29.3.10

RECOMEÇANDO

Cheguei e tudo continua igual, como se eu tivesse tirado uma soneca de meia hora e acordado. O calor da cidade é o único desconforto, mas também continua intenso como antes de sair de viagem. As coisas estão no mesmo lugar, as pessoas continuam sentadas esperando que algo mude suas vidas e inventando desculpas para não terem que encarar seus próprios medos. Se dizem surpresas com a coragem que tenho para provocar inquietudes em minha própria vida e não temer mudanças. Não provoco nada, só não consigo me sentir satisfeito quando começo a perceber que minha vida está ficando monótona, e também temo. Mas a rotina me sufoca, me tira o prazer, e aí a coisa fica insuportável. Sentar e escrever é um prazer, mas é também um peso. Tenho que sair e caminhar em busca de novas informações e vivências. Prefiro não ficar esperando, me antecipo, vou ao ataque. Entendi que se não coloco em prática o que está dentro da minha cabeça nunca saberei se o que imaginei poderia dar certo. Pode dar errado, sim. mas acredito que muitas vezes “dar errado” também é dar certo de outra forma. Tenho horror à gente acomodada, que prefere certezas e quer garantias de que tudo será o mais seguro possível. Então não reclame que a vida é sempre igual e que as oportunidades nunca batem a sua porta, elas batem sim, mas você tem tanto medo que não permite que elas entrem.

25.3.10

OURO E TERRA

Na segunda me despedi da Bastille, com casa cheia, fila de desesperados para comprar ingressos de última hora, tudo isso para ver Das Rheingold, a primeira das quatro obras que compõe o Anel de Libelungo (na verdade Rheingold era o prólogo do Anel e só depois foi transforma em livreto). Fiquei impressionado com a quantidade de admiradores de Wagner, gente com quem conversei antes e depois da ópera. Com exceção do maestro, todos os que encabeçaram a produção são alemães. Duas horas e meia sem pausa, música de primeira qualidade. Diga o que quiser, mas acredito que muita gente diz que não gosta de Wagner sem nunca ter ouvido qualquer uma de suas obras. Dentro da minha limitada compreensão musical, consigo diferenciar uma obra fácil de uma mais difícil, mas não qualifico o que não consigo entender como de má qualidade só porque não consigo compreender. A música de Wagner é difícil, mas muito boa. Para gostar de suas obras não basta botar um cd e ouvi-las enquanto a gente prepara um espaguete carbonara, é preciso mais do que isso, tem que ter um pouco de interesse e disposição para ouvi-las sem preconceito, ler um bocadinho de história e se interessar pela mitologia. Além disso acho que conhecer o homem Wagner, sua época, seus sonhos e o apoio recebido pelo Rei Ludwig II e o tempo que ele consumiu perseguindo suas composições fazem parte do pacote. Não apenas suas músicas, mas também sua vida particular. Não escuto toda hora, mas de vez em quando preencho minha cabeça com seus devaneios. Segunda foi assim, uma noite densa e prazerosa ao mesmo tempo.

Último dia do curso. Temperatura quase alcançando os 20 graus, céu azul. O Jardin de Luxembourg está vivo, as árvores e arbustos começaram a competir para nos mostrar qual delas vai florir primeiro, e na hora do almoço já não é possível encontrar um banco tão facilmente para se sentar e observar a banda passar. Ai que delícia, caminhar vestindo apenas um paletó, sem casquette nem xale, o sol na cabeça.

O sentimento é o seguinte: ficar e se deixar enraizar. Je voudrais m’enraciner ici, eu diria se tivesse nascido Proust.

Abaixo fotos do Jardin de Luxembourg feitas hoje a tarde.

Voltarei a escrever quando chegar no Brasil. À bientôt!





22.3.10

FICÇÃO E VIDA REAL

Está quase na hora de voltar, falta pouco para o curso acabar, malheuresement. No domingo fui assistir “Chloe”, filme do diretor Aton Egoyan com Julianne Moore e Amanda Seyfried. Eu esperava mais. Durante o filme eu me perguntei várias vezes se a trama seria possível fora da ficção. Sim, seria, mas antes disso se algumas perguntas e discussões fossem feitas ela não prosperaria. Quero dizer que quando escrevo uma história estou sempre me perguntando se ela é crível. A história de Chloe é crível, mas fica faltando pedaços, perguntas óbvias que qualquer um faria ao seu parceiro ou parceira na mesma situação não foram levadas a sério, por isso ele perde a força, porque mesmo que tudo no filme seja feito para que pareça normal, você sabe que pessoas como as que você está vendo na tela não agiriam daquela maneira. Então sobram cenas de sexo entre duas mulheres para a gente ver, e quando uma delas é a Julianne Moore, é muito mais bem feito e melhor. Vá ver, vale como sessão da tarde.




Basta falar o nome da Julianne Moore com qualquer pessoa que a conheça para logo ouvir a pessoa dizer que a adora. Moore virou unanimidade, é mais desejada que brigadeiro em festa de aniversário. No momento três filme com ela estão em cartaz aqui em Paris. Outro dia me perguntei porque isso acontece com algumas atrizes e com outras não. Além de ser uma boa atriz, Julianne Moore tem um rosto frio que se adapta aos papéis escolhidos (quero acreditar que ela já deve estar selecionando seus papéis), mas também acredito que as pessoas repetem o que ouvem sem pensar, e a coisa vai aumentando e aumentando até ser eleita pela maioria. Arrisco dizer que Nelson Rodrigues nesse caso não diria que toda unanimidade é burra.

Estou acabando de ler o livro de cartas escritas por Pierre Bergé para YSL depois de sua morte. Ele as escreveu como se estivesse conversando com Yves Saint Laurent, expõe a intimidade dos dois sem ser vulgar e as cartas serviram (assim me parece) para ajudá-lo a trabalhar o luto. É honesto e corajoso. Bergé não endeusa YSL, mas nem por isso deixa de vê-lo como uma pessoa especialmente talentosa. As vezes fala de seus defeitos como se eles fizessem parte de um lado necessário/inevitável da personalidade de YSL, como se sem seus defeitos não tivesse sido possivel ser genial, como se uma coisa dependesse da outra. Os dois viveram juntos por cinqüenta anos. Pelo conteúdo das cartas e lembranças narradas a vida a dois nos últimos anos não deve ter sido nada fácil. Mais um ponto para Bergé, que se expõe de forma aparentemente honesta e também a YSL. Poderia guardar suas lembranças e alimentar ainda mais a mitificação em torno da vida de seu amigo, mas ao contrário, ele expõe suas mazelas a quem se interessar por suas vidas. Dois homens de personalidades distintas e fortes. Vale para quem se interessa por histórias de amor.


18.3.10

O INCONSCIENTE ESTÁ NO SANGUE

Não sei se é possível conhecer alguém intimamente. Talvez seja possível vislumbrar algumas pequenas partes de um todo que é muito mais complexo do que imaginamos no outro, mas não a totalidade. Há sempre outras partes que não conseguimos compreender ou sentir. Como quando olhamos a obra de um artista e pensamos poder compreendê-la. Compreendemos a porção que nos é possível traduzir, e essa porção pode ser maior ou menor de acordo com o grau de compreensão e experiência vivida. Mas tudo pode ser apenas uma projeção de nossos sentimentos refletida no mundo do outro. A exposição “Lucien Freud L’atelier” no Pompidou é mais do que a mostra do trabalho de um artista, é um exercício de interpretação perigoso, no qual somos forçados a olhar não apenas para a obra mas também para nós mesmos. Logo que entramos na sala, somos surpreendidos pela beleza estética de suas obras e ao mesmo tempo avisados (intuitivamente) que lá dentro tudo o que você verá é fruto de um trabalho complexo, saído de dentro da cabeça de um homem que guarda um acervo rico de imagens e pensamentos labirínticos. Impossível apenas olhar e passar para outra obra. Freud exige que você pense sobre o que está vendo. De tela em tela você descobre sentir um prazer masoquista que aumenta a cada passo e a cada pousar de olhos sobre uma nova tela. Elas são plasticamente belas mas te machucam, te incomodam e te fazem sangrar. Eu conhecia apenas alguns de seus quadros, havia visto sempre isoladamente, um aqui e outro acolá, vê-los juntas me provocou um impacto visual e emocional muito forte. Algumas de suas telas de natureza morta são incrivelmente vivas, quase palpáveis. No entanto, nas telas em que o ser humano está presente você tem a impressão de que suas almas estão ausentes, que os corpos foram retratados apenas para compor a tela, os olhares não têm brilho, a cor da pele é pálida quase sempre acompanhada de um rosa avermelhado na região das juntas. Impossível não pensar em Francis Bacon. E mesmo que aparentemente pareça não ter nenhuma relação também em Caravaggio ou El Greco. Seus auto-retratos são como esponjas sugadoras de energia. Você olha para aquele corpo velho e nu, e sente medo de se perder dentro dele, de ser atraído pelo seu labirinto. Na saída há um vídeo de alguns minutos, no qual você pode vê-lo trabalhando, enquanto pinta um homem nu sentado no chão, Lucien Freud, pressiona os dentes, olha para o homem e para a tela, abre um pouco mais a porta buscando a luz ideal, se aproxima da tela e pouco antes de dar uma pincelada ele hesita, desiste. Seus olhos escuros e sombreados parecem cavernas encravadas numa imensa rocha, dentro delas há duas feras que a qualquer momento podem sair e te devorar.


















16.3.10

NOITE DE AUTÓGRAFOS

No máximo a quatro ou cinco quadras daqui fica a rue Ste Croix de la Bretonnerie, uma rua simpática que sai do bumbum do Centre Pompidou e termina no coração do Marais. Entre lojinhas fashions, bares, cafés e bistrôs tem uma livraria chamada Les Mots a La Bouche. Essa livraria vende todo tipo de livros, de romances a ensaios e no subsolo ela ainda oferece livros de arte e fotografia. Mas o grande carro chefe dessa livraria são os livros de temática gay. Lá você encontra de André Gide a Zola, e entre esses autores se misturam muitos outros contemporâneos menos conhecidos ou desconhecidos. A livraria não é muito grande, mas é muito aconchegante e tem horários especiais, abre de segunda a sábado às 11 da manhã e fecha as 23 horas, e no domingo ela abre às 13 horas e fecha às 21 horas. Há dois vendedores extremamente atenciosos que conhecem bem o acervo da loja e orientam o leitor perdido. No domingo li numa cartazinho escrito a mão grudado na porta que o autor Edmund White estaria lá hoje (16/3) autografando seu novo livro. Como sou seu admirador não perdi a chance de ir lá buscar meu autógrafo. Ainda não havia muita gente quando cheguei e tudo parecia funcionar em câmara lenta. Entrei, comprei meu livro e esperei minha vez na fila. Edmund White estava calmo, sorria, e me parecia bem a vontade. Quando chegou minha vez ele me perguntou o meu nome e quando viu meu sobrenome quis saber minha origem, o que eu fazia, quoi, qui, pourquoi. Então contou-me de sua passagem pelo Brasil, a feira de Paraty e etc... Enquanto conversávamos, a fila foi aumentando a ponto de se alongar para fora da livraria. Eu comecei a ficar aflito, mas o homem realmente manteve a calma. Viveu aqui por 16 anos e no momento vive nos EUA e dá aulas se eu não me engano na Universidade de Princeton. Muito simpático o sujeito. Seu novo livro se chama City Boy, Crônicas de Nova York, e tem prefácio de John Irving. Comecei a degustá-lo enquanto jantava. O livro relata a atmosfera de seu início de carreira, final dos anos sessenta e início dos setenta, seu contato com Burroughs e Nabokov, o descobrimento da vontade de transgredir outras passagens que eu ainda vou descobrir. Na quarta capa uma frase me chamou atenção: “leitor bulímico, de uma curiosidade jamais saciada”.



15.3.10

IMAGENS

um botão de primavera que eu imaginava morta abriu dentro da jardineira pendurada do lado de fora da janela do meu quarto,
o corpo de um homem morto foi retirado de um restaurante chinês da rue des lombards por bombeiros num caixão de alumínio,
um documentário sobre a vida de um casal de homens já muito velhos, um israelense e um italiano, que vivem juntos em Paris há mais de 50 anos. história de amor quase inverossível,
o filme La verité de Clouzot onde Brigitte Bardot nega ter matado o homem que ela amou e antes de ser julgada comete suicídio,
uma garotinha vestida de Alice no país das maravilhas enfiando o dedo dentro do nariz e olhando o que ficou grudado na ponta de seu dedinho enquanto sua mãe compra pães numa boulangerie.
um clochard coberto da cabeça aos pés com uma manta de estampa de ursinhos que combinava com seu gorro também estampado com ursinhos dormindo dentro do vagão do metrô.

12.3.10

PANACHE

Ontem enquanto subia o Boulevard Raspail em direção a uma livraria uma manifestação de funcionários e babás de creches descia em sentido contrário. Acompanhados pela polícia, os manifestantes protestavam contra as novas medidas (aumento da carga horária de trabalho, aumento do número de crianças admitidos por creche, diminuição dos requisitos de qualificação exigidos para a aceitação dos profissionais e etc...) Milhares de mulheres (aparentemente há poucos homens no setor) segurando suas faixas e distribuindo panfletos ocupavam o Boulevard. A França é o país das greves. Todo dia encontro manifestantes pelo caminho. Sarkozi continua cozinhando políticos de direita e de esquerda na mesma casserole, fazendo com eles um grande picadinho, misturando ex idealistas com neo liberais, mas tenho a sensação de que ele não consegue engrossar o molho com muitos dos setores que ajudam a formar a opinião pública. Graças a Deus! Aparentemente nem todo mundo aceita orientar sua vida pelas regras de mercado ou pela estética neo-liberal. Digo aparentemente porque basta olhar para os últimos dez anos para ser prudente e não se arriscar a fazer afirmações de qualquer teor. Há ainda os que resistem a fazer parte do mundo dos sou-oco-mas-sou-chique. O futuro está nas mãos dessa gente.

Outro dia comecei uma conversa com uma senhora dentro de uma Brasserie. Uma mulher elegante, que me contou das agruras e do sofrimento que é obrigada a passar para educar sua filha mais nova de dezesseis anos. A filha não quer estudar e não quer trabalhar. Quer ser chique. Quer ser famosa. Quando a mãe pergunta o que ela quer fazer para conseguir ser chique e famosa, a filha não tem resposta. Afirma querer aparecer nas revistas, ser como essas modelos que são fotografadas usando roupas de grife. A mulher, que me contou um pouco do seu passado, está desesperada porque acredita que sua filha está se transformando em tudo aquilo que ela sempre abominou. A aflição dessa mulher é provocada pela visão pessimista que os “ideais” da filha suscitam. No final da década de 60 e início da de 70 ela foi para as ruas protestar com outros milhares de jovens da sua idade. Acreditou até agora que havia feito alguma coisa para mudar o mundo consumista e cheio de regras comportamentais rígidas e ultrapassadas. Mas com o confronto de realidades imposto pela filha, seu mundo está ameaçado, suas crenças sequer são discutidas. A filha acredita nas imagens produzidas pelos publicitários e isso é tudo. Não questiona. Não faz perguntas a si mesma. Quer ser o que vê, o que imagina bastar para viver. Aparecer para ser. Ser o que sua imagem será capaz de fazer os outros acreditarem. A mulher estava sóbria. Tomava seu café ao meu lado, mas o inconformismo e a indignação estavam estampados em seu rosto. Pude sentir o seu medo. É o mesmo que sinto quando repouso minha cabeça sobre o travesseiro e dispo meus pensamentos das roupas de grife com as quais sou obrigado a vesti-los para continuar acreditando em alguma coisa.

No último post falei da impressão que tenho sobre a escassez de novos tenores com boas vozes. Havia comentado com um amigo sobre isso no intervalo da ópera Don Carlo, e ontem ele me deu um cd/dvd do tenor/galã Rolando Villazon interpretando apenas árias de óperas de Handel. Sou avesso a esses cds do tipo best of, mesmo assim esse me agradou bastante. Acho que nunca falei aqui, mas Handel está entre meus compositores preferidos, e Villazon tem o tamanho de voz apropriada para cantá-lo. Quem quiser começar a curti-lo como compositor de óperas, pode começar por Ariodante, obra em que é possível perceber o início da transição da música barroca para a romântica da segunda metade do século 19, passando por Mozart antes.

9.3.10

COBRAS E LAGARTOS

Céu azul desde quinta feira passada com muito frio e vento de deixar qualquer pingüim arrepiado, a previsão vale até sexta feira. Agenda movimentada. Depois do almoço no sábado a tarde fui com amigos assistir “Volta ao mundo em 80 dias” num pequeno teatro aqui no Marais que se chama Café de La Gare e fica na rue du temple. O espaço é bem interessante, com um pátio interno onde enquanto você aguarda para entrar pode observar aulas de dança e teatro. Os franceses adoram um batuque, se animam rapidinho ao som dos atabaques. A sala do teatro se parece um pouco com o Arena de São Paulo, arquibancas de madeira sem lugar numerado e você tem que chegar bem antes se quiser ver a peça que já está em cartaz há mais de dois anos. Um grupo jovem de atores que transformou o texto de Jules Verne numa peça bufa, e que poderia ter sido encenada pelo Ornitorrinco no Brasil. Os atores estão muito bem entrosados e fazem a platéia rir durante uma hora e meia, com direito a interação com o público (tenho horror de peça que interage com a público, eu sei que você vai dizer que eu sou chato e blá blá blá, mas é o que penso e como bom camaleão mudei de cor e me misturei a platéia logo que percebi que eles iam começar a mexer com as pessoas). O balanço foi positivo, valeu conhecer o teatro e ver a peça.

Mas como não sou exclusivamente moderno e viajo por diversas épocas, fui ontem assistir Don Carlo no Opéra Bastille. Cada vez mais prefiro as últimas obras de Verdi. Jamais dispensaria as óperas criadas no início e no meio de sua carreira, como Nabucco, Luisa Miller, Rigoleto ou Traviata que são obras primas, mas Don Carlo, Falstaff, Otello tocam mais minha alma. Em Don Carlo os barítonos têm forte presença e há momentos mais densos, como quando o grande inquisidor dialoga com o rei, trecho que é de uma beleza sóbria que só a maturidade intelectual do artista é capaz de criar. Também tenho dado preferência as vozes femininas mais baixas e menos agudas, tenho ouvido muito Anne Sofie Von Otter, mezzo soprano que está se tornando imbatível interpretando Händel ou Gluck. Mas já contrariando o que acabo de dizer, ontem gostei mais da soprano Sondra Radvanovsky que fez a Rainha Elisabetta di Valois do que da mezzo soprano Luciana D’intino, no caso a princesa de Eboli. Enfim contradições que talvez possam ser explicadas em razão do papel de cada uma. Falando em vozes, tenho a impressão de que há uma escassez de bons novos tenores. Vozes como a de Plácido Domingo em meados dos anos oitenta, ou mesmo de Pavarotti no final dos anos setenta. Os tenores são todos meio fraquinhos no momento, não sei o que aconteceu, não sou especialista, apenas observador e amante de música.

Para quem costuma nacionalizar/abrasileirar maus comportamentos achando que esse tipo de conduta é monopólio nacional, e adora repetir “só no Brasil isso poderia acontecer”, um exemplo de que a ignorância e a falta de educação acompanham com velocidade e se espalham com a globalização. No início do segundo ou terceiro ato da ópera o maestro foi obrigado a se virar para olhar feio e pedir silêncio. Duas mulheres começaram a discutir na platéia. Entre pedidos de silêncio e cala a boca as duas não conseguiram se conter e por alguma razão trocaram insultos. Horas antes, num pequeno supermercado presenciei outra discussão entre duas mulheres. Uma chamou a outra de racista, sendo que nenhuma delas era negra ou asiática ou ainda fosse possível perceber qualquer outra diferença visível a olho nu. Depois se insultaram e quase se pegaram, foram apartadas pelo marido de uma delas. Gente finíssima, que fazia compras com casaco de peles e xales burburry. Outro dia num desses bares do Marais, ouvi duas bichas fazendo gozações. Uma disse para outra que sua avó antes de morrer lhe ensinou que os aristocratas estão sempre “namorando” com a ralé por motivos óbvios: se um dia perderem tudo, isto é, poder e dinheiro, o que de mais abominável ainda lhes poderia acontecer seria ter que se integrar e fazer parte da classe média. Gente fina realmente é outra coisa.

4.3.10

MORTE E POSSIBILIDADE

Quem viaja sozinho sabe que não há outra forma melhor para se conhecer pessoas do que quando se está só num outro país. E como é bom começar uma conversa com alguém que você desconhece os vícios, manias e esquisitices, e quando a língua em que se dialoga é outra que não a sua, a coisa fica melhor ainda. Digo isso para encorajar os solitários chorões que poderiam conhecer o mundo, mas não o fazem porque alegam não ter companhia. Numa dessas minhas andanças eu conheci um artista plástico. Ontem fui conhecer seu ateliê e seu trabalho. Michel Sarazin é seu nome, suas telas me lembram as dos pintores expressionistas, tem na bagagem exposições internacionais. Quem se interessar em ver suas telas pode visitar seu site que é o: http://www.michel-sarazin.fr/. Depois fomos ver uma exposição no Museu Malliol que se chama “Vanités, vie e t mort” (Vaidades, vida e morte). A exposição faz você refletir sobre a vida, a finitude, a vaidade. De Caravaggio até Damien Hirst, passando por la Tour, Picasso, Braque, Basquiat, Baselitz (que eu gosto muito), Warhol, Mappelthorp, Miguel Barcelo entre outros. É bastante boa a variedade de telas e artistas, e a exposição começa bem e acaba bem. Mas o tema é pesado, mesmo que os artistas contemporâneos tenham interpretado a morte com mais humor, menos obviedade e peso, os vários crânios e ossos expostos vão lentamente consumindo sua energia. Difícil ser sutil quando se retrata a morte. Ao sair de lá senti um imenso prazer ao receber o vento gelado no rosto. Mas ainda lá dentro, passeando entre os artistas contemporâneos refleti não sobre a morte, mas em como ficou difícil para nós homens do século 21 desenvolvermos um olhar crítico sobre o que é arte. A visão do que é arte e do artista mudou radicalmente a partir da segunda metade do século passado, e agora acho que está chegando a um outro limite que necessariamente terá que ser ultrapassado. Levando em conta minha limitação de conhecimentos para fazer uma reflexão mais profunda sobre o assunto, é gritante e quase óbvia a banalização. Não estou discutindo gosto, mas a qualidade do pensar do artista que está por trás da obra e que necessariamente está refletido na tela ou objeto que está exposto, ou no livro que está impresso. Se a gente insistir na idéia de que tudo é relativo, então a reflexão deve parar por aqui porque não chegaremos a lugar nenhum. Sim, cada um pode fazer o que quiser, escrever o que quiser, falar o que quiser, mas nem por isso tudo é bom. Há diferenças e elas devem ser ressaltadas sem provocar prejuízo ou desqualificar outros artistas. Mas como fazer isso se o olhar do homem contemporâneo é orientado por interesses que não necessariamente interessam a arte? Não tenho as respostas, mas como homem do meu tempo posso sentir - mesmo que também sofrendo a interferência do pensamento do meu tempo - a transformação e a decadência. Não tenho uma visão negativa e sem esperança sobre o tema. A morte por ser inevitável, é talvez o único meio possível de se transformar, morrer para renascer de outra forma.

Vanité por Braque



Caravaggio



E um pequenino de Michel Sarazin

1.3.10

CLAIR DE LUNE

Hoje se comemora os 200 anos de nascimento do Chopin. Escrevo esse post ao som do 2o concerto para piano de sua autoria transmitido ao vivo de Varsóvia, ao piano o russo Evgeni Kissin (constato que não fui somente eu que engordei e envelheci nos últimos anos, me lembro dele ainda bem magrinho aos 14 ou 15 anos se apresentando em Viena). Maravilha como fundo musical para o que vou contar.

Fui ver a exposição de Turner no Grand Palais. Uma hora e meia de espera na fila em plena quinta feira às quatro e meia da tarde. Valeu a espera e o preço do ingresso. A exposição não se restringe as suas obras, mas o contrapõe a outros pintores que o antecederam e também aos contemporâneos. Assim ao lado de suas telas, você pode ver a evolução ou compará-lo com outros mestres como Van Gogh e até Veronese. Alguns quadros são incrivelmente parecidos, outros você passa a compreender porque Turner é o mestre da luz. Seu pequenino Clair de Lune é um quadro a parte. Você para, olha, vai, volta, olha de novo, descobre novos contornos, e quando sai de perto dele pensa que não o olhou o suficiente. Não sou crítico de arte, gosto e me sensibilizo, e talvez entendidos dirão que estou falando uma grande bobagem, mas em alguns de seus quadros já quase abstratos, cores e formas lembram Chagal, ou melhor, Chagal lembra Turner, até o contorno dos rostos e olhos das figuras poderiam ter sido pintadas por Chagal. Outra surpresa foi encontrar uma obra de Salvatore Rosa ao lado de Turner. Aliás a gente conhece muito pouco desse pintor barroco italiano. E tem tudo a ver quando a gente faz o exercício do antes e depois. A arte é uma evolução constante, os olhos vêem, registram e em algum momento reproduzem o que registraram com uma nova roupagem. Assim como na literatura. Cada vez mais compreendo que o escritor antes de tudo deve ser um leitor apaixonado.

Fui ver The Single Man, filme de Tom Ford, não sei qual o título no Brasil. Recomendo. O filme não é 100% fiel ao livro de Christopher Isherwood, e nem acho que deveria ser. Filme é filme, livro é livro e cada um tem suas qualidades. Nesse caso adorei o livro quando li e gostei bastante do filme. Vale dizer que é o primeiro filme de Tom Ford, estilista de moda que se julgássemos apenas pela aparência “up to date”, barbinha de cinco dias, camisetinhas coladas ao corpo e ternos super bem cortados, não acreditaríamos que ele seria capaz de fazer um filme tão belo (não sou politicamente correto). Pois fez, e não apenas esteticamente bem feito, mas também contou com atores e trilha sonora linda que ajudaram a dar peso a essa história sensível. Julianne Moore cada vez melhor e Colin Firth perfeito no papel do professor.

Acabou o concerto do Chopin e eu também me cansei de escrever. Tive um dia puxado e vou para a cama. Levo comigo Chopin, as imagens do jardin du luxembourg ainda sem flores e um pouco do calor do sol que recebi nas costas enquanto o atravessava.