31.3.12

EPIFANIAS


Não existe medidor de intensidade de sentimentos. Cada um de nós se comove de acordo com a variedade e a intensidade de experiências a que foi submetido no decorrer da vida. Nem sempre conseguimos diferenciar uma experiência do tipo divisora de destino com uma meia boca. Às vezes confundimos tudo, acreditamos que a meia boca é o topo do monte Everest e tudo que antes vivemos não chega nem aos pés dela, e que aquela que seria a divisora de destino não está nem a altura do pico do Jaraguá. Só depois de muito tempo percebemos que era o contrário. Às vezes nem nos damos conta, as experiências passam batidas, não são assimiladas ou registradas. Na maioria das vezes você experimenta uma situação, mas ela não ultrapassa a epiderme. Fica na superfície, do lado de fora, como se você não tivesse nada a ver com aquilo, como se estivesse num museu qualquer, observando objetos paleolíticos protegidos por uma redoma de vidro que separam você do artista primata no name que na verdade é o mais importante de todos que vieram depois. Não sei a razão disso tudo, por que em algumas situações percebemos que aquele momento está mexendo com a gente, alterando o modo de pensar e marcará o resto de nossas vidas e por que em outros, a realidade está nua na nossa frente e a gente não sente a menor excitação por ela. Mas sei que é assim que acontece. Um muro invisível se coloca entre você e a experiência (chamo aqui de experiência qualquer acontecimento em que você esteve envolvido passiva ou ativamente). Talvez naquele momento os poros estivessem fechadinhos, defendidos, não querendo dialogar, não querendo permitir que você fizesse parte. O que sei é que o que comove algumas pessoas, não comove outras, o que me faz chorar pode provocar risos em meus semelhantes. E sei também que de repente e sem aviso, aquilo que você experimentou e não foi absorvido, o que ficou do lado de fora, aparece na superfície da sua consciência e começa a reclamar atenção. Você não fez nada para que isso acontecesse, não teve a intenção de pensar sobre um fato que não tem nem idéia de quando aconteceu, mas agora é como se você tivesse passado a usar óculos. Você passou a enxergar melhor e o que não te tocava passou a te tocar, o que estava longe ficou perto. O que aparentemente havia ficado do lado de fora, está dentro. E você sente intensamente, percebe as coisas intensamente, mesmo que com atraso de dias, meses ou anos você consegue compreender o que e como aquela experiência mudou sua vida. Você entende que se não fossem aqueles objetos paleolíticos, hoje você não usaria facas para cortar seu bife, não desceria a serra de automóvel e não comeria geléia de frutas vermelhas de olhos fechados porque alguém já provou antes e não morreu envenenado. A não ser que você seja incapaz de compreender a dinâmica do mundo, nessa altura do campeonato você já percebeu que ele não é construído apenas sob pilares de sabedoria ou certezas. Às vezes gostaríamos que assim fosse, mas você tem que admitir que a vida seria sem graça e no mínimo previsível se aqueles que contribuem para que ela seja viva fossem todos guias espirituais desenvolvidos a fim de fazer o bem. Mas eu estou indo longe demais. Falava da intensidade de sentimentos, do medidor que não existe, do muro invisível, e vim parar na dinâmica do mundo que não é feito de certezas, muito pelo contrário. Talvez porque uma coisa tem a ver com a outra. Porque quando você pensa ter certezas, você reduz a quantidade de possibilidades contidas nas dúvidas e reduz a variedade de sentimentos que essas dúvidas teriam proporcionado.

20.3.12

AI QUE VERGONHA!


Assisti no sábado a tarde o filme “Shame” de Steve Mcqueen com o ator Michel Fassbender. Fui com um amigo que, ao contrário de mim que demoro para integrar novidades em minha vida, é ligado a uma variedade delas e absorve tecnologias, dietas, modalidades de exercícios físicos e modas como uma esponja gigante e gulosa. Desde que nos conhecemos ele já tentou me convencer sobre inúmeras dietas ou pílulas de rejuvenescimento sem nenhum sucesso, sem falar na tentativa de me inscrever em academias de ginástica que para mim tem o mesmo efeito de um vampiro quando vê um crucifixo. Suas dietas são sempre milagrosas e radicais, baseadas em apenas um tipo de alimento, agora por exemplo, ele está seguindo uma cujo principal ingrediente é a pimenta. Segundo ele, a pimenta sacia rapidamente a fome e bla bla bla e por isso há alguns meses ele só tem se alimentado de pimenta com algum acompanhamento. Antes eu tentava argumentar contra suas esquisitices e alertá-lo sobre os danos que eu acredito que ele está provocando no próprio corpo (porque não tenho a menor idéia se tenho razão ou não, apenas sigo o meu bom senso), mas desisti, primeiro porque percebi que ele não me ouve, depois porque antes de conseguir convencê-lo ele já mudou de dieta e meus argumentos se tornaram obsoletos. “Shame” tem todos os ingredientes para fisgar pessoas como meu amigo. Foi rodado em New York, cidade símbolo das neuroses urbanas, as cenas internas com a ajuda da boa fotografia ilustram bem o ambiente árido em que a história se desenrola, ator e a atriz têm o physique du role perfeitos e o tema principal, a compulsão sexual, é um grande atrativo desde Adão e Eva. Não conhecemos as razões que levaram Brandon, o protagonista do filme, a se tornar compulsivo sexual. O sujeito já é compulsivo desde o início. Masturba-se a toda hora, faz sexo de manhã, a tarde e a noite, não consegue se controlar nem no trabalho, busca o prazer incansavelmente. Ate que sua irmã aparece e se hospeda na casa dele obrigando-o a interromper seu ciclo vicioso. Tudo bem, entendi, e entendi também que alguma coisa ele tenta sufocar ou compensar com tanto sexo. Mas ao contrário de quando lemos um conto, que pode contar uma história convincente sem dar detalhes da vida pregressa ou futura da personagem, no filme, a ausência do conhecimento das razões que levaram Brandon a se transformar nessa máquina de fazer sexo é um grande obstáculo e talvez um detalhe importante que compromete sua qualidade. Boa bilheteria ele certamente renderá, mesmo porque ele funciona como um espelho para a maioria das pessoas que não está interessada em refletir sobre nada, quer apenas ver as cenas para depois revelar ou criar taras e propagá-las em público (é “mega importante” enumerá-las e compartilhá-las com os amigos, melhor ainda publicá-las no “Face”). Para mim, o filme é esteticamente bem feito, mas peca por superficialidade e falta de argumentos. Entrei e sai da sala do cinema sem sentir nada e sem ser provocado a refletir sobre o assunto. Reconheço a complexidade do tema, conheço inúmeras pessoas que buscam o prazer para compensar alguma coisa, o ser humano é complexo e deve ser estudado individualmente, não vou entrar no mérito, mas sinto falta de propostas que provoquem discussões ou que me dêem pistas. Até por isso acho que a personagem da irmã entra na história para servir como elo entre os mundos de Brandon. Sem ela o filme não teria nem esse peso que conseguiu graças a sua participação, seria mais um 9 ½ semanas em cartaz ou um clipe da Madonna. Bom, é isso, mas vá assistir e tirar suas próprias conclusões. Ah, depois do filme enquanto esvaziávamos a segunda garrafa de vinho e devorávamos nosso jantar (vinho ele pode tomar a vontade), meu amigo me revelou que também é sexualmente compulsivo, e que entre uma dieta e outra tem fases em que come tudo que aparecer na frente dele (estou falando de alimentos). E eu tinha alguma dúvida? Por isso não reprimo nenhum dos meus desejos, morro de medo que eles se rebelem e se transformem em compulsões, eu heim!