31.8.10

MUDANÇA, ENIGMA.

Estou de mudança. Saindo do apartamento de amigos onde me hospedei até agora. Mudo para um pequeno estúdio que estou alugando também aqui no Marais, quando digo pequeno reduzam bastante a imagem que lhes veio a cabeça quando acabaram de ler a palavra pequeno. Lá vou passar dois anos até o final do meu mestrado na Sorbonne. Para quem ainda não sabe fico aqui por dois anos estudando a literatura de outros escritores e escrevendo a minha própria, apesar do tempo limitado que me sobra para me dedicar à ficção. Mas alguma coisa deve haver de errado em mim, pois escrevo mais quando o tempo me parece menor, quando me sinto pressionado pelo medo de não poder contar às histórias que quero contar.

Na semana passada conheci um filósofo italiano, professor da universidade de Milão. Homem que reunia toda a características físicas do italiano do norte, estatura média, pele clara, olhos claros, cabelos claros, pequena irritabilidade constante denunciada no olhar e no gestual. Agora esqueça toda a imagem que você fez de um filósofo, aquele homem que reflete, pensa, e gosta de conversar ou fala pelos cotovelos. O milanês era silencioso e quase mudo, econômico nas opiniões, e um filósofo que tem a capacidade de nos fazer pensar sem nos dizer muita coisa. Um filósofo que deveria ter estudado antropologia. Um sujeito enigma. Amadurecido como um jogo de descobrir palavras sem nenhuma dica para facilitar qualquer pessoa interessada em completar os quadradinhos vazios dos quais é formado. Esta aí um método didático interessante capaz de fazer os outros refletirem sobre controle de impulsos. Ou você foge ou o bicho te devora.

Há mais ou menos trinta anos caí de paraquedas no consultório de um analista freudiano. Na época eu era um jovem em busca de auto conhecimento (ainda busco, só deixei de ser jovem), lembro-me que no meio da primeira sessão tive muita vontade de sair correndo do consultório. Eu ainda não tinha a cara de pau que tenho hoje e não era suficientemente desinibido para falar de mim mesmo com um estranho que se limitava a me olhar enquanto eu falava, sem demonstrar a menor espressão facial ou gesto. Um silêncio se impôs entre nós, que não era oriundo de nenhuma inocência, e o meu interlocutor também não era o Antony Hopkins, mas de alguma forma o olhar desse discípulo de Freud era o de um canibal. Minha sessão de terapia acabou ali, naquele primeiro encontro. Voltando ao filósofo italiano, seu silêncio e olhar agudo me remeteram a essa sessão de psicanálise, com uma diferença significativa; não senti vontade de sair correndo, mas de fazê-lo correr para muito longe de mim com seu silêncio ensurdecedor.

29.8.10

POESIA

Fui conhecer a biblioteca François Miterrand que fica fora do circuito turístico de Paris, no 13eme arrondissement. Ela é vizinha de Bercy (12 eme), bairro novo, com um parque belíssimo que eu recomendo a todo mundo que tenha tempo de sobra quando vier a Paris. Chega-se facilmente lá com a linha 14 do metrô, que diferentemente de quase todas as outras da cidade é também nova e tem projeto arquitetônico moderno. Depois fiquei por ali e fui ao cinema numa das salas do complexo também novo próximo a biblioteca. Confortáveis, grandes, espaçosas. Assisti “Poetry”, filme sul-coreano dirigido por Lee Chang-Dong. Meu repertório de filmes asiáticos é mínimo, por isso entrei desconfiado e disposto a me levantar e ir embora se o filme fosse exótico demais. O resposta para essa minha ignorância e preconceito foi ficar sentado na sala por 2 horas e 20 minutos (duração do filme) extasiado com a delicadeza de tratamento dado ao tema do filme. Uma senhora solitária com sintomas da doença de Alzheimer que cuida do neto numa cidade pequena da Coréia do Sul. Essa senhora busca saber como se faz poesia, se inscreve em um curso para saber como pode ser tocada pela inspiração e etc. quando ao mesmo tempo é confrontada com o suicídio de uma garota que estudava na mesma classe de seu neto. O tempo do filme deve ser medido com uma ampulheta, não com um relógio digital. Tem um ritmo lento, é extremamente bem escrito, não economiza em detalhes que teriam sido “evitados” por qualquer outro diretor ocidentalizado. Um romance filmado sem cortes que evita o didatismo e não está interessado em nos dar qualquer lição de moral. Que fala sobre a inadequação das palavras ou da nossa falta de habilidade para praticá-las. Mas você terá que ter paciência porque ele não escancara suas intenções, e pode servir como sonífero para o espectador acostumado a assistir filmes ocidentais (um sujeito ao meu lado roncou nos primeiros minutos e só acordou porque sua mulher lhe chamou atenção algumas vezes durante o filme). Digamos que ele é como uma boa poesia, tem ritmo próprio e esconde múltiplas interpretações atrás de sua aparente simplicidade. Espero que ele chegue aí no Brasil.

27.8.10

EM HONRA DO NOME

No início do ano quando vim para cá apenas para estudar e ainda não sabia que ficaria por aqui, conheci uma garota holandesa. Ela nasceu e cresceu nos países baixos, mas depois se mudou para a Austrália quando ainda era adolescente e agora vive em Paris. Seu nome é Valentine. Como eu ela veio para estudar, agora está também trabalhando para poder dar conta da independência que imagina para si, mora com dois rapazes que eu ainda não conheço. Nos vemos pelo menos uma vez a cada duas semanas. Ela é jovem, tem ainda apenas 25 anos e posso sentir toda a sua vontade de viver e experimentar a vida em nossas conversas. Observo também que às vezes ela deixa transparecer (mesmo sem querer) um misto de melancolia, medo e tristeza quando me fala de seus desejos e desafios. Vejo nela muito de mim. E vejo também nela o que já fui, deixei para trás, e não mais sou, seja porque com o passar dos anos fui aprendendo a lidar com minhas angústias e hoje elas se transformaram em minhas melhores amigas, seja porque desenvolvi um sistema próprio para enfrentá-las e mandá-las para o inferno quando elas resolvem querer mandar em mim. Hoje Valentine e eu nos encontramos para um café. Seu humor estava pouco estável, por hora o sol aparecia e seu rosto se iluminava, por ora o céu ficava encoberto e cheio de nuvens. Não posso dizer para ela o que meus amigos austríacos costumavam me dizer quando me sentia assim há 20 anos, que no final tudo dá certo. Sei que ela não me levaria a sério, acabaria achando que eu não consigo entendê-la. Consigo sim. Porque de vez em quando eu também sou Valentine, a diferença é que os meus 23 anos a mais me fizeram entender melhor a receita dos amigos austríacos. Nem tudo resulta como havíamos imaginado, mas caminhos vão se abrindo enquanto outros vão se fechando, e entre esse abre e fecha de porteiras é preciso insistir, não teimosamente ou de forma compulsiva, mas continuar a procurar saídas. Disse isso para ela hoje. E ela chorou copiosamente. Quando conseguiu controlar um pouco as lágrimas olhou para mim e disse: “que merda, vou ter que tentar o resto da vida?” Vai Valentine, vai ter que honrar esse nome lindo que você tem.

25.8.10

POLÍTICA E POLÍTICOS


No “Le Monde” de domingo uma entrevista de duas páginas com o ministro do interior francês Brice Hortefeux, que trabalha na lavanderia do governo Sarkozy e cuida da roupa suja e outros affaires que nenhum outro político quer fazer. O homem é agressivo, ataca para não ter que se defender e fala exatamente no mesmo tom de seu chefe. Na entrevista ele diz, por exemplo, que não está interessado na opinião de intelectuais do Boulevard Saint German, que segundo ele são ricos e defendem suas idéias de esquerda protegidos pelas paredes de seus imóveis luxuosos. Ele se refere às críticas recebidas por causa da política de imigração/integração que estão sendo colocadas em prática pelo governo. Essa política conservadora esta provocando uma cisão no próprio governo. Dessa forma Hortefeux atrai as atenções para si, aliviando o peso das costas de seu chefe. Hortefeux manipula bem as palavras, desvia com esmero das perguntas do jornalista contra atacando com respostas ágeis, porém pouco convincentes. O governo Sarkozy já está pensando nas eleições de 2012, quer recuperar os votos que perdeu para a filha de Le Pen. Hoje o jornal “Liberation” informou logo na primeira página que 54% dos franceses querem a alternância do governo, isto é, que a esquerda vença as próximas eleições e ainda que Dominique Strauss-Kahn, hoje diretor do FMI, seria o preferido dos eleitores. Mas eu me pergunto se Strauss-Kahn pode ser considerado um homem de esquerda. O que é um homem de esquerda hoje? Os de direita defendem com convicção seus argumentos conservadores e muitas vezes reacionários sem nenhum constrangimento, enquanto que os políticos de esquerda se apresentam publicamente quase se desculpando por suas convicções. Talvez esteja aí o problema, não se atrever a expor seus ideais por imaginar que eles estejam ultrapassados, que ninguém mais quer ouvir falar em direitos humanos, em moral e ética e nem em política social. Com isso não quero dizer que a esquerda detém o monopólio dos ideais nobres ou que esteja acima do bem e do mal, mas que ela é envolvida e empacotada pelo discurso da direita quando ao invés de fazer propostas e apresentar projetos prefere responder aos ataques ou se limitar a criticar os governos.

Ia me esquecendo de dizer que no mesmo “Le Monde” havia ainda uma nota informando que mais de 24% da população norte americana acredita que Barack Obama é muçulmano.

Sobre Dilma ou Serra ou eleições no Brasil, nada nos jornais. Ainda. Mas tenho certeza que se as urnas confirmarem os resultados das últimas pesquisas, os créditos irão para o Lula, que é admirado por quase a totalidade dos franceses que conheço. E Serra como representante da uma parte da oposição comete os mesmos erros que citei acima. Não que eu o veja como homem de esquerda, mas sua campanha se limita a criticar o governo Lula, ou apelar para a vida pessoal de Dilma. Eu que acompanho pela internet as eleições no Brasil, não conheço suas propostas, ou o que ele faria de diferente se ganhasse as eleições. Em tempo, já afirmei aqui que não votarei nem em Dilma, nem em Serra, nem em Marina. Vou anular o meu voto. Não vou votar no menos pior, nem forçar segundo turno, nem qualquer outra coisa parecida. Só voltarei a dar o meu voto para um candidato quando acreditar que ele reúne algumas qualidades que aprecio ou que defenda políticas que eu acredito.

23.8.10

QUASE PERFEITO


O álibi usado para determinar a inocência quando se é acusado de ter cometido um crime, perde o valor se todas as circunstâncias que o determinaram como prova irrefutável de inculpabilidade não agregarem a ele a certeza e o indubitável. Se as peças ou circunstâncias que montam esse álibi nos parecem frágeis, ou porque não se encaixam ou porque nos parecem fantasiosas demais, a dúvida surge e o álibi deixa de exercer sua única função que é provar a inocência de quem está sendo acusado de maneira irrefutável. Esse é o único e grande problema do filme “Crime d’amour” do diretor francês Alain Corneau. O filme começa muito bem, tem tudo para ser um grande thriller, tem um elenco de primeira, Kristin Scott Thomas e Ludivine Sagnier, uma boa história, tudo se encaixa, a frieza da chefe de uma empresa francesa filial de uma multinacional americana, admirada por sua subordinada, a sedução do poder e da eficiência, a manipulação clara para atingir seus objetivos, o mundo frio e falsamente higiênico da executiva, tudo muito bem montado até a ocorrência do crime. Daí em diante a coisa despenca, o plano para provar a inocência da subordinada tem a pretensão de nos esclarecer as coisas de forma tão encaixada e lógica que acaba perdendo a força inicial. O diretor usa imagens em preto e branco para refazer todos os cuidados da autora para a realização de seu crime perfeito, mas o recurso não é suficiente para esconder as falhas de roteiro. Não é realista acreditar que alguém na posição da acusada, depois do tempo em que esteve na cadeia, retorne a empresa, assuma o lugar da chefe assassinada (cujo assassinato, ela era a maior suspeita), e ainda dê o golpe derradeiro no comparsa da ex chefe. A partir da metade do filme a frieza que se justificava no início deixa de ser convincente e se torna caricata, todos os subterfúgios utilizados pela assassina passam a suscitar dúvidas no espectador por causa de facilidade com que eles se realizam e dão certo progressivamente. Uma faca escondida minuciosamente pela assassina é achada facilmente pelo policial, um tombo auto provocado é explicado pelo vizinho, talvez se algumas imagens não nos tivessem sido mostradas com tanta clareza, o filme teria ganhado em suspense. No cinema, a ajuda das imagens para se explicar um crime pode ter o efeito de um tiro que sai pela culatra.

21.8.10

ESTRANGEIROS


O estrangeiro que mora dentro de cada um de nós só ganha vida e visibilidade fora de casa. Antes disso, ele dorme o sono dos inocentes e sonha com mundos que só existem dentro de sua mente imaculada. A vulnerabilidade e a fragilidade desse ser que a gente pensava conhecer se tornam conscientes quando ele desperta. Querendo ou não, quando olhamos o estrangeiro que está do lado de fora, e que por sua vez interage com a gente pela perspectiva de quem pensa não ser estrangeiro, estamos também olhando para dentro de nós. O ser humano, guardadas as características culturais que nos diferenciam uns dos outros, é na essência igual. A primeira impressão é a da diferença, cor da pele, idioma, cheiro, alimentação, formas de organização social e etc., mas a descoberta das semelhanças que nos aproximam e nos fazem pertencer a mesma espécie de seres primitivos fica evidente. Principalmente quando observamos o lado mais feio do outro, aquele lado que gostamos de afirmar que não existe em nós. Dessa forma, com a capacidade e o conhecimento de um não antropólogo e de um não filósofo, ou se preferirem de um cientista vagabundo, mas por outro lado com a experiência de quem invariavelmente está sempre observando o outro e a si mesmo, cheguei a conclusão de que somos todos, independente de raça, credo, posição social, nacionalidade, sexo e outras coisas que quiserem incluir na lista de qualificação da variedade humana, peças de um jogo do tipo playstation ou coisa parecida com o qual os deuses lá em cima adoram brincar. O jogo começa com todo mundo com os olhos vendados, sem lado bom nem lado ruim, o grau de dificuldade do divertimento dos deuses vai aumentando a partir do momento em que alguns a duras penas começam a enxergar. As peças dos jogos (que somos nós) não ganham nem perdem, estão condenadas a jogar até a morte. A jogo tem como ponto alto a descoberta da consciência, as peças não ganham nada com isso, a consciência não lhes garante nada, não salva nenhuma de nada, elas apenas tem consciência de que são de alguma forma manipuladas por esses deuses. Só os deuses é que se divertem com a coisa. A começar pelo direito de escolherem algumas peças com as quais eles vão poder fazer todas as experiências que quiserem. E jogar para os deuses quer dizer muito, como por exemplo, condenarem algumas ao limbo e a escuridão, ou privilegiar outras de todas as regalias e vantagens da vida no planeta. Por exemplo, os deuses podem fazer essas peças pensarem que são importantes, que podem tudo, que são semi deuses porque são belos, ou porque são ricos e portanto poderosos, ou porque são talentosos ou ainda intelectualmente mais capazes, ou simplesmente uma mistura de tudo isso. Os deuses se divertem muito com essas peças, deixam elas pensarem que podem tudo, que mereceram a suposta superioridade porque fazem parte de uma casta denominada “os escolhidos” passada de geração a geração por hereditariedade. E se divertem também com as outras que se acham desgraçadas, que vivem mendigando compaixão enquanto poderiam fazer alguma coisa para sair do estado de mendicância. A graça do jogo está exatamente no fato de que tanto a vida de uns como a dos outros está limitada aos seus estados de consciência, que por sua vez estão diretamente ligados ao tempo em que as peças ficaram com os olhos vendados. Os deuses quase se matam de rir quando percebem que algumas peças preferem ter os olhos vendados a vida inteira a fazerem suas próprias escolhas. Fazem apostas entre eles, castigam as peças de tanta raiva que sentem de seus medos e preguiças, enfim, é difícil por ordem na casa nesses momentos porque a bagunça é generalizada, mas normalmente eles se mostram generosos com as peças mais atrevidas. Enchem elas de presentinhos e mimos, e proporcionam a elas momentos de satisfação que as outras peças, nem as do grupo dos “escolhidos” nem as que vivem mendigando conhecem. No fundo os deuses adoram as rebeldes, aquelas que arrancam as vendas dos olhos e os maldizem, preferem as peças que os desafiam as que vivem perguntam a si mesmas o que fizeram para merecerem a vida que tem. Mais ou menos assim deve funcionar esse jogo que serve apenas para divertir os deuses. Enquanto isso a gente faz a nossa parte acreditando que é possível dividir o mundo entre bons e maus, ricos e pobres, trabalhadores e vagabundos, belos e feios, espertos e azarados, estrangeiros e não estrangeiros.

19.8.10

CHANTILLY, PLACEBOS E APARÊNCIAS

Daqui, pelos sites do Uol e da Folha, eu tenho acompanhado as notícias sobre as eleições no Brasil. Faço um esforço danado para levar Dilma e Serra, os dois que realmente tem chance de ganhar as eleições presidências no país, a sério, mas não consigo. Sou ao mesmo tempo jovem e velho, gosto de pessoas que tem algo para dizer, mas sou muito atento ao conteúdo, no que está dentro do pacote de design aparentemente diferente que querem me vender. A ausência de expressão dos dois me desanima, e isso fica mais evidente quando eu os escuto falar. Na voz dos dois percebo o placebo que querem que eu engula. São vozes ocas que combinam com seus rostos frios e posturas físicas ensaiadas. Nenhum deles me convence de nada, muito menos de suas boas intenções. E se você me acusa de ser ingênuo eu protesto. Porque não vou me resignar, como a maioria das pessoas que conheço, e fingir que não sei que por trás dos dois há dois rolos compressores da mesma marca que querem o poder para garantir suas estruturas partidárias, alicerçadas muito menos por ideais que pela manutenção de sua “conquistas”. Não vou votar nesses ventríloquos. Nem na Marina, que talvez ainda tenha um pouco mais de vergonha na cara e por isso mesmo se mostre insegura, mas que me decepciona por suas idéias retrógradas sobre homossexualidade e aborto. Quando vou tomar um café com chantilly, quero chantilly batido com a mão, sei diferenciar chantilly de latinha tipo creme de barbear do chantilly caseiro.

Tenho acompanhado também a Bienal do Livro que está acontecendo no Brasil. Li alguns artigos e reportagens sobre literatura feita no twitter. Não acredito que se faça literatura no twitter. Literatura para mim exige o mínimo de reflexão de quem a produz. Gosto de contos curtos, mas a concisão de um conto também tem a ver com a reflexão do escritor e sua aptidão para contar histórias em poucas palavras. Talvez o twitter possa servir de exercício para quem gosta de escrever e pretende ser escritor, como um tubo de ensaio de projeção. Acredito mesmo assim, que se possa narrar uma boa história com apenas 140 caracteres. Não é o tamanho do texto que vai definir sua qualidade, mas a pré gestação dele é condição para qualificá-lo. A velocidade do twitter muito provavelmente não permite a quem o utiliza com a pretensão de fazer literatura, o mínimo de tempo necessário para se pensar sobre o texto, e acredito também que ao leitor do twitter o tempo de reflexão é escasso. A pressa em descobrir outros textos e de escrever outras historinhas ainda mais interessantes para se conseguir um número ainda maior de seguidores é a característica de quem usa esse meio. Literatura é arte que tem como base a reflexão tanto por parte do escritor como por parte do leitor, não é competição. O tempo que se acredita estar ganhando, na verdade é tempo perdido.



17.8.10

SERGIO XAVIER


Fato curioso aconteceu comigo essa semana. Meu professor trouxe um conto escrito por um antigo adjunto do primeiro ministro Villepin para a gente estudar. O nome do político e também escritor é Azouz Begag, um homem conhecido por suas ações e pensamentos políticos contraditórios, francês filho de imigrantes árabes que visivelmente tem problemas de identidade e usa expressões como “discriminação positiva” para defender suas idéias sobre política de imigração. O conto dele narra a história de um homem que vê uma mulher numa estação de trem e começa a sonhar com a possibilidade de conhecê-la. Não tem nenhuma conotaçao política, mas a gente consegue pescar um pouco do perfil psicológico do autor. É repleto de imagens cafonas e carregado por uma linguagem cheia de clichês sobre o amor e a mulher e ainda a vontade de mostrar ao leitor sua pseudo erudição e conhecimento da língua francesa. Estudamos o conto juntos sem que me fosse possível conhecer o seu desfecho. Minha lição de casa era dar um final ao conto fazendo uso do mesmo estilo exagerado do escritor. Reli o conto algumas vezes e não conseguia imaginar um fim para ele. Deixei o texto de lado um ou dois dias e depois fui relê-lo. Escrever de um jeito que não é o meu é muito difícil, e o estilo romântico carregado me inibia as idéias. Comecei a ficar com bode do sujeito e do conto. Então resolvi puni-lo frustrando as expectativas do personagem. Finalizei o conto fazendo a mulher se voltar contra ele e acabando com seus devaneios rococós. Achei que o professor fosse me achar meio perverso, mas mesmo assim levei meu final para ele ler. Ele leu e me perguntou como eu havia descoberto que o final era aquele. Eu disse que não havia lido o final do conto em nenhum lugar e que desconhecia o final dado pelo autor. Pois não é que eu dei ao conto o mesmo final escrito pelo autor. Eu puni o personagem praticamente declarando sua predileção ao masoquismo e transformei a mulher dos seus sonhos numa mulher fria, de voz metálica, rígida com tendências sádicas. Para se ter uma idéia das coincidências, num determinado trecho do conto o personagem acende um cigarro para pensar melhor como puxar uma conversa com a mulher dos seus sonhos. Usei essa passagem como pretexto para que ela tomasse a dianteira e o abordasse, desse uma bronca nele, mandando ele apagar o cigarro e perguntando se ele não sabia ler que lá não era permitido fumar. Pois o autor do texto fez a mesma coisa com outras palavras. Que loucura. Entrei na cabeça do autor e compreendi seu perfil psicológico. Rimos muito da coincidência, mas confesso que fiquei assustado com a história. Será que vou começar a psicografar?

15.8.10

VER E NÃO VER EIS A QUESTÃO


Você pode olhar e não ver. Ver e não ser visto. A visibilidade não depende do objeto ou do ser humano presente no raio de alcance de nossos olhos. Por melhor que seja nossa visão, no fundo somos todos de alguma forma cegos. Ou porque somos treinados a ver apenas aquilo que não nos agride e interessa ou porque nos recusamos inconscientemente a ver o que não faz parte do nosso limitado universo imaginário. De qualquer forma somos incapazes de ver a totalidade, enxergamos parcialmente o outro e a nós mesmos, a vida dos outros e as nossas. E porque essa invisibilidade não é óbvia, ela não é percebida, não é tratada como doença ou algo a ser curado, podemos passar a vida sem nunca desconfiar dela. Nascer, viver o tempo que nos é dado para viver, e morrer, sem enxergar a totalidade. Mas se de alguma maneira você compreender essa invisibilidade, vai sentir muita dor. Uma dor diferente, imune a analgésicos ou cirurgias corretivas. A dor da consciência, do saber-se invisível e de perceber-se da mesma forma limitado para enxergar a totalidade do outro.

Fui assistir “Orly”, filme de produção franco alemã feito por uma diretora alemã chamada Ângela Schanelec. O cenário é o aeroporto de Orly e narra quatro histórias diferentes e independentes mas que tem uma linha condutora em comum. Todas elas falam das relações entre essas pessoas, dos pequenos segredos que as unem e separam. O filme tem um ritmo lento, foi filmado como se os atores não estivessem atuando para que você não consiga distinguir os atores entre as pessoas comuns. A diretora os filmou no meio dos outros viajantes tornando-o ainda mais realista, e nos coloca na posição de voyeurs, sua câmera brinca buscando os atores e é a partir dos diálogos que somos inseridos em suas histórias pessoais. O hall do aeroporto e as salas de embarque funcionam como um limbo, um lugar onde a história dessas pessoas entra em posição de espera. Esses trechos das vidas dos personagens que nos é oferecido são como pequenos contos, quase todos sem graça e que ganham força tão somente pela interpretação desses atores. Um filme que só não é chato porque é bem feito do ponto de vista técnico, mas que proporciona pouquíssimo prazer.

12.8.10

TIPO EXPORTAÇÃO

Tenho ainda todos os dentes da boca. Alguns já bem remendados, mas todos estão ali lado a lado e abraçadinhos. Dias antes de sair do Brasil fui ao dentista para um check-up. Um dente precisava de reparo, os outros estavam em ordem, ainda fiz uma limpeza e sai o mais rápido possível do consultório. Não conheço outra pessoa que tenha tanto temor de ir ao dentista como eu. Sofro só de pensar em tratamento dentário e fujo de dentista como o diabo foge da cruz. Mas não poderia falar um ai do meu dentista que é um exemplo de paciência e delicadeza, sabe lidar com os meus medos e apesar de toda a minha chatice ainda me trata com todo cuidado possível. Pois ontem senti uma dor num dos meus dentes do siso, mexi um pouquinho nele e achei que estava meio bamba. A noite, provavelmente de tanto verificar se ele estava mesmo balançando ou era apenas impressão minha, ele começou a doer. O que fazer? Ir ao dentista de urgência na França nem amarrado! Comentei com um amigo e ele me disse que tinha um remédio que era milagroso contra todo tipo de dor. Tomei o tal do remédio e em alguns minutos cai num sono profundo, tive sonhos incríveis e prazerosos e outros ainda sem pé nem cabeça, no total dormi quase doze horas seguidas e acordei novinho em folha. De manhã a dor havia passado. Mexi no dente e tive a impressão de que ele ainda estava meio bambalelê, mas preferi não provocá-lo. Quando sai de casa, entrei na primeira farmácia que encontrei e pedi uma caixinha do remédio milagroso, queria me prevenir já que um homem prevenido vale por dois. A moça me olhou com uma cara meio esquisita e pediu para que eu repetisse o nome do remédio. Repeti e ela disse que não poderia vender o remédio porque ele só pode ser vendido com receita médica. Insisti. Ela continuou firme e me explicou que o tal do remédio milagroso é composto quase que na sua totalidade de morfina e que isso poderia causar danos a minha saúde e até dependência química. Compreendi rapidinho a razão de todos aqueles sonhos incrivelmente prazerosos e do meu sono profundo. Fazia tempo que não dormia tão bem. Mesmo assim, entrei em mais outras três farmácias a fim de ver se conseguiria comprar o medicamento e em nenhuma delas me venderam o remédio. Sai de uma delas com outro analgésico na mão, deve ser um tipo de aspirina que pode ser vendida sem prescrição médica. De qualquer forma acreditei que as farmácias daqui seguiam rigorosamente as recomendações dos médicos e cumpriam as leis, fiquei quase convencido da seriedade dos profissionais daqui. Mas foi por pouco tempo. Meu amigo me ligou mais tarde para saber como eu estava e eu contei a ele sobre as minhas tentativas frustradas de comprar o medicamento. Do outro lado da linha ele brincou e disse que a noite quando chegasse em casa ia me provar que a França em muitos aspectos é muito parecida com o Brasil. Fiquei na dúvida, ele brincava ou falava sério? Agora pouco ele chegou. Trouxe consigo duas caixas do tarja preta e as expôs sobre a mesa como se fossem dois troféus. Perguntei como ele havia conseguido e a resposta foi também muito parecida com as que eu teria recebido de qualquer um de nós brasileiros espertos: “basta ir as farmácias certas e falar com o farmacêutico certo”. Pelo visto, o jeitinho brasileiro se infiltrou por aqui sem passar pela alfândega.

10.8.10

IGPM COM DIREITO A SHOW


Se quiser passar o dia inteiro sentado num café de Paris lendo os jornais ou um livro, fazendo anotações ou lendo e escrevendo seus e-mails, ou apenas observar o vai e vem dos tipos exóticos você pode. Ninguém vai te encher o saco ou te apressar para liberar a mesa, mas essas horas de prazer podem custar um bocadinho para o teu bolso. Só para se ter uma idéia dos preços:

Café expresso, 2,80 euros.
Café viennois (xícara de café com camada de chantili) 5,50 euros.
Perrier 6,00 euros.
Coca cola, 4,50 euros
Campari orange 5,90 euros.
Chop 3,50 euros.
Morrito: 8,00 euros
Croque monsieur (misto quente servido com uma saladinha composta de folhas de alface e no máximo duas rodelas de tomate) 8 a 10 euros, se pedir um croque madame (meu preferido) ele virá com um ovo frito sobre o misto quente e custará de um a dois euros a mais.
Não tem muito como fugir desses preços, eles podem variar para cima ou para baixo, mas essa é a base. Já a maioria dos restaurantes daqui oferece a famosa “formule” que nada mais é do que um menu composto de entrada, prato principal e sobremesa com preços pré fixados. Normalmente você pode escolher dois dos três pratos sugeridos, como entrada e prato principal, ou entrada e sobremesa, ou ainda deixar a entrada de fora e comer apenas o prato principal e a sobremesa. O preço mínimo dessas “formule” é de 11 euros e não tem limite para cima, depende do local que você escolher, mas na média eles ficam entre 15 e 20 euros e você sai satisfeito. Bebidas não estão incluídas nessas fórmulas.
Paris é uma cidade cara, o valor que você gastaria para suprir sua casa com alimentos e produtos de limpeza por um mês no Brasil aqui serve apenas para suprir as necessidades de uma semana, e mesmo assim, para quem mora e trabalha aqui, almoçar ou jantar em casa sai muito mais barato do que sair para comer fora. Livros, cinema e teatro custam um pouco menos que no Brasil. O preço médio de um livro de bolso é 9 ou 10 euros, os de capa dura ou mais elaboradas são mais caros, mas há uma enorme oferta de livros usados em bom estado de conservação nos sebos por preços irrisórios, como 1 ou 2 euros. Cinema, entre 9 e 12 euros, mas muitas promoções semanais com preços fixos de 3 euros por exemplo. Voilà um igpm superficial para refletir um pouco sobre custo e benefício.

Um fato curioso observado ontem à tarde. Uma moça sentou-se logo ao meu lado, numa mesinha encostada a minha num café próximo ao Beaubourg. Tirou um caderninho e começou a desenhar. Tudo parecia tranqüilo, eu lia meu livro e tomava meu café viennois. De repente ela começou a reclamar da fumaça do cigarro da mocinha que lia o jornal numa mesa próxima a dela. Discutiram rapidinho, a reclamada continuou a fumar e a reclamante mudou para a mesinha a minha direita. Passado o mal estar, voltamos a nossas atividades, eu reiniciei minha leitura e ela recomeçou a desenhar. Alguns minutos se passaram e um rapaz bonitinho mas ordinário começou a se apresentar com seu violão elétrico apenas alguns metros a frente do Café. A desenhista se irritou. Pediu para o garçon falar com o rapaz para ele ir tocar em outro lugar. O garçon se recusou. Disse que não tinha o direito de proibir o moço de cantar suas canções. Ela se levantou e foi falar com o músico amador. Discutiram. Ele continuou no mesmo lugar e ela voltou para a mesa. Recomeçou a desenhar, mas foi por pouco tempo. Minutos depois, reclamou com a moça que falava em voz muito alta no celular. O garçon trouxe o seu café, disse que ela teria que pagar na hora porque ele mudaria de turno e estava fechando o seu caixa. Ela se irritou, se sentiu ofendida e pagou, mas enquanto procurava suas moedinhas na carteira disse em alto e bom tom que ele era um “connard”. Depois disso fechou seu caderno de desenho, pegou sua bolsa e foi embora.

O que eu penso de tudo isso. A moça aparentemente pode parecer louca, mas no fundo todas as suas reclamações foram justas. A fumaça do cigarro estava irritando todos os presentes muito antes da desenhista chegar (duas pessoas já haviam trocado de lugar), o músico cantava mal e ainda por cima usava um amplificador de som que piorava muito sua apresentação e se ele tem o direito de tocar nós também temos o direito de ler ou desenhar sem sermos perturbados por seus gritos, a exibicionista que ria como uma histérica no telefone celular mereceu a bronca, não somos obrigados a ouvir trechos de sua vida íntima, e o garçon, bem..., coitado no fundo ele não tem culpa por ter que fechar seu caixa justo na hora que a moça estava lá, mas o prazer embutido em sua voz ao expressar seu “desolé” foi tão explícito que ele mereceu o insulto.

Ia me esquecendo de dizer que o espetáculo está incluído nos preços.

8.8.10

NO ESCURINHO


Sonhar faz toda a diferença. A vida sem os sonhos é a vida dos animais. Faça um teste, tente apenas viver, sem ansiar, sem desejar, se conseguir chegar perto desse estado vegetativo você vai começar a se parecer com uma folha de alface, sem vida própria, sem dinâmica. Dar sentido a vida é tarefa difícil. Quando começar a refletir sobre isso assegure-se de que está bem, caso contrário vá ao cinema, faça como eu fiz nessa tarde cinza parisiense. E se o filme “O ilusionista” já estiver sendo exibido na sua cidade entre na sala e relaxe. Você vai ver um desenho animado feito pelo diretor francês Sylvain Chomet, o mesmo diretor de “As bicicletas de Belleville” que rodou com sucesso aí no Brasil. O roteiro foi escrito por Jacques Tati e foi entregue ao diretor pelas mãos da filha de Tati. O filme conta a história de um mágico que sai da França em busca de trabalho, quando sua profissão entra em decadência no final dos anos 50 e os teatros de revista e circos começam a perder espaço para os grupos de rock e outras modernidades. Uma homenagem que Tati fez a esses artistas e que por sua vez o diretor faz a Tati. Bem feito, sem diálogos, apenas alguns murmurinhos servem como voz entre os personagens, música bem feitinha. Não espere um puuuta filme, porque não é, mas é muito melhor assisti-lo do que tentar encontrar o sentido da vida numa tarde cinzenta.

Assisti a um documentário sobre Beethoven, especificamente sobre o período em que sua surdez se agravou e como seu comportamento foi mudando a partir do agravamento da deficiência auditiva. Ele deixa uma carta, mais conhecida como testamento de Heiligstadt (em referência ao nome da cidade vizinha a Viena onde passou recluso os últimos anos de sua vida), na qual esclarece algumas de suas reações consideradas agressivas. Não podia sair pelas ruas dizendo que não ouvia bem toda vez que não escutava o que lhe era dito. Era o compositor e maestro oficial da corte, seria certamente dispensado de seu posto. Beethoven foi o primeiro músico que se rebelou contra a condição humilhante e decorativa como os músicos de sua época eram tratados pelos monarcas. Negou-se a ficar a disposição do Imperador austríaco para tocar quando o mesmo quisesse, ou servindo de fundo musical nos salões. Disse explicitamente ao monarca que sua música não era feita para servir a aristocracia e que a aristocracia é que deveria servir a música. Coragem de quem sabe a que veio ao mundo. Um gênio que por isso mesmo foi convidado para trabalhar em Viena ganhando muito bem para isso inovando a relação compositor e monarcas. Compôs a Pastoral quando já estava totalmente surdo. Hoje de manhã enquanto tentava dar um sentido a minha vida mergulhado nos novos contos, ouvi a sexta sinfonia (Pastoral) como se a ouvisse pela primeira vez. Beethoven considerava essa a sua obra mais descritiva. No momento em que eu a ouvia acreditei poder ter compreendido o que ele quis dizer. Um jeito de sonhar de olhos abertos. Acreditar que é possível compreender o que Beethoven quis dizer não é pretensao, mas vontade de dar sentido as emoções que as vezes mais atrapalham do que ajudam.

5.8.10

VAI PRO GOOGLE MINHA FILHA!

Ontem enquanto tentava resgatar as idéias de um conto já em andamento uma outra idéia invadiu meus pensamentos. Não titubeei, abandonei o conto que escrevia e comecei a escrever um outro. Nunca imaginei que isso pudesse me acontecer, sou um escritor que produz em conta gotas, às vezes passo uma manhã inteira escrevendo apenas um parágrafo. Saio muitas vezes da frente do computador, invento mil coisas para fazer, um café, ou me lembro de que fiquei de responder um e-mail, faço de tudo para me distrair. Às vezes me pergunto por que escrevo histórias, por que passo tantas horas escrevendo se não tenho a menor certeza de que alguém um dia lerá o que escrevi. Não consigo encontrar uma resposta satisfatória. Já desisti outras vezes, mas sempre volto ao computador. O escritor é um sujeito invisível, existe a partir de seus livros, há muito mais desprazer durante a escrita do que prazer. Sinto dor nas costas, cansaço físico e mental, mesmo assim insisto em retomar do ponto onde parei, dar sentido e vida aos personagens que inventei. Um mundo a parte, um prazer que beira ao masoquismo, mas que no entanto muito mais se aproxima do voyeurismo, qualquer coisa no meio disso. Agora tenho duas histórias me esperando. Vidas que esperam ansiosas pelos seus destinos.

Hoje as sete e meia da manhã num dos vagões do metro, apenas no quadradinho onde eu estava, naquele espaço vazio em frente às portas, seis pessoas liam concentradas seus livros. Contei e éramos dez pessoas se aglomerando naquele espaço. Seis das dez liam livros, das outras quatro, uma lia uma revista, outra manipulava seu Ipod e outras duas (eu era uma delas) observavam as outras oito. Não é incrível que as sete e meia da manhã as pessoas já estejam envolvidas com histórias criadas por escritores que um dia sequer sabiam que seriam publicados?

Ainda não vi ninguém em público lendo algum livro num Ipad. Algumas pessoas comentam que há um certo constrangimento por parte daqueles que já possuem o livro eletrônico, têm vergonha de exibi-los fora das quatro paredes. Os que não possuem costumam segregar os que possuem, reagem com um certo desprezo, desdenham do dono como se o mesmo não tivesse outra motivação em possuir um Ipad a não ser para mostrá-lo como troféu.

Hoje na aula de redação literária estudamos o estilo das cartas trocadas entre Verlaine e Rimbaud. Em meio à leitura uma das alunas nos surpreendeu ao perguntar se Verlaine era homem. Desconhecia o poeta. Talvez tenha imaginado que Verlaine fosse uma marca de jeans. Constrangidíssima, a professora fez um pequeno resumo antes que pudéssemos continuar. Depois de alguns minutos a aluna perguntou se Rimbaud também era homem. A professora mandou ela entrar no Google para se informar.

4.8.10

EGOPOST


As vezes me passa pela cabeça a idéia de que estou perdendo tempo. Sei lá, que poderia estar fazendo algo objetivando uma meta como a maioria das pessoas que conheço, galgando um lugar ao sol, buscando profissões mais rentáveis e confortáveis, que exigem menos esforço, ou a celebridade a qualquer preço por exemplo, criando um personagem fictício para falar da minha vida íntima ou taras. Tenho a impressão de que faço sempre as escolhas mais difíceis para mim mesmo, e que se assentasse a bunda, baixasse a cabeça e apenas continuasse a fazer as coisas, não teria tantos desafios para enfrentar. Outro dia assisti a um filme na televisão no qual os laudos periciais realizados na vítima de um crime resultaram na descoberta de que a garota tinha uma particularidade que era específica de pessoas que passam a vida olhando para o céu ou simplesmente para cima, uma calosidade no pescoço ou nuca, agora não me lembro mais. No fim descobriram que a garota passava quase as vinte e quatro horas do dia observando os astros num planetário onde sua mãe trabalhava. Aí o bom senso me diz que isso não existe, que o tempo não se perde, pelo contrário, se ganha, que a experiência vivida durante o tempo que a gente acha que está perdendo é o que conta e vai servir de fundamento, o resto é bobagem e enganação, revista de fofocas. Acima de tudo experimentar é muito mais prazeroso do que o esforço necessário para se manter dentro de um contexto de modelo pré-concebido onde nos encaixamos freqüentemente, e, como todo mundo sabe, um saco vazio não fica de pé sozinho. Mesmo assim, a sensação de que o tempo está passando e que muitos sacos vazios têm conseguido ficar de pé com ajuda de outros sacos vazios me surpreende e atravessa o caminho com freqüência. De qualquer forma meu modelo é outro, sou um tipo infiel a mim mesmo, vou experimentando apenas para satisfazer a minha curiosidade, como a garota do filme, olho muito para cima, mas porque os criminalistas me mostraram que posso ficar com essa calosidade, agora olho bastante para os lados também.

2.8.10

FAROFA GLOBALIZADA

Mais de um milhão de pessoas saíram de Paris no último sábado em direção às praias. Férias de verão. Se você pensa que aqui as coisas são diferentes do Brasil, você se enganou. Engarrafamento, filas para pagar o pedágio, estradas lotadas, cinco horas para chegar a lugares que se chega em duas horas. Classe média é classe média em qualquer lugar e se (des) organiza da mesma forma, só muda de língua e endereço, os ingredientes que juntos completam a receita da farofa é o mesmo. Todo mundo quer sair no mesmo dia, na mesma hora, parar nos mesmos frangos assados e etc. Ninguém pode esperar, ficar mais um dia e sair no seguinte quando a estrada tiver menos cheia O importante é sofrer as peripécias da saída juntos. A volta não será diferente, pode apostar.

A cidade ficou menos povoada, mas se o número de turistas diminuísse ficaria ideal. No entanto, eles aumentam, grupos, ônibus fretados, museus lotados, gente de todo lugar do mundo. Alguns educados outros menos, como o casal de americanos que se sentou ao meu lado enquanto eu conversava com um amigo num Café. A dupla espalhou suas sacolas em torno da mesa, como se o espaço fosse o quintal da casa deles. Não teria nenhum problema se o Café não estivesse cheio, e se eles não tivessem tido o azar de se sentar ao lado de uma senhora que acabava de fechar seu Liberation e se preparava para ir embora. Observamos a dificuldade da mulher para se levantar e sair. O casal havia bloqueado a passagem com as sacolas e para completar o maridão ainda esticou as pernas. A madame de aparência frágil e delicada, que poderia ter saído de qualquer peça ou conto de Tchecov, sentiu-se acuada e depois de pedir por várias vezes licença e não ser atendida (o sujeito moveu agumas sacolinhas de lugar e fez cara de paisagem), revelou seus truques de autodefesa. Rápida, ela simplesmente chutou as pernas do Mister Easy obrigando o mesmo a recolhê-las e assim abrir passagem. Imponente, saiu sem nem mesmo olhar para trás. Desapareceu no meio dos transeuntes. Gente fina é outra coisa.

Se tiverem a oportunidade de ver um filme espanhol chamado “Yo Tambien”, não deixem de ver. Sensível sem ser açucarado, politicamente incorreto porque aborda um tema delicado (síndrome de Down) sem cair na culpabilidade e mesmice, é emocionante. Estranho no começo e comovente a partir de então. Lola Dueñas e Pablo Pimentel (o ator principal que tem a síndrome) são impagáveis formando o par romântico. Você vai rir, vai se emocionar e sair do cinema sabendo mais sobre o assunto sem ter sido submetido a lições de moral ou coisa parecida. Vontade de amar todo mundo tem, senso de humor delicado, poucos, como é o caso do roteirista e diretor desse belo filme.