24.8.06

ARQUITETURA




Pense nas pontes,

que nos ajudam a chegar ao outro lado da margem do rio,
que servem de abrigo e proteção aos miseráveis,
que ligam pequenas ilhas ao continente,
que embelezam as cidades.

Pontes,
que sempre serão pontes,

porque não foram feitas para ficarmos parados sobre elas,
mas para que atravessemos de um lado ao outro,
em busca de inúmeras outras formas de vida,
ou quem sabe outras pequenas ilhas
que interligam outros continentes.

Pense nas pontes,
não como moradas,
mas como caminhos e travessias.


21.8.06

SENTIMENTOS VAGABUNDOS




Lá atrás, há tempos, mas não tantos assim
eu tive um gato. Lindo, gordo, peludo e vagabundo.
Lembrei-me dele hoje, porque me surpreendi com
a imagem que eu mesmo fiz de mim. Estou me lambendo
o dia inteiro, tentando curar feridas. Abri um saco
enorme onde guardo lembranças. Não tenho certeza
a respeito da veracidade delas. Talvez apenas desejos.
De certa maneira notei que de vez em quando
isso acontece comigo. Lembranças, não saudosismo.
Queria tê-lo de volta perto de mim, ouvir o seu ronco
de felicidade e satisfação somente por estar deitado
no meu colo. Queria poder deitar-me no chão e
novamente lhe contar histórias.

Estranho mundo de pessoas estranhas.
Ou será apenas eu que os estranho?

Meia hora de silêncio,
e o mundo não seria mais o mesmo.

20.8.06

EU NÃO ACHO NORMAL




Não adianta se lamentar porque agora você já está
na minha mão e acabou. Mais ou menos isso
foi o que eu ouvi, enquanto pensava que tinha entrado
sem querer no meio de um desses filmes pseudo realistas
que vieram de carona na literatura de Rubem Fonseca.
Pois é, é isso mesmo, finalmente eu também entrei
para o rol dos seqüestrados. Na última sexta feira,
quando cheio de esperança fui entregar uma cópia
do original dos meus contos para um amigo.
Passei mais de uma hora refém de dois caras dentro
do meu próprio carro que, além de levarem meu dinheiro,
ainda tentaram justificar o que faziam com um discurso
absurdamente babaca sobre as razões que os levaram ao
crime e etc... Interessante. Blá, blá, blá... Fácil para eles
que me apontavam uma arma enquanto falavam.
Saiu barato para mim, eu sei, mas não quero pensar assim.
Não quero começar a pensar “dos males o menor”.
Justificativas e compreensão do porque o meu país
está se transformando num enorme avenida cheia de
pistoleiros eu também tenho, mas não quero me acostumar
a ter que conviver com isso. Não queria narrar este episódio
aqui. Algo mudou dentro de mim. Medo, raiva, sentimento de
impotência e violência fazem parte dos meus pensamentos
desde a última sexta feira. Estou tentando reagir, como me
dizem, devo passar por cima do que aconteceu. Pois é,
não sei bem como fazer, de uma hora para outra
apertar um botão e desgravar imagens e palavras.
Estou me esforçando para me comportar como mais
um dos milhões de brasileiros que como eu já passaram
por inúmeras situações como a que sofri, mas que fazem
de conta que não foi nada, que tudo isso é normal
num país miserável como o nosso.
Eu não acho normal. Nem o que aconteceu comigo,
nem a passividade dos meus conterrâneos diante do
abandono do Estado. Não falo apenas da violência,
mas do ausência de políticas de educação pública e social.
Eu não acho normal. Eu não acho normal. Eu não acho normal.

8.8.06

BAIXA UMIDADE






Eu não sei se é real, ou apenas fruto da minha imaginação,
mas há uma secura no ar que não necessariamente é
resultado somente da atual condição climática.
Pode ser impressão minha,
ou apenas o reflexo
do meu estado de espírito.
Isto seria o mesmo que não conseguir ver no outro
um pouco mais do que consigo perceber em mim,
entretanto sei que posso ir além.
E é dentro dos outros que tenho encontrado desertos.
Uns mais extensos, outros mais parecidos com pequenas
línguas de areia, porém todos desertos.

5.8.06

DE CARNE E OSSO.





Fui assistir “Elsa e Fred” o filme hispano-argentino
em cartaz na cidade. Passei quase os mais de
cem minutos de duração emocionado.
Podem me chamar de piegas ou do que quiserem,
não me importo. É bom ver (mesmo que em ficção)
dois seres humanos com cara e sentimentos humanos.
Levinho, gostoso, engraçado e triste ao mesmo tempo,
pouco espetacular, sem efeitos visuais, tampouco uma
história virtual, enfim, cinema feito com gente com cara
e sentimento de gente.

3.8.06

VALORES, PRAZERES, DESEJOS




Prazeres de valor inestimável:
caminhar pelas ruas,
observar as pessoas,
falar com desconhecidos apenas por
alguns segundos ou minutos e
depois talvez nunca mais vê-los,
beber um expresso bem tirado,
ler trechos de livros em pé
nas livrarias e sebos da cidade,
ouvir as variações de Goldberg
tocadas pelo também inestimável Glenn Gould,
assistir televisão sem poder me mexer
porque meu amor dormiu com a cabeça
encostada no meu ombro,
rezar sob a ducha logo de manhã
e ao término da oração repetir alguns mantras
criados por mim mesmo,
escrever a tarde toda e depois de reler

o que escrevi, acreditar que alguém um
dia vai ler e gostar.

1.8.06

A ÚLTIMA QUE MORRE




Sinto falta daquela vontade quase incontrolável
que eu um dia tive de mudar o mundo.
Não sei em que ilha deserta deste planeta povoado
por humanos ela se escondeu.
Se hoje ela ainda estivesse dentro de mim,
eu poderia dissertar criticamente sobre
a invasão de Israel no Líbano, ou sobre a violência em
nosso país, ou até mesmo esculhambar o Bush e sua
turminha de patetas. Entretanto, o máximo que consigo
fazer, é refletir e dialogar comigo mesmo a respeito do
Homem e de seu poder quase compulsivo de destruição.
O mundo mudou, eu mudei, e os acontecimentos,
cada vez mais rápido, me atropelam e inibem
toda e qualquer iniciativa ou vontade,
mesmo que apenas imaginária,
de construir um planeta no mínimo mais saudável.
Carrego em meu consciente os registros históricos
da evolução política da civilização ocidental,
e as estatísticas sobre a deterioração do meio ambiente
por meio da interferência maléfica do homem.
Sou informado diariamente sobre o número de mortos
de fome, guerra e homicídios e da corrupção que
corrói os políticos daqui e de outros continentes.
Sei também que ainda existem, mesmo que em
número muito reduzido, Homens de boa
vontade, solitários como pequenas ilhas quase
invisíveis no imenso oceano de injustiças.
Desconfio que aquela vontade que um dia eu tive
de mudar o mundo, era de uma dignidade hoje quase
inexistente. Preferiu se afastar.
Cansou de ver suas esperanças explodindo no céu
qual foguetório de São João.
Não quis ser apenas mais uma, no meio de
muitas outras que morreram de tanto esperar.