignorada e relegada a marginalidade. Mas também não é possível ignorar que existem vários brasis dentro desse imenso Brasil. E “A Deriva” é um filme que retrata mais uma camada desses brasis, que também existe e que dialoga com aquela relegada à marginalidade e exaustivamente retratada. Acho que o cinema brasileiro precisa de mais Heitor Dhalias. Mais gente retratando o país por outros ângulos. Não é preciso repetir fórmulas que deram certo para dar certo.

Mais e mais idiotas consumidores compulsivos surgem a cada nova geração de aparelhos providos de tecnologia múltipla. Na sala de cinema, duas moças se sentaram duas ou três poltronas longe de mim. Cada uma delas tinha um..., um..., celular? Mp3? 4? Palm qualquer coisa? Enfim, um troço com uma telinha onde elas podiam assistir televisão. O aparelho tinha antena que elas puxavam de um lado para o outro para melhorar a imagem e o som que fazia um chiado de radinho de pilha. Mexeram em seus brinquedinhos por um bom tempo antes do filme e eu imaginava que elas desligariam antes do filme começar. Bem, o filme começou, e eu já estava nervoso porque elas não desligavam seus aparelhinhos e eu não queria ter que ser mais uma vez o educador de moçoilas antenadas, até que um senhor sentado atrás delas pediu que elas os desligassem. Diante da firmeza com que o pedido foi feito, elas desligaram imediatamente. Mas precisa pedir? E tem que assistir televisãosinha dentro da sala de cinema?

1.8.09

RECOMENDAÇÃO

Fui a estréia de “Antes do Café” de Eugene O´Neill no teatro Ágora. Não conhecia a peça, por isso não tenho como fazer comparações porque não vi nenhuma outra montagem, mas gostei de ver três atrizes representando a mesma personagem. A peça foi originalmente feita para ser um monólogo, nela a Sra. Rowland fala sozinha, o marido está presente mas não tem voz. Celso Frateschi, diretor da peça, deu três vozes à mesma personagem. Dessa forma muitas vezes elas repetem o texto sincronicamente e repetem os mesmos movimentos numa coreografia afinada, porém cada uma das atrizes tem seu próprio gesto e voz, e o efeito para quem está assistindo é muito bom. A repetição não é cansativa, ao contrário, pelo menos para mim, teve um efeito demonstrativo de como o mesmo sentimento pode ser expresso e manifesto de diferentes maneiras. E durante a peça eu fiquei pensando em como um texto simples pode ser intenso. Não acho os berros necessários, quando algumas vezes as mulheres gritam o nome do marido, seja qual for o motivo, não funciona. Acho até que provoca uma graça que o texto não pede. Cenário super enxuto, coreografia das Sras. Rowland afinadíssima, figurino perfeito, boa música.

Mudando de assunto. Desde a conquista da primeira medalha de ouro César Cielo passou a ser chamado de Césão pelos jornalistas. Precisa disso? Não dá para continuar a chamá-lo de César Cielo? Não dá para tratá-lo apenas com o respeito que ele merece sem querer parecer íntimo do cara ou sei lá mais o que?