26.2.10

FOTÓGRAFOS.

Bem próximo de onde moro fica a Maison Europeenne de La Photographie. Sempre que estou aqui dou uma passada para ver o acervo permanente e se há alguma exposição interessante. Até 4 de abril a Maison está expondo fotos de três fotógrafos de abordagem e temática completamente distintas. Sarah Moon que fotografou o teatro real de Torino, Philip Bordas que além de fotógrafo é também escritor e que ocupa todo o segundo andar com suas fotos sobre os boxeadores africanos e também do encontro com o escritor autodidata africano Frédéric Bruly Bouabré, que ele registrou traduzindo toda a poética e misticismo do escritor, que se descobriu escritor através de uma anunciação divina e se pôs a inventar uma escritura africana inspirada na leitura de pedras ( o escritor era analfabeto até o momento que recebeu a mensagem divina, uma “viagem” difícil de compreender, mas muito instigante). E Elliot Erwitt, fotógrafo nascido em Paris em 1928, filho de russos que aos 10 anos se muda com os pais para os EUA e aos 16 é abandonado pelos dois que se separam. Três exposições completamente diferentes, que dialogam apenas pela qualidade dos fotógrafos, e por isso mesmo, cada uma está exposta em um andar diferente, e que não consigo imaginar outra forma de expô-las ao mesmo tempo. As fotos de Elliott Erwin se contrapõem as de Bordas pela riqueza de tipos urbanos, são incrivelmente bem editadas e em muitas delas você não consegue deixar de rir por causa das situações registradas. Por exemplo, num concurso do mais belo nudista (isso existe no interior dos EUA), ele fotografa um sujeito nu de costas para a lente e de frente para duas senhoras sobriamente vestidas que fazem parte do júri. O registro do sorriso constrangido e ao mesmo tempo interessado das duas é flagrante e demonstra o olhar sensível e rápido de Elliot. Em outras ele fotografa cães e seus donos, cortando a foto na altura dos pés do dono posicionados ao lado dos pequeninos cães. Há uma foto belíssima em preto e branco de sua primeira mulher com o recém nascido filho, ambos deitados sobre a cama, ela dormindo com apenas um peito de fora e o bebê fixando a mãe. A foto é dos anos 50, e nos transmite uma doçura que nenhuma palavra conseguiria transmitir. São muitas as fotos que registram uma dramaticidade que dispensa palavras, Jackie Kennedy no dia do enterro do marido, o registro da dor em seu rosto, Nixon quase que enfiando o dedo na cara de Kruchov que parece estar dizendo “vá se f....”, e etc... O moço está vivo, registrou a campanha de Obama.









Falando de fotógrafos e África, vale a pena conhecer a obra de Hans Silvester. Fotógrafo alemão radicado em Provence há quase três décadas. Pelo menos alguma foto dele qualquer um de nós já viu por aí. Em seu último livro ele documentou o povo que vive em torno do rio Omo na Etiópia. Um trabalho belíssimo, que foge a qualquer tipo de clichê e banalidade, registro de uma gente que pinta seus corpos e decora suas cabeças há milênios para ir a caça e para se esconder e não virar a própria caça. É difícil pensar em África sem fazer ligações com imagens que a gente pensa compreender do continente. Hans Silvester nos mostra o homem e sua cultura ainda intacta. Registra o povo com uma proximidade quase íntima, parece estar muito próximo mentalmente do que fotografa. Tive a oportunidade de conhecê-lo, e o privilégio de ver as fotos de seu novo livro que ainda está sendo preparado. O novo livro que será lançado até o final de setembro vai novamente abordar o tema África, só que dessa vez ele fez retratos com pessoas de todos as camadas sociais e as registrou enquadradas pelo batente de uma janela. Um documento da intimidade dessas pessoas. Hans trabalhou por muitos anos para National Geografic, na década de 60 registrou o norte do Brasil, Amazonas, Pará e etc... Na conversa ele me confidenciou que ainda guarda na lembrança uma cerimônia religiosa num terreiro de candomblé. Seus olhos brilhavam enquanto me descrevia as cenas do ritual. O homem é bom, sua vida está em seus olhos. Abaixo algumas fotos de seu último livro.









24.2.10

NEVE DE ISOPOR E LÁGRIMAS DE CROCODILO

Você já se emocionou assistindo uma ópera? E dentro de um museu? Diante de um Van Gogh? Caravaggio? Michelangelo? Folheando um livro de fotografias? E no meio da leitura de um romance? Poesia? Se a resposta para todas as minhas perguntas foi negativa, então você não é humano, é uma barata e tem aparência de humano.

Ontem me emocionei várias vezes enquanto assistia La Sonâmbula, ópera do compositor siciliano Bellini. Mesmo sabendo que é tudo de mentirinha e que o que estou assistindo se enquadraria perfeitamente num escaleto de qualquer novela barata, não consigo me desconectar quando o conjunto da obra é bom. Nesse caso cantores, cenário, direção, música. Então sigo a história banal que já sei decor e salteado e conheço começo, meio e fim e torço pela felicidade de Amina, fico com raiva da Lisa e sinto pena do Elvino. Tudo é muito simples e acontece num passo de mágica nos livretos de ópera, sem nenhuma preocupação com o perfil psicológico dos personagens (exceto nas obras de Wagner), ou com o aspecto temporal. Os personagens amam num minuto e odeiam no outro. Fazem juras de amor numa cena e na próxima estão se matando. E eu acredito em todo mundo, do conde ao cartorário, na mãe da sonâmbula e também na neve de isopor. Na montagem da Bastille (produção vienense de 2001) que fui assistir, o diretor suíço Marco Marelli coloca Amina sobre uma mesa (que estava sendo usada na cena do casamento) quando ela está sendo julgada e acusada de traição por Elvino. O palco foi inclinado para que todo o publico consiga ver todos os detalhes com profundidade. Deitada feito um pedaço de carne sobre a mesa, ela é humilhada e desacreditada depois de ter feito juras de amor, e trocado seu único patrimônio ( o amor) por todos os bens e posses de Elvino. Inocente, foi flagrada por todo mundo no quarto do conde depois de uma noite de sonambulismo. O coro fala pelo povo, duvida da integridade da mocinha. Eu mais uma vez estou em desacordo com a maioria. Sei que ela é sonâmbula e não teve intenção alguma (apesar de achar que ela poderia ter sido um pouco mais firme nas investidas do conde logo no começo), e espero até a última ária para soltar a respiração. Não estou nem ligando se você acha que sou bobo ou cafona. Gosto de entrar na história e ser conduzido por ela até as lágrimas. Assim como gosto de imaginar o artista enquanto fazia tal quadro ou escrevia seu romance para me aproximar do que estou vendo. Para mim tudo se confunde, o autor, sua vida e obra. Não consigo desassociar uma coisa da outra, mesmo porque sei que enquanto ele estava produzindo o que hoje me emociona, sua emoção estava toda concentrada na ponta de seu pincel ou caneta, ou dos dedos que hoje tocariam as teclas do computador. Não acredito em artista que diz que uma coisa é sua obra, outra é ele. Sim, acredito que ele possa criar algo completamente diferente do que entende como seu mundo, representar uma realidade fictícia nada parecida com a sua, mas isso não quer dizer que sua emoção e inconsciente não estiveram presentes.

Comprei um ingresso caríssimo com antecedência para ver o soprano Natalie D’essay. A moça adoeceu e foi substituída por uma soprano da Costa Rica chamada Iride Martinez que deu conta do recado muito bem. Fui avisado por e-mail no dia anterior. Organização do Opéra Bastille, que toma nota dos nossos endereços e telefones na hora da compra do ingresso. Apenas nos gestos, alguém deveria avisá-la que não precisa exagerar, basta cantar e se movimentar normalmente, nada de mexer a cabecinha e os braços como se fosse uma marionete. Mas ela ainda é jovem, tem tempo para aprender e vai longe com sua bela voz.

22.2.10

"ANDER" E TODOS NÓS

Semana passada duas ou três pessoas haviam me falado que eu deveria assistir um filme chamado “Ander”. Ontem no almoço o filme foi novamente o assunto, só que dessa vez quem fez críticas e dissertou sobre a história foi um amigo que vai quase que um dia sim e outro não ao cinema e que por isso mesmo tem uma visão mais crítica do assunto. Gostei de ouvi-lo. Outros dois presentes no almoço já haviam visto o filme, falaram tanto que o dono da casa acabou dizendo que até as cinco eles deveriam se mandar, porque ele também queria ver o filme. Apoiei sua decisão e disse que também iria na sessão das 19 horas. Lá fomos nós, Giusepe e sua boina basca, eu e minha casquette qualquer coisa. “Ander” que dá o título ao filme, é também o nome do personagem principal, um camponês que vive num vilarejo basco espanhol no final dos anos 90. Ander mora com a mãe viúva e a irmã que se casará em breve, está cercado de amigos broncos e de vez em quando se comporta como tal. Sua vida nada mais é do que previsível. A previsibilidade da vida daqueles que moram num vilarejo no meio do campo, onde nada acontece a não ser quando algo ou alguém de fora aparece para, querendo ou não, alterar o rítmo do lugar e das pessoas. É isso o que acontece quando Ander quebra a perna e precisa de alguém para substitui-lo nos trabalhos domésticos. Um trabalhador peruano é indicado por um amigo e passa a viver e conviver com a família. Não vou contar o resto do filme. Mas posso dizer que é um bom filme, que fala de uma maneira particular dos medos e angústias das pessoas solitárias (e das que se acreditam não solitárias e não angustiadas), de amor, desamor, de gente aparentemente rude. O filme foi feito por Robert Castón, um sujeito que organiza o festival internacional de filmes GLBTXYZ... ( x y z e pontinhos fica por minha conta, já que há mais diversidade entre o céu e a terra que a vã filosofia jamais conseguirá reduzi-la num único alfabeto) de Bilbao desde 2004. É seu primeiro longa, antes ele já fez alguns curtas. Na verdade a história do filme não me surpreendeu. Desde o começo a gente sabe que mudanças virão, mas a maneira como o filme foi feito é que o faz especial. A aridez do filme, suas cores frias amareladas, a câmara muitas vezes parada enquadrando a cena, silêncios entre os diálogos, olhares que dizem mais que palavras, tudo isso valoriza o filme, que no fundo é simples e sem riquezas de recursos, mas passional, mesmo que classicamente passional. Tudo isso faz o conjunto da obra e a qualifica como um bom filme, que nos faz lembrar de que dentro de nós a muitos sentimentos escondidos, outros esquecidos e outros que ainda nem foram descobertos, e que a qualquer momento podem nos assombrar. Bom filme.

20.2.10

FOME DE VIVER

O sol reapareceu. O mundo saiu para as ruas, e eu saí junto. Caminhei um bocado, acompanhei Sebastien nas compras, dei palpites, rodamos a cidade, tomamos café e acabamos entrando no cinema no final da tarde. Assisti “L’autre Dumas”, filme que conta a história de um período da vida de Alexandre Dumas e sua relação com o colaborador August Maquet. O filme tem Depardieu como chamativo, mas mesmo assim, não funciona. Não se aprofunda em nada, passa a margem da história e é superficial até não mais poder. Enfim, como quase tudo o que é feito hoje, não se debruça sobre a história com detalhes porque tem medo de que o espectador perca a paciência. Porque tudo tem que ser rápido, não pode se arriscar a ser chato, tem que ter ação e movimento, parecer com uma aventura e conquistar o público. O resultado: um Dumas que mais parece um conquistador de quinta, cheio de confiança e auto estima e um Maquet bobo e cheio de complexos e inveja, caricaturas feitas para agradar a todos, um mundo dividido entre o bom e o mal, o talentoso e o esforçado mas sem chances. Uma bobagem com cenas bem rodadas e belas paisagens. Não perca seu tempo.

À noite reunião de amigos na casa de um amigo de outro amigo que podia levar outro amigo. Lá fui eu a tiracolo. Não estava em meus melhores dias (ou noites) mas consegui me sentir confortável. Um senhor com quase noventa anos, da Normandia, sentou-se ao meu lado e passamos a conversar sobre milhões de assuntos. Não sei como o assunto foi parar na segunda guerra, resistência, alemães e etc... Fiz perguntas que sempre quis fazer e ainda não tinha tido a oportunidade. Medo do front? Matou alguém? Se apaixonou por alguém nessa época? Durante a conversa o sujeito me oferecia vinho toda vez que se servia. Quando seu copo estava vazio o meu ainda estava pela metade e ele completava o seu e o meu. Dessa forma acredito que ele tenha bebido o dobro que eu. Seu rosto me lembrou o de Peter, meu amigo austríaco já falecido. Muitas vezes durante a conversa imaginei que talvez Peter hoje teria a mesma aparência desse senhor, e me perguntei se teria a mesma energia. Os olhos ainda cheios de vida desse homem da Normandia me fizeram invejá-lo. Não o seu passado ou a sua vida, mas sua alegria e vontade de viver, apesar de. Não sei o que faz com que uma pessoa tenha mais brilho nos olhos do que outras. Talvez a receita seja acreditar que apesar de... Uma fórmula que poucos conseguem preparar na medida certa.

Agora de manhã preparei um boeuf borgignon para o jantar. Adoro boeuf borgignon, que é uma espécie do nosso cozido, feito com carne de segunda, jamais de primeira em razão do sabor, cozido com vinho tinto e outras especiarias. A carne deve cozinhar por duas ou três horas para amolecer e o molho engrossar. Grosseiramente falando, um gulasch refinado. Antes de servir vou preparar batatas sauté para acompanhar. Hoje acordei com fome. Bom sinal.


16.2.10

OUTRAS BANDAS


Não gosto do carnaval em nenhum formato. Nem da maneira como é festejado no Brasil, nem em outros países. Conheço a festa como é festejada na Áustria, um fiasco muito mais parecido com um desfile fúnebre, conheço o de Colônia na Alemanha, um pouco mais engraçado, mas nem por isso cheio de graça com seus festivais de piadas, e conheci o de Paris hoje, gatos pingados que se pintam ou colocam perucas coloridas e vão trabalhar ou saem nas ruas demonstrando que estão festejando. Hoje de manhã, no metrô, foi constrangedor ver alguns usuários vestidos de terno e usando um nariz de palhaço, ou moças de tailleur cinza escuro e óculos pink ou perucas vermelhas. Enfim, não consigo achar graça nem me motivar. Mas tenho muitos amigos que se divertem ou desfilam em escolas de samba. De qualquer forma não sinto a menor falta do Brasil nessa época. Não teria viajado porque todos os lugares estariam cheios, e ficar em São Paulo poderia ser um convite para o tédio, então... vamos falar de arte, música e cultura que é o melhor remédio para pessoas como você e eu que precisam de um pouco mais para se divertir. No sábado fui assistir uma avant-première do musical “A Little Night Music” no Châtelet. O que vou dizer não vai agradar muita gente, mas não nasci para agradar muita gente, então aí vai: musical para mim é como um pirulito vagabundo e sem gosto, você compra por causa das cores e quando começa a chupar se decepciona porque descobre que por trás das cores não tem gosto nenhum. Lógico tem exceções, que eu sinceramente não estou a fim de discorrer. “A Little Night Music” foi musicado por Stephen Sondheim, e estreou em 1973 em New York. A primeira parte do musical demora muuuuuuito até que você descubra quem é quem, e depois de uns vinte minutos a peça parece que não vai se desenvolver, mas depois ela se encaixa e vai. A principal canção está na segunda parte e até ela chegar você já sabe tudo o que vai acontecer porque tudo é muito óbvio. E caricato. E raso. E, ai que sono. Quando comparo com qualquer Ópera, por mais bufa e dramalhona, percebo quão profunda ela pode ser perto de um musical. A começar pela intensidade dramática, depois, o texto menos açucarado, que pode até ser fraco ou ingênuo, mas em razão da qualidade da composição, do conjunto de vozes e da orquestra, você é engolido e esquece o que é ruim e seus sentidos absorvem somente as coisas boas. “A Little Night Music” tem como “grande dame” Leslie Caron, lembram dela? (Sinfonia de Paris, Gigi, Lili, O homem que amava as mulheres do Truffaut) Pois é, está inteira e canta e dança (só um pouquinho) e valeu tê-la visto em cena. Mas para mim deu, antes de morrer vou ver outro musical de novo, lógico que ele terá muitas malas (você já reparou que em todos os musicais há muitas malas e gente indo ou vindo de viagem?, também não sei por que, mas repare), vou pegar uma e vou me embora para o paraíso.

E na segunda feira a noite fui a Salle Pleyel ouvir Chopin pelas mãos do Daniel Barenboin. Um diálogo com Deus é pouco para descrever a emoção. O homem está em plena forma e Chopin não precisa de malas, nem de gelo seco, nem de gente dançando, basta um piano e alguém que saiba interpretar suas musicas. E como Barenboin sabe fazer uso de suas mãos! É bom dirigindo e é bom tocando. Silêncio total, sala lotada, seis bis e a platéia não queria ir embora. Uma saia justa: entre um bis e outro alguém resolveu tirar uma foto, prontamente Barenboin parou de tocar e chamou atenção da pessoa dizendo em alto e bom som o seguinte: “pare com isso! primeiramente foi dito que é proibido fotografar e depois, eu acho isso um exagero.” Não sei onde a pessoa enfiou a máquina de fotografar, mas espero que nunca mais tire de onde a colocou. Que mania é essa fotografar tudo o que se vê! E para que? Aqui nos museus você vê pessoas se posicionando ao lado das telas para serem fotografadas. Ouvi toda a primeira parte de olhos fechados e agradeci a Deus por ter dado vida a Chopin, a Barenboin e por meu par de ouvidos.

13.2.10

ATEMPORAL

Ontem o canal de televisao Arte (um canal franco alemao) transmitiu ao vivo a apresentacao do filme Metropolis do Fritz Lang. O filme foi transmitido na íntegra pela primeira vez depois da descoberta de uma cópia sem cortes em Buenos Aires, e a trilha sonora foi tocada ao vivo pela orquestra da radio Berlinense. Eu conhecia Metropolis colorido e com trilha sonora feita por Fred Mercuri entre outros. O filme em preto e branco é infinitamente mais rico que o que conhecia e nao da para deixar de pensar em como muitos outros filmes, como por exemplo Blade Runner, se alimentaram de suas ideias. Depois da exibicao, ainda pudemos assistir a entrevistas com os descobridores da fita do Museu do cinema em Buenos Aires e com o próprio Fritz Lang. O filme havia sido mutilado em 1927 por distribuidores alemaes e americanos e foi descoberto por acaso na Argentina depois de 81 anos. Uma preciosidade bem como a entrevista com Fritz Lang, elegantésimo, vestido com um terno risca de giz, falando alemao com seu sotaque vienense e afirmando que foi desencorajado muitas vezes enquanto tentava captar recursos e tambem quando fazia o filme. Ainda bem que insistiu e acreditou em suas ideias, alias uma sucessao de previsoes do que ocorreria no mundo nas decadas seguintes. (escrevo de um pequeno notebook cujo teclado nao corresponde ao da lingua portuguesa, portanto, ignorem a falta de acentos e etc)

Segunda (dia 15) a noite assistirei Daniel Barenboin na Sala Pleyel. Por acaso, passava por ela quando vi uma fila enorme que imaginei seria para a apresentacao da Boston Symphony com regencia de James Levine. Mas vejam só, a crise pegou a orquestra de frente, ela perdeu seus principais patrocinadores e teve que cancelar a tourné europeia. Quel domage! Mas para minha sorte, parei, entrei, e consegui um ingresso para ver Barenboin na segunda a noite. Uma querida amiga insiste em dizer que nasci com o bumbum para a lua, as vezes (mas so as vezes, porque trabalho muito para que a sorte fique do meu lado) sou obrigado a aceitar. No programa somente Chopin e o mocinho no piano. Por outro lado, nao consegui ingressos para a Filarmonica de Berlin dirigida por Simon Ratle, queria muito ouvir Brahms tocado pela berliner, mas vou insistir, o bilheteiro disse que é possivel encontrar ingressos de ultima hora, para tanto, se quiser, terei que estar lá na noite de apresentacao, se tiver saco irei, senao, fica para a proxima.

Hoje há uma materia no Le Monde sobre o iPad. O autor escreve com ironia sobre o novo meio de leitura e suas possibilidades, e sobre a disputa entre Amazon, Google e Apple. Como controlar essas empresas e os editores que irao depender deles e etc... Sinceramente me sinto um pouco retrô em relacao ao livro eletrônico e outras mídias. Nao tenho vontade de trocar meus livros de papel por uma caixinha com uma biblioteca dentro. Gosto do livro, do papel, dos varios formatos, do cheiro, das bibliotecas entupidas de livros e de folheá-los. Ainda ontem havia pensado sobre como o livro eletrônico vai mudar a paisagem nos metrôs. Fiquei tentando imaginar todas essas pessoas que hoje carregam seus livros e concentradas os lêem enquanto viajam de um lugar a outro, carregando seus livros eletrônicos de plástico, uma coisa antiséptica, que deverá ser limpada com um paninho umidecido em alcool. Sei que as novas tecnologias acabam sendo integradas na vida cotidiana e a gente acaba nem se lembrando do que ficou para trás, mas eu nao gostaria de viver sem o livro de papel, acho que muito do mundo sensorial se perde. Em alguns momentos me pareco com um desses velhos que nao quer ver seu universo alterado, o velho sofá deve continuar no mesmo lugar, nem pensar em mudar o estofado, frequentar o mesmo restaurante por décadas, fazer as refeicoes na hora certa, enfim, sinto que também estou sendo atropelado por novas tecnologias. Envelheco, mas nao quero que o mundo comece a me agredir com suas invencoes pouco romanticas. Sorry.

11.2.10

EXQUISITICES, MAU HUMOR, STALIN E DUSSOLIER

Um morador de rua faz questão de se sentar no topo da escadaria que serve de acesso aos usuários da estação St Paul do metrô. Ele se acomoda em seu lugar todos os dias entre 7 e 8 horas da manhã, obrigando quem sobe ou desce a desviar o caminho e provocando um congestionamento de usuários apressados. Somente nesse horário de pico, o resto do dia ele desaparece, não o vejo pelo bairro. Em São Paulo tem um sujeito que faz exatamente a mesma coisa na estação Marechal. Deve haver algum motivo que eu desconheço. A única diferença é que o daqui fica lendo jornal, ou finge que lê, e o de São Paulo implora por um cigarro.

Todas as vezes que faço baldeação na estação de metrô Concorde, a mesma cantora de rua está cantando ave Maria. Não importa o dia nem o horário. Coincidência? Eu já acho que ela me escolheu para Cristo. Escutar ave Maria várias vezes ao longo do dia provoca meu lado laranja mecânica adormecido. Não sei quanto tempo vou suportar passar por ela sem chutar seu pratinho de moedas.

Uma das caixas do Monoprix (supermercado onde quase todos os dias entro para comprar alguma coisa) sofre de mau humor crônico. É lenta, não cumprimenta ninguém, não olha para o rosto das pessoas, não diz Bonjourrrrrrr nem Bomsoirrrrrr, e de vez em quando trabalha com os foninhos de ouvido deixando ainda mais claro que não está nem aí com os clientes. Hoje ela tentou me infectar. Eu tinha que pagar 17,01 euros e dei a ela 20 euros. Ela pegou os vinte euros da minha mão e sem nem olhar para mim e nem expressar um por favorzinho antes, disse que queria 0,1 centavo. Respondi que não tinha. Ainda sem olhar para mim ela resmungou qualquer coisa que não entendi. Em seguida me deu 3 euros e repetiu que queria 0,1 centavos esticando a mão. Eu repeti que não tinha, mas que todos os dias entrava para comprar alguma coisa e que lhe daria 0,1 centavo da próxima vez que fosse fazer compras. Ainda sem olhar para mim, em tom de ironia ela me disse que nunca havia me visto por lá. Respondi que ela não poderia ter me visto porque não está habituada a olhar para os fregueses que passam por ela. Seu rosto enrubesceu. Soltou as três moedinhas que segurava entre os dedos na palma da minha mão e pela primeira vez desde que cheguei aqui eu a ouvi dizer “au revoir Monsieur”. “Bon Journée Madame”.

Ontem fui novamente ao cinema. Fui assistir “Uma execução ordinária”, filme que acredito ainda não está sendo exibido no Brasil. O filme, dirigido por Marc Dugain, que também é autor do livro, não vai agradar muita gente. É pesado, lento, e escuro, como a União Soviética na época de Stalin, mas vai agradar aos fãs de André Dussolier e aos que ainda não são e serão. Dussolier representa Stalin no filme. Um homem já alquebrado e que usa o poder para receber os benefícios de uma médica(Marina Hands, muito boa atriz) que tem poderes de curar com as mãos. Não conhecemos muitas imagens de Stalin por isso mesmo fica muito difícil avaliar o trabalho de Dussolier. Mesmo assim, Dussolier consegue nos fazer acreditar que o homem que vemos na tela é Stalin. Perfeito, desde a maquiagem até a postura física, os gestos contidos, a frieza e crueldade. O roteiro do filme não tem nada de extraordinário e sua história é simples, narra apenas o que contei duas ou três frases acima. Eu me arrisco a dizer que Dussolier é o próprio filme, sem ele, o filme não existiria. Sessão das 15:50, sala cheia, silêncio total.


9.2.10

ARTE E POLITICAGENS

No último dia dos austríacos (domingo), logo de manhã visitamos o Museu d’Orsay. Por pouco não fomos os primeiros a chegar. A entrada para a visitação do Museu d`Orsay foi gratuita. Deu para passear e ver as obras com calma, mas depois de uma hora o museu lotou, dificultando o passeio e o privilégio de poder parar em frente as obras sem nenhum bocó tirando fotografia. Foi bom rever Cézanne e seus vizinhos de parede, mas cansativo. O ritmo lento e necessário para ver as obras é exaustivo. Não me sinto tão cansado depois de correr 45 minutos ou caminhar uma hora e meia em ritmo acelerado. Saímos de lá a fim de ver outra exposição. Fomos a Pinacoteca. Os cartazes anunciavam com estardalhaço Vermeer, Van Goch e outros holandeses. Decepcionante exposição, não pela qualidade mas pelo número de obras expostas. Os outros holandeses menos atraentes eram maioria, Vermeer estava representado com apenas uma ou duas de suas obras e Van Goch com outra, uma decepção. Tenho muita vontade de ver uma coletânea apenas com as obras de Vermeer.

Abaixo um exemplo de política de boa convivência, ou (só de brincadeirinha) a verdadeira anexação(anschluss)da França pela Austria.


A noite assisti a um programa na televisão onde o tema era o presidente Lula. Além do intermediador, havia dois políticos franceses (um político do PS e outro do UMS) e dois convidados brasileiros, Alfredo Valladão, que é professor do instituto de estudos políticos e Diva Pavesi, escritora e jornalista. Gostei da exposição clara e realista dos brasileiros, mas de qualquer forma há uma predisposição generalizada a gostar do “cara” apenas por se tratar de alguém de origem humilde que chegou ao poder. Lógico que vejo méritos, mas vejo dificuldades também. Por outro lado hoje se fala do Brasil com expectativas positivas, não como na época em que eu morava na Áustria, cujas notícias de jornal não passavam nem de perto dos cadernos de economia ou desenvolvimento.

O número de americanos presentes no curso é enorme. Uma desgraça o sotaque dessa gente. Isso não quer dizer que não são simpáticos ou que tem dificuldades para aprender. Uma das americanas, de origem italiana, é especialmente doce. Vai se casar com um francês em agosto, estudou relações internacionais nos EUA e faz um trabalho de defesa de tese aqui. Hoje além de Adisha, uma garota extremamente tímida do Siri Lanka que costuma me acompanhar em silêncio durante todo o percurso de volta para casa, Micaela (a americana de origem italiana) também veio junto. Contou-me um pouco sobre seus pais, italianos de Roma e Nápoles, que deixaram a Itália para “fazer a vida” em Long Island. Estão tristes porque a filha resolveu voltar para a Europa. O pai não consegue nem falar com ela por telefone, tudo o que consegue fazer é chorar. Micaela diz temer pela saúde dele. Não sabe se ele vai agüentar a notícia de seu casamento com um francês. Hoje a noite ela vai comunicá-lo por telefone. Estou curioso. Se Micaela não aparecer no curso quinta feira, vou deduzir que viajou para o enterro do pai.

5.2.10

UM POUCO DE TUDO.

O curso entrou numa fase difícil. A gente tem a impressão de poder compreender tudo e dominar a gramática, mas a língua francesa é cheia de exceções e você acaba se confundindo. A língua alemã em comparação tem regras rígidas, fixas (apesar das declinações) e pode parecer dura aos ouvidos, mas é mais sistemática, dá para seguir como se viesse com um manual de instruções. Tenho que ajustar o meu cérebro, colocar uma para dormir e outra para funcionar, mudar entonação, recusar o chucrute e aceitar o fois gras. Há progressos, e eles são audíveis.

Três amigos austríacos chegaram ontem a tarde para passar o final de semana comigo. O apartamento virou uma torre de babel, já que o Sebastien não fala alemão e eles não falam francês. Automaticamente passamos a usar o inglês como língua comum para que todos pudessem se entender. Mas a coisa não é tão simples assim. Quando uma das partes não entende o que a outra quer, faço o meio campo. Então meu cérebro tem que se desdobrar para passar a bola de um lado para o outro. Ainda não fui carregado de maca para fora do campo, mas ontem a noite depois de muitos goles de vinho, quase pedi para sair.

Escrevo este post enquanto aguardo entregadores da nova máquina de lavar encomendada por Sebastien. Os entregadores ligaram às 9 horas da manhã dizendo que estariam aqui até as onze. Acho que não há muita diferença entre entregadores de mercadoria no mundo inteiro, já passou do meio dia e nada dos sujeitos chegarem. Lá fora o sol brilha e eu gostaria de caminhar um pouco com ele aquecendo minhas costas.

Há uma discussão aqui sobre uma lei que tem como objetivo proibir o uso da burca. Estima-se que a vestimenta que cobre a mulher inteira permitindo apenas dois pequenos buracos para que ela possa enxergar é usada por apenas 300 mulheres aqui na França. Lógico que a lei está provocando discussões e ataques de todos os lados, direita e esquerda estão quase se pegando em ano eleitoral. Sarkozi foi entrevistado em programa exclusivo na semana passada, com a presença de 11 cidadãos representando a população francesa e lhe fazendo as mais variadas queixas e perguntas. Saboneteou todo mundo. Tem resposta para qualquer pergunta, mas como qualquer outro político, ignora o que lhe foi perguntado e responde o que quer. Sobre a burca fico pensando sobre a importância de uma lei feita com o intuito de proibir essas 300 mulheres de saírem de casa vestidas conforme suas crenças e cultura. A França é um país com tradição humanista, dá abrigo a imigrantes de todos os lugares do mundo, e nunca perdeu culturalmente, pelo contrário, os franceses cultivam seu passado, conhecem sua história e os novos franceses (filhos dos imigrantes) acabam incorporando costumes e cultura francesas em suas vidas. A quem interessa toda essa discussão? O presidente da Frente Nacional, partido ultra nacionalista do Jean Marie Le Pen vai de mal a pior, sua situação não é nada fácil. Ataca para todos os lados para atrair mais votos para seu partido moribundo. A esquerda, como em qualquer outro país, no momento continua perdida, não está sendo capaz de incentivar gente com valores éticos e morais a lutar por seus ideais. Sobra o partido pseudo chique, que pensa o mundo economicamente, que descarta qualquer posição humanista e visa um mundo do progresso, custe o que custar, onde o ser humano vale o que pode consumir.

Quase duas horas da tarde. Os entregadores da máquina de lavar roupas acabam de interfonar. À bientôt.

3.2.10

MIS EN SCENE.

Desde ontem tenho um novo vizinho. O sujeito, que nos cumprimenta quando passamos por ele resolveu se instalar na entrada de uma passagem que liga a rua lateral do prédio onde estou morando com a da entrada principal. De manhã cedo, quando saio para ir ao curso ele já está de pé, dobrou seus pertences, encostou seu colchão na parede e saúda todo mundo. Sua cama é como um saco de dormir, com zíper e tela para respirar. O número de gente que vive na rua aqui em Paris é muito grande, bem como de tipos que falam sozinhos enquanto caminham ou no metrô. Hoje quando voltava para casa observei um sujeito que fazia anotações num pequeno bloco. Suas anotações eram traços, como um desses quadros gráficos que demonstram por exemplo o acréscimo ou a variação da inflação. Mais nada. Nenhum número, ou palavra. Riscos para cima e para baixo.


Ontem assisti a uma aula de história da arte na Sorbonne. O professor, um sujeito de meia idade, não se deixou incomodar com dois alunos que se ocupavam com seus celulares. Calmamente, com sua voz de veludo, explicou a pintura Flamenga de Pieter Brueghel, fez anotações no quadro negro e a projeção de um filme. Quase no final da aula passou a fazer perguntas. Escolheu exatamente os sujeitos que haviam se distraído com os teclados de seus telefones. Blasé, bem despachado e sem alterar o tom da voz, expôs a ignorância dos rapazes. Depois agradeceu a quem ouviu suas explicações e encerrou a aula. Foi aplaudido por quase todos alunos, exceto pelos dois, que voltaram a fuçar os teclados de seus celulares.


1.2.10

PÃO, VINHO, MUITA ÁGUA E O PARAÍSO

Dei de cara, por acaso, com uma exposição de fotografias que mostra Paris inundada em 1910. O Kassab pode usar como argumento: “se até Paris já foi inundada!” Havia um texto explicativo na entrada que dizia que o dique que segurava as águas que fluíam para o Sena estourou e inundou a cidade. Até hoje não se conhece o motivo que provocou a inundação. As fotos são impressionantes, e parte da cidade ficou inundada da segunda quinzena de janeiro de 1910 até fim de fevereiro. O nível do Sena só voltou ao normal na primeira quinzena de março.

Hoje voltei para casa mais cedo. Fiz minhas tarefas e preparei um jantar para dois queridos amigos. Um é Sebastien com quem estou dividindo o apartamento, e o outro é o André Larquier de quem já falei aqui, e que tem me proporcionado grandes prazeres me convidando para assistir óperas no Chatelêt ou na Bastille. Fiz uma salada caprese de entrada e salmão com alho poro e purê de batatas como prato principal. Para a sobremesa comprei um sorvete delicioso que provei outro dia na sorveteria Amorino, e para finalizar queijos, Reblochon que eu não consigo parar de comer quando começo, e outro feito de leite de cabra. Comme il faut. Sebastien disse que meu purê de batatas estava melhor que o de sua avó. Tudo isso regado a um bom vinho tinto, que recomendo: Saint-Chinian, da região de languedoc-Roussilon, no sul da França.

André e Sebastién

Domingo acordei com o som de vozes do coral da Eglise Saint Paul. A parte traseira da nave da igreja é minha vizinha. Por alguns segundos acreditei estar no paraíso. Vozes lindas, lá fora um sol bonito esquentava as costas da igreja. Abri a janela e conversei um pouquinho com São Miguel Arcanjo. Agradeci bastante e pedi para ele acelerar alguns pedidos. Envelheço, mas continuo ansioso.

Bumbum da St Paul - Foto tirada da janela do meu quarto