24.2.10

NEVE DE ISOPOR E LÁGRIMAS DE CROCODILO

Você já se emocionou assistindo uma ópera? E dentro de um museu? Diante de um Van Gogh? Caravaggio? Michelangelo? Folheando um livro de fotografias? E no meio da leitura de um romance? Poesia? Se a resposta para todas as minhas perguntas foi negativa, então você não é humano, é uma barata e tem aparência de humano.

Ontem me emocionei várias vezes enquanto assistia La Sonâmbula, ópera do compositor siciliano Bellini. Mesmo sabendo que é tudo de mentirinha e que o que estou assistindo se enquadraria perfeitamente num escaleto de qualquer novela barata, não consigo me desconectar quando o conjunto da obra é bom. Nesse caso cantores, cenário, direção, música. Então sigo a história banal que já sei decor e salteado e conheço começo, meio e fim e torço pela felicidade de Amina, fico com raiva da Lisa e sinto pena do Elvino. Tudo é muito simples e acontece num passo de mágica nos livretos de ópera, sem nenhuma preocupação com o perfil psicológico dos personagens (exceto nas obras de Wagner), ou com o aspecto temporal. Os personagens amam num minuto e odeiam no outro. Fazem juras de amor numa cena e na próxima estão se matando. E eu acredito em todo mundo, do conde ao cartorário, na mãe da sonâmbula e também na neve de isopor. Na montagem da Bastille (produção vienense de 2001) que fui assistir, o diretor suíço Marco Marelli coloca Amina sobre uma mesa (que estava sendo usada na cena do casamento) quando ela está sendo julgada e acusada de traição por Elvino. O palco foi inclinado para que todo o publico consiga ver todos os detalhes com profundidade. Deitada feito um pedaço de carne sobre a mesa, ela é humilhada e desacreditada depois de ter feito juras de amor, e trocado seu único patrimônio ( o amor) por todos os bens e posses de Elvino. Inocente, foi flagrada por todo mundo no quarto do conde depois de uma noite de sonambulismo. O coro fala pelo povo, duvida da integridade da mocinha. Eu mais uma vez estou em desacordo com a maioria. Sei que ela é sonâmbula e não teve intenção alguma (apesar de achar que ela poderia ter sido um pouco mais firme nas investidas do conde logo no começo), e espero até a última ária para soltar a respiração. Não estou nem ligando se você acha que sou bobo ou cafona. Gosto de entrar na história e ser conduzido por ela até as lágrimas. Assim como gosto de imaginar o artista enquanto fazia tal quadro ou escrevia seu romance para me aproximar do que estou vendo. Para mim tudo se confunde, o autor, sua vida e obra. Não consigo desassociar uma coisa da outra, mesmo porque sei que enquanto ele estava produzindo o que hoje me emociona, sua emoção estava toda concentrada na ponta de seu pincel ou caneta, ou dos dedos que hoje tocariam as teclas do computador. Não acredito em artista que diz que uma coisa é sua obra, outra é ele. Sim, acredito que ele possa criar algo completamente diferente do que entende como seu mundo, representar uma realidade fictícia nada parecida com a sua, mas isso não quer dizer que sua emoção e inconsciente não estiveram presentes.

Comprei um ingresso caríssimo com antecedência para ver o soprano Natalie D’essay. A moça adoeceu e foi substituída por uma soprano da Costa Rica chamada Iride Martinez que deu conta do recado muito bem. Fui avisado por e-mail no dia anterior. Organização do Opéra Bastille, que toma nota dos nossos endereços e telefones na hora da compra do ingresso. Apenas nos gestos, alguém deveria avisá-la que não precisa exagerar, basta cantar e se movimentar normalmente, nada de mexer a cabecinha e os braços como se fosse uma marionete. Mas ela ainda é jovem, tem tempo para aprender e vai longe com sua bela voz.

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