29.1.12

Nessum Dorma

Freud teria se dado mal se tivesse dependido dos meus sonhos para desenvolver suas teorias. Demoro para dormir, durmo muito mal e quando sonho, raramente consigo me lembrar sobre o que sonhei. Confesso que meu forte sempre foi sonhar acordada. De qualquer forma, tenho quase certeza que o mestre vienense não teria se interessado por meus devaneios. Teria me deixado esperando sentada na sala de espera da Bergstrasse enquanto vasculhava os porões escuros da mente de uma outra pessoa menos óbvia. Mas Freud já morreu faz tempo e eu estou aqui vivinha da silva, tentando decifrar um sonho que se prolongou em vários capítulos, ou melhor, em várias noites perturbando ainda mais meu já precário descanso noturno. No sonho eu me chamo Turandot. Mas ao contrário do que você possa estar pensando eu não sou nenhuma princesa chinesa e nenhum príncipe desconhecido se deslumbrou com minha beleza. A única afinidade entre meu sonho e a obra de Puccini é a ária na qual o príncipe desconhecido anuncia que ninguém havia dormido naquela noite. No meu sonho estamos eu e meu amante Gringo com uma terrível insônia num apartamento de cobertura na praia de Copacabana. Por que estamos com insônia? Não sei. Aparentemente desejo alguma coisa dele, e estou sofrendo porque ele não quer me dar o que quero. Estamos deitados de olhos fechados depois de termos feito amor até a exaustão. Não conseguimos dormir. Não conversamos. Não nos mexemos.
Não sei bem como, mas no sonho eu sei que o Gringo sente algo por mim. E ele sabe que se admitir a si mesmo que é amor o que sente por mim, vai ter que me dar essa coisa. Se você está se perguntando o que seria essa coisa que eu queria que ele me desse, eu também não sei te responder. É aí que Freud teria entrado para facilitar minha vida, mas como você sabe, infelizmente não podemos mais contar com ele. Ou felizmente. Porque desconfio que em tempos tão narcísicos como o que estamos vivendo, provavelmente ele teria trocado o divã pelo sofá da Hebe. De qualquer maneira, eu e o Gringo não conseguimos dormir e de repente eu nos vejo no imenso terraço daquele apartamento olhando para o mar. Eu de pé, rente a grade protetora, e ele sentado, como um pesado saco de areia. É quase de manhã. O sol está começando a ultrapassar da linha do horizonte que divide o mar com o céu. Além de nós dois, há o barulho das ondas e o sol, que agora já se mostra metade acima da linha e metade abaixo dela. Olho para o Gringo e pergunto: não é uma beleza o nascer de um novo dia? Ele levanta os olhos em minha direção sem mover o rosto enfastiado e não diz nada. Seus braços estão rentes juntos ao corpo e pela primeira vez eu noto que eles são muito longos. Colados nas laterais desse saco humano, seus braços são tão longos que ele poderia abraçar o mundo inteiro. Um perfeito australopithecus, parente próximo da Lucy nossa macaca mãe, digno de exposição em qualquer museu do mundo.
Os pensamentos do Gringo parecem estar longe. Os meus, como na vida real, são muitos e brotam como ervas daninhas nos canteiros do Jardim Botânico. Penso simultaneamente em como não havia percebido antes que seus braços eram tão longos, num trecho da música “Além do horizonte” do Roberto Carlos e no que será que ele deve estar pensando enquanto olha para mim. Incrível como mesmo enquanto estamos sonhando podemos pensar uma quantidade enorme de coisas ao mesmo tempo. De pronto ele está fumando um charuto. Um desses cubanos que dão de imediato um ar de poderoso chefão a quem sabe manuseá-los e tragá-los. E o Gringo é mestre nessa coisa de representação. Repete os gestos com perfeição, e a repetição dos movimentos qualifica e da credibilidade a sua performance. Foi quando começou a me contar como havia chegado aonde chegou, isto é, como havia se transformado nesse sujeito que eu amava. Sim. Porque mesmo no sonho ele tinha certeza que eu o amava. E eu o amava. Ele não estava errado. Eu o amava. Contou que veio parar aqui como enviado da empresa em que trabalhava. Fez prospecção de campo. Viajou pelo país para encontrar o lugar certo para abrir uma filial. Encontrou um terreno numa cidadezinha do interior e fincou bandeira. Lá, segundo o Gringo, teve que lidar com a ignorância e o amadorismo dos meus conterrâneos. Ainda segundo o Gringo, aqui todo mundo é amador, e assim seremos para sempre. “Porque vocês não conseguem separar as coisas. Uma coisa é o que vocês sentem, outra é o que devem fazer. Além disso, vocês choram por qualquer coisa”. Enquanto ele falava, eu observava o sol que agora já estava acima da linha do horizonte e cobria o azul do mar com uma manta de cor rosa alaranjada. Respirei fundo. Lembro-me que de repente fui abatida por uma preguiça macunaímica. E senti fome, muita fome, meu Deus, como senti fome. Perguntei a ele se não queria comer alguma coisa. Novamente ele apenas me olhou. Mas eu conheço o Gringo. Nisso ele não é diferente dos outros gringos, basta exibir alguns exemplares das frutas que decoraram a cesta da cabeça da Carmem Miranda para ele começar a dançar o chica chica boom. Porém, no sonho ele não reagiu como eu esperava. Continuei sem resposta. Ele limitou-se a tragar seu charuto e a soprar círculos de fumaça no ar. Bom, pensei, um novo dia já começou e eu não vou ficar aqui parada observando o grande apache meditar. Interpretei os círculos de fumaça como um sinal de que ele queria paz. Fui para cozinha e voltei com uma sacola repleta de frutas. Ele olhou para mim, depois para a sacola e depois para mim de novo, em seguida fixou os olhos nos meus e disse que não podia. Eu perguntei o que ele queria dizer com não podia. “Eu não posso”, ele repetiu, “não posso dar o que você quer”. Foi então que eu comecei a descascar as frutas. Descasquei bananas e mexericas, laranjas e mangas, papaias e abacaxis e as arrumei em torno do Gringo encerrando-o dentro de um círculo. Não sei por que fiz isso, mas o Gringo ficou lindo dentro daquele anel de saturno feito de frutas tropicais. Um silêncio assustador se esparramou sobre nós. Ele continuou fumando seu charuto enquanto eu recolhia as cascas que haviam ficado espalhadas fora do anel. Quando acabei de varrer o terraço inteiro e ele de fumar, o sol já estava a pino. O Gringo havia acompanhado minha dança ao seu redor. Havia registrado meus movimentos com seus olhos filmadores. Não me disse nada. Eu compreendi o que deveria fazer quando ele esticou os longos braços em minha direção.
Pouco antes de acordar deste sonho, eu ainda me vi aninhada em seu colo. O Sol começava a se despedir da praia de Copacabana. O perfume das frutas havia atraído um bando de aves que se aproveitava de nossa imobilidade para matar a fome e desarrumar o anel que nos envolvia. “Turandot minha princesa”, o Gringo sussurrou meu nome como se não quisesse incomodá-las enquanto alisava meus cabelos crespos, “o que elas estão cantando?” Bem te vi, eu disse a ele, certa de que sabia falar a língua delas. “Bem te vi, bem te vi” ele repetiu imitando-as.

16.1.12

AJUSTES INEVITÁVEIS

Depois de muitos anos revi na tv “Cenas de um casamento” de Ingmar Bergman. Eu tinha 12 anos quando o filme foi lançado (em 1974), mas só fui assistir anos depois, por volta dos 18 ou 20 anos e lembro que na época acompanhei o filme com atenção e curiosidade, mas não consegui me envolver com o drama do casal. Ainda não havia vivido experiências profundas em relacionamentos, era impossível sentir na pele o drama de Johan e Katarina. Trinta anos e algumas paixões/amores e dissabores depois já sei que a paixão é capaz de desequilibrar qualquer ser humano por mais budista que ele seja, e que o amor, mais do que qualquer outro sentimento, precisa da ação do tempo para se solidificar e permanecer. Ontem durante minha sessão particular de cinema, fui fisgado pela verborragia bergmaniana, acompanhei os diálogos quase que adivinhando o que um ou outro falaria e como reagiriam depois de uma ou outra cena. O tempo de vida me deu alguma malandragem, e a abordagem sobre o tema ficou previsível depois das minhas próprias experiências. Mas na vida real não existe know-how, mesmo porque não existe fórmula pronta, cada paixão se apresenta de uma forma e a loucura provocada por ela vem mascarada de outros argumentos que a justificam posteriormente. A gente dificilmente vai conseguir usar o que acha que aprendeu com a última paixão que nos deixou de quatro. Quando ela passa acreditamos que não agiremos mais como agimos antes, mas não adianta, faremos tudo novamente. O “objeto” da paixão muda, e imediatamente tratamos de pedir a ele que dê o nó na venda que colocamos sobre nossos olhos. Dessa vez acreditamos que tudo será diferente, dessa vez ele ou ela é a peça que faltava em nossas vidas, dessa vez eu estou sentindo o que nunca senti antes, dessa vez eu estou no comando, dessa vez... e por aí vai, a gente já está perdido. Talvez esse irreconhecível déjà vu seja mais saudável do que imaginamos, caso contrário não conseguiríamos nos apaixonar e sentir o que sentimos depois de simultâneas vivências. A vida ficaria sem graça e completamente previsível. Enquanto via o filme do Bergman, me lembrei de “Quem tem medo de Virginia Woolf, o filme de Mike Nichols feito em 1966.
Os dois filmes, guardadas as diferenças, têm muito em comum. No entanto, “Quem tem medo de Virginia Wollf” não deixa pedra sobre pedra, enquanto o sentimento de esperança preservado no final do filme do Bergman vira pó. Os rostos marcados pelas batalhas do casal (Liz Taylor e Burton) falam por si. Por sua vez Bergman finaliza seu filme depois de expor o inevitável desgaste das relações quase que literalmente nos dizendo que apesar de tudo é possível construir alguma coisa com o que sobrou. Gosto dos dois filmes, por causa da complexidade das personagens envolvidas, mas o de Nichols tem um impacto de furacão devastador comparado ao de Bergman. A cena que abre “Quem tem medo de Virginia Woolf”, com Elizabeth Taylor bêbada abocanhando uma coxa de frango que ela retira da geladeira nunca mais descolou da minha memória. Nem mesmo a exposição das amarguras do casal de amigos (Peter e Eva no filme de Bergman) carregadas de uma acidez constrangedora consegue me causar tanto mal estar quanto Liz Taylor naquela cena. E tem ainda uma preparação cronológica do que está por vir no filme do Bergman que não está presente no texto de Edward Albee. Nele, a decadência está escancarada desde as primeiras cenas e você sabe que aquilo não pode acabar bem. Mas o que realmente eu queria dizer, é que assim como acontece com a gente quando estamos apaixonados, alguns textos literários, filmes ou obras de arte também precisam da ação do tempo e do desgaste para fazer parte de nossas vidas e ancorarem definitivamente em nossos corações. A vida é feita de encontros, me disse um amigo na semana passada. Eu digo que de desencontros também. A sincronia é ajustada pelo tempo, sem que a gente perceba ele se instala e acerta os ponteiros.

7.1.12

SALADA DE FRUTAS


Fui assistir a dois filmes nesta semana, “O garoto da bicicleta” e “Triângulo amoroso”. Os dois têm tudo a ver, mesmo quando aparentemente tratam de temas diferentes. O primeiro, dos irmãos Dardenne, conta a história de um garoto que abandonado pelo pai acaba sendo adotado por uma mulher completamente estranha a seu círculo familiar. A mulher acaba entrando por acaso na vida do garoto e a relação dos dois toma corpo, mesmo quando tinha tudo para dar errado. O tema central do filme são as experiências que o garoto terá que vivenciar até entender que o amor que ele quer não necessariamente virá de seu genitor, mas de alguém que nada tem a ver com ele. O segundo filme, Triângulo Amoroso, do diretor alemão Tom Tykwer,que dirigiu em 1998 o premiado Lola Rennt (Corra Lola Corra) propõe (com muita inteligência e uma pitada de humor) uma discussão sobre os conceitos do que pode ser uma relação amorosa a três. Relações triangulares são recorrentes na dramaturgia e na literatura (também abordei o assunto no meu romance “Dissonantes”), mas Tykwer aborda o tema construindo seu roteiro matematicamente e questionando as convenções que cercam o tema sexualidade com muita perspicácia. Quando você pode se auto afirmar hetero e quando você pode se dizer homossexual? O que define você sexualmente? Ou ainda, é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo? E duas de sexos diferentes? No caso do primeiro filme, as perguntas são outras, mas de qualquer forma o que passa quase despercebido é a formação de uma família a partir de outros pressupostos que não os convencionalmente estabelecidos. Duvido que a mãe do garoto do filme teria mais ou menos paciência (ele é um pentelho chatérrimo) e sentiria mais ou menos amor do que a cabeleireira que o adotou. Mudando de alhos para bugalhos, outro dia conversando com uma amiga concluímos que as siglas glsbt deveriam ser suprimidas. Porque há enormes subdivisões que se perdem sob o manto dessas letras que querem definir os gêneros. Entre eles há variações e formas diversas que a gente desconhece. Conheço casais de mulheres que mesmo estando juntas continuam amando seus maridos e tendo relações com eles. São mulheres que conseguem amar não apenas seus maridos mas também suas mulheres, seus filhos, seus cachorros e etc. Uma coisa não exclui a outra, não é porque você gosta de manga que não pode gostar de mamão, não é porque gosta de balé que não pode gostar de futebol. Acredito que estamos no meio de uma transição que está mexendo com essas convenções. Acredito também que mesmo para os glbtês é difícil ainda compreender isso. O preconceito e a desinformação imperam mesmo entre os que se protegem sob essas siglas. Mas voltando para os filmes, apesar de terem sido lançados no final de 2011 aqui no Brasil, acho que o ano começa bem com eles. Vá vê-los. Seja você g, l, b, t, x, y,ou z, goste de manga ou de mamão, você é só mais um dentro desta imensa variedade de frutas a disposição no mercado.