15.4.12

DECURSO DE PRAZO


Acordei lua minguando,

gota a gota lavei o rosto,
o espelho refletindo tudo pela metade
graças a Deus você está longe,
graças a Deus te vejo pequeno,
qual migalha de pão,
farinha de rosca que vaza de saco furado,
caroço de uva cuspido no chão

Acabou o tempo das cheias,
da chuva graúda que abria buracos,
deu para mim e desconfio para ti,
deu para nós e pra todo mundo,
Netuno graças a Deus retornou ao fundo do mar,
graças a Deus você liquidificou

Fígado de porco, gema de ovo, picadinho de rim,
ai que saudades do Grafite,
gato fiel, amigo de quatro patas,
enterrado sob a araucária do vizinho,
graças a Deus morreu antes de te conhecer,
graças a Deus não falava sua língua

Minguamos eu, Grafite e a lua,
Você nem percebeu.

31.3.12

EPIFANIAS


Não existe medidor de intensidade de sentimentos. Cada um de nós se comove de acordo com a variedade e a intensidade de experiências a que foi submetido no decorrer da vida. Nem sempre conseguimos diferenciar uma experiência do tipo divisora de destino com uma meia boca. Às vezes confundimos tudo, acreditamos que a meia boca é o topo do monte Everest e tudo que antes vivemos não chega nem aos pés dela, e que aquela que seria a divisora de destino não está nem a altura do pico do Jaraguá. Só depois de muito tempo percebemos que era o contrário. Às vezes nem nos damos conta, as experiências passam batidas, não são assimiladas ou registradas. Na maioria das vezes você experimenta uma situação, mas ela não ultrapassa a epiderme. Fica na superfície, do lado de fora, como se você não tivesse nada a ver com aquilo, como se estivesse num museu qualquer, observando objetos paleolíticos protegidos por uma redoma de vidro que separam você do artista primata no name que na verdade é o mais importante de todos que vieram depois. Não sei a razão disso tudo, por que em algumas situações percebemos que aquele momento está mexendo com a gente, alterando o modo de pensar e marcará o resto de nossas vidas e por que em outros, a realidade está nua na nossa frente e a gente não sente a menor excitação por ela. Mas sei que é assim que acontece. Um muro invisível se coloca entre você e a experiência (chamo aqui de experiência qualquer acontecimento em que você esteve envolvido passiva ou ativamente). Talvez naquele momento os poros estivessem fechadinhos, defendidos, não querendo dialogar, não querendo permitir que você fizesse parte. O que sei é que o que comove algumas pessoas, não comove outras, o que me faz chorar pode provocar risos em meus semelhantes. E sei também que de repente e sem aviso, aquilo que você experimentou e não foi absorvido, o que ficou do lado de fora, aparece na superfície da sua consciência e começa a reclamar atenção. Você não fez nada para que isso acontecesse, não teve a intenção de pensar sobre um fato que não tem nem idéia de quando aconteceu, mas agora é como se você tivesse passado a usar óculos. Você passou a enxergar melhor e o que não te tocava passou a te tocar, o que estava longe ficou perto. O que aparentemente havia ficado do lado de fora, está dentro. E você sente intensamente, percebe as coisas intensamente, mesmo que com atraso de dias, meses ou anos você consegue compreender o que e como aquela experiência mudou sua vida. Você entende que se não fossem aqueles objetos paleolíticos, hoje você não usaria facas para cortar seu bife, não desceria a serra de automóvel e não comeria geléia de frutas vermelhas de olhos fechados porque alguém já provou antes e não morreu envenenado. A não ser que você seja incapaz de compreender a dinâmica do mundo, nessa altura do campeonato você já percebeu que ele não é construído apenas sob pilares de sabedoria ou certezas. Às vezes gostaríamos que assim fosse, mas você tem que admitir que a vida seria sem graça e no mínimo previsível se aqueles que contribuem para que ela seja viva fossem todos guias espirituais desenvolvidos a fim de fazer o bem. Mas eu estou indo longe demais. Falava da intensidade de sentimentos, do medidor que não existe, do muro invisível, e vim parar na dinâmica do mundo que não é feito de certezas, muito pelo contrário. Talvez porque uma coisa tem a ver com a outra. Porque quando você pensa ter certezas, você reduz a quantidade de possibilidades contidas nas dúvidas e reduz a variedade de sentimentos que essas dúvidas teriam proporcionado.

20.3.12

AI QUE VERGONHA!


Assisti no sábado a tarde o filme “Shame” de Steve Mcqueen com o ator Michel Fassbender. Fui com um amigo que, ao contrário de mim que demoro para integrar novidades em minha vida, é ligado a uma variedade delas e absorve tecnologias, dietas, modalidades de exercícios físicos e modas como uma esponja gigante e gulosa. Desde que nos conhecemos ele já tentou me convencer sobre inúmeras dietas ou pílulas de rejuvenescimento sem nenhum sucesso, sem falar na tentativa de me inscrever em academias de ginástica que para mim tem o mesmo efeito de um vampiro quando vê um crucifixo. Suas dietas são sempre milagrosas e radicais, baseadas em apenas um tipo de alimento, agora por exemplo, ele está seguindo uma cujo principal ingrediente é a pimenta. Segundo ele, a pimenta sacia rapidamente a fome e bla bla bla e por isso há alguns meses ele só tem se alimentado de pimenta com algum acompanhamento. Antes eu tentava argumentar contra suas esquisitices e alertá-lo sobre os danos que eu acredito que ele está provocando no próprio corpo (porque não tenho a menor idéia se tenho razão ou não, apenas sigo o meu bom senso), mas desisti, primeiro porque percebi que ele não me ouve, depois porque antes de conseguir convencê-lo ele já mudou de dieta e meus argumentos se tornaram obsoletos. “Shame” tem todos os ingredientes para fisgar pessoas como meu amigo. Foi rodado em New York, cidade símbolo das neuroses urbanas, as cenas internas com a ajuda da boa fotografia ilustram bem o ambiente árido em que a história se desenrola, ator e a atriz têm o physique du role perfeitos e o tema principal, a compulsão sexual, é um grande atrativo desde Adão e Eva. Não conhecemos as razões que levaram Brandon, o protagonista do filme, a se tornar compulsivo sexual. O sujeito já é compulsivo desde o início. Masturba-se a toda hora, faz sexo de manhã, a tarde e a noite, não consegue se controlar nem no trabalho, busca o prazer incansavelmente. Ate que sua irmã aparece e se hospeda na casa dele obrigando-o a interromper seu ciclo vicioso. Tudo bem, entendi, e entendi também que alguma coisa ele tenta sufocar ou compensar com tanto sexo. Mas ao contrário de quando lemos um conto, que pode contar uma história convincente sem dar detalhes da vida pregressa ou futura da personagem, no filme, a ausência do conhecimento das razões que levaram Brandon a se transformar nessa máquina de fazer sexo é um grande obstáculo e talvez um detalhe importante que compromete sua qualidade. Boa bilheteria ele certamente renderá, mesmo porque ele funciona como um espelho para a maioria das pessoas que não está interessada em refletir sobre nada, quer apenas ver as cenas para depois revelar ou criar taras e propagá-las em público (é “mega importante” enumerá-las e compartilhá-las com os amigos, melhor ainda publicá-las no “Face”). Para mim, o filme é esteticamente bem feito, mas peca por superficialidade e falta de argumentos. Entrei e sai da sala do cinema sem sentir nada e sem ser provocado a refletir sobre o assunto. Reconheço a complexidade do tema, conheço inúmeras pessoas que buscam o prazer para compensar alguma coisa, o ser humano é complexo e deve ser estudado individualmente, não vou entrar no mérito, mas sinto falta de propostas que provoquem discussões ou que me dêem pistas. Até por isso acho que a personagem da irmã entra na história para servir como elo entre os mundos de Brandon. Sem ela o filme não teria nem esse peso que conseguiu graças a sua participação, seria mais um 9 ½ semanas em cartaz ou um clipe da Madonna. Bom, é isso, mas vá assistir e tirar suas próprias conclusões. Ah, depois do filme enquanto esvaziávamos a segunda garrafa de vinho e devorávamos nosso jantar (vinho ele pode tomar a vontade), meu amigo me revelou que também é sexualmente compulsivo, e que entre uma dieta e outra tem fases em que come tudo que aparecer na frente dele (estou falando de alimentos). E eu tinha alguma dúvida? Por isso não reprimo nenhum dos meus desejos, morro de medo que eles se rebelem e se transformem em compulsões, eu heim!

25.2.12

ABRINDO OS OLHOS

Durante o carnaval eu sou obrigado a me trancar em casa. É que a maioria dos meus conterrâneos nessa época me constrange. Prefiro acreditar que nada está acontecendo lá fora ou que é tudo um grande pesadelo e que logo eu vou acordar. Fecho janelas e cortinas e durmo durante o dia inteiro. O sentimento de inadequação fica a flor da pele. Então durmo. Acordo apenas para repor a cota de álcool necessária para me levar para a cama novamente. Esse ano entre as horas de hibernação forçada, assisti os quatro filmes que estão lotando as salas de cinema da cidade. Abaixo faço pequenos comentários do que penso sobre eles. Você não é obrigado/a a concordar comigo. Nem mesmo com a minha insistência em querer proibir a venda de pipocas/refrigerantes/balinhas e tudo mais que cheire mal e faça ruídos das salas de cinema. É. Eu sei. Você vai dizer que estou envelhecendo e ficando ranzinza. Não. Você está enganado/a. Só quero poder ir ao cinema e ver o filme sem ser constantemente incomodado. É complicado ter que dividir minhas emoções com o sujeito ao lado que na mesma hora em que algumas lágrimas ameaçam saltar dos meus olhos, puxa o último gole de refrigerante do seu copo de papel provocando sonoridades invasivas. Posso reclamar pessoalmente. Sim posso. E até faço. Mas ficaria mais fácil se essa proibição fosse regulada pelos responsáveis ou gerentes das salas de cinema. E não correria o risco de tomar uma porrada ou um tiro no peito. Assim como há determinadas sessões para mulheres que podem levar suas crianças, ou horário especial para professores (no Frei Caneca há, por exemplo), poderia existir um ou dois horários em que ficasse proibida a ingestão de alimentos de qualquer espécie durante a sessão. Pronto. Assim eu não teria que passar tanto nervoso e não me sentiria dentro de uma sala de cinema para bovinos, onde durante mais de duas horas me sinto como se estivesse num pasto ao lado de seres ruminantes. E você comedor compulsivo pode comer a vontade ao lado de outras vaquinhas felizes. Vamos aos comentários.

A dama de ferro.
Enquanto reparava na papa perfeita que implantaram sob o queixo da Meryl Streep/Thatcher, a velha discussão sobre o que é real e o que é ficção me veio a cabeça. Porque tirando as imagens documentais enxertadas no meio da vida privada da ex-primeira ministra o que sobra é Maryl Streep representando uma idéia do que Margareth Thatcher teria sido entre quatro paredes. Quero dizer, como posso acreditar que Margareth Thatcher era essa mulher que Maryl Streep está representando? Como posso me convencer que ela tenha pensado e agido daquela forma? Você pode me dizer que através do estudo do comportamento de sua vida pública foi possível traçar um perfil de como ela pode ter sido na vida privada. Eu prefiro me render ao talento de Maryl Streep. Para mim o filme não existiria sem ela. A gente paga o ingresso para que Maryl Streep nos convença do que foi Margareth Thatcher. Todo o resto é coisa para inglês ver.

A invenção de Hugo Cabret
Meu Deus que bobagem. E alguém pode me dizer qual a vantagem de assistir esse filme em 3D? Filme infanto-juvenil, que deveria ser proibido para maiores de 14 anos. E eu que depois de ouvir amigos e críticos esperava algo que pudesse me emocionar! Tudo é artificial, o cenário, o garoto, a menina amiga do garoto, Paris, Gare Du Nord, vou parar por aqui. Scorcese, por favor, faça qualquer outra coisa, vá conversar com um taxi driver, mas não me faça mais esse tipo de cinema. Só uma coisa se salva nesse filme, é Ben Kingsley, porque gosto dele e nesse caso estou sendo parcial.

Os descendentes.
Outra bobagem do cinema americano. Ops, cometi um pleonasmo. Dá no máximo para assistir na sessão da tarde na televisão. E para piorar tem como personagem principal o caricato George Clooney. Ele é tão bom vendendo cápsulas de café! Drama primário, moralista e infantil, aliás, a infantilidade contida nos dramas exibidos no cinema impera no momento. Perca seu tempo, se quiser, ou fique em casa, assim não é obrigado a sentir o cheiro horrível de manteiga derretida dos baldes de pipocas dos casais de trogloditas que vão se sentar ao teu lado.

O artista.
Exceção. Filme que consegue entreter. Bem feito, bom roteiro, excelente caracterização dos personagens. Um filme que emociona, mas que não provoca facilmente o derramamento de lágrimas. No ponto. Ou ao ponto se preferir. Tem até um cachorrinho que provoca expressões como “fofo” ou “lindinho” na maioria dos espectadores. É, eu sei, faz tempo que o mundo não é dos nets. Enfim, um filme que se salva pela correção. E o protagonista, Jean Dujardin, surpreende pela performance. Eu o conhecia de um seriado de tv francesa o qual ele e sua mulher interpretam um casal de classe média e com muita criatividade me faziam gargalhar de seus conflitos. No filme, ele mostra que pode mais. Fofo (argh).

29.1.12

Nessum Dorma

Freud teria se dado mal se tivesse dependido dos meus sonhos para desenvolver suas teorias. Demoro para dormir, durmo muito mal e quando sonho, raramente consigo me lembrar sobre o que sonhei. Confesso que meu forte sempre foi sonhar acordada. De qualquer forma, tenho quase certeza que o mestre vienense não teria se interessado por meus devaneios. Teria me deixado esperando sentada na sala de espera da Bergstrasse enquanto vasculhava os porões escuros da mente de uma outra pessoa menos óbvia. Mas Freud já morreu faz tempo e eu estou aqui vivinha da silva, tentando decifrar um sonho que se prolongou em vários capítulos, ou melhor, em várias noites perturbando ainda mais meu já precário descanso noturno. No sonho eu me chamo Turandot. Mas ao contrário do que você possa estar pensando eu não sou nenhuma princesa chinesa e nenhum príncipe desconhecido se deslumbrou com minha beleza. A única afinidade entre meu sonho e a obra de Puccini é a ária na qual o príncipe desconhecido anuncia que ninguém havia dormido naquela noite. No meu sonho estamos eu e meu amante Gringo com uma terrível insônia num apartamento de cobertura na praia de Copacabana. Por que estamos com insônia? Não sei. Aparentemente desejo alguma coisa dele, e estou sofrendo porque ele não quer me dar o que quero. Estamos deitados de olhos fechados depois de termos feito amor até a exaustão. Não conseguimos dormir. Não conversamos. Não nos mexemos.
Não sei bem como, mas no sonho eu sei que o Gringo sente algo por mim. E ele sabe que se admitir a si mesmo que é amor o que sente por mim, vai ter que me dar essa coisa. Se você está se perguntando o que seria essa coisa que eu queria que ele me desse, eu também não sei te responder. É aí que Freud teria entrado para facilitar minha vida, mas como você sabe, infelizmente não podemos mais contar com ele. Ou felizmente. Porque desconfio que em tempos tão narcísicos como o que estamos vivendo, provavelmente ele teria trocado o divã pelo sofá da Hebe. De qualquer maneira, eu e o Gringo não conseguimos dormir e de repente eu nos vejo no imenso terraço daquele apartamento olhando para o mar. Eu de pé, rente a grade protetora, e ele sentado, como um pesado saco de areia. É quase de manhã. O sol está começando a ultrapassar da linha do horizonte que divide o mar com o céu. Além de nós dois, há o barulho das ondas e o sol, que agora já se mostra metade acima da linha e metade abaixo dela. Olho para o Gringo e pergunto: não é uma beleza o nascer de um novo dia? Ele levanta os olhos em minha direção sem mover o rosto enfastiado e não diz nada. Seus braços estão rentes juntos ao corpo e pela primeira vez eu noto que eles são muito longos. Colados nas laterais desse saco humano, seus braços são tão longos que ele poderia abraçar o mundo inteiro. Um perfeito australopithecus, parente próximo da Lucy nossa macaca mãe, digno de exposição em qualquer museu do mundo.
Os pensamentos do Gringo parecem estar longe. Os meus, como na vida real, são muitos e brotam como ervas daninhas nos canteiros do Jardim Botânico. Penso simultaneamente em como não havia percebido antes que seus braços eram tão longos, num trecho da música “Além do horizonte” do Roberto Carlos e no que será que ele deve estar pensando enquanto olha para mim. Incrível como mesmo enquanto estamos sonhando podemos pensar uma quantidade enorme de coisas ao mesmo tempo. De pronto ele está fumando um charuto. Um desses cubanos que dão de imediato um ar de poderoso chefão a quem sabe manuseá-los e tragá-los. E o Gringo é mestre nessa coisa de representação. Repete os gestos com perfeição, e a repetição dos movimentos qualifica e da credibilidade a sua performance. Foi quando começou a me contar como havia chegado aonde chegou, isto é, como havia se transformado nesse sujeito que eu amava. Sim. Porque mesmo no sonho ele tinha certeza que eu o amava. E eu o amava. Ele não estava errado. Eu o amava. Contou que veio parar aqui como enviado da empresa em que trabalhava. Fez prospecção de campo. Viajou pelo país para encontrar o lugar certo para abrir uma filial. Encontrou um terreno numa cidadezinha do interior e fincou bandeira. Lá, segundo o Gringo, teve que lidar com a ignorância e o amadorismo dos meus conterrâneos. Ainda segundo o Gringo, aqui todo mundo é amador, e assim seremos para sempre. “Porque vocês não conseguem separar as coisas. Uma coisa é o que vocês sentem, outra é o que devem fazer. Além disso, vocês choram por qualquer coisa”. Enquanto ele falava, eu observava o sol que agora já estava acima da linha do horizonte e cobria o azul do mar com uma manta de cor rosa alaranjada. Respirei fundo. Lembro-me que de repente fui abatida por uma preguiça macunaímica. E senti fome, muita fome, meu Deus, como senti fome. Perguntei a ele se não queria comer alguma coisa. Novamente ele apenas me olhou. Mas eu conheço o Gringo. Nisso ele não é diferente dos outros gringos, basta exibir alguns exemplares das frutas que decoraram a cesta da cabeça da Carmem Miranda para ele começar a dançar o chica chica boom. Porém, no sonho ele não reagiu como eu esperava. Continuei sem resposta. Ele limitou-se a tragar seu charuto e a soprar círculos de fumaça no ar. Bom, pensei, um novo dia já começou e eu não vou ficar aqui parada observando o grande apache meditar. Interpretei os círculos de fumaça como um sinal de que ele queria paz. Fui para cozinha e voltei com uma sacola repleta de frutas. Ele olhou para mim, depois para a sacola e depois para mim de novo, em seguida fixou os olhos nos meus e disse que não podia. Eu perguntei o que ele queria dizer com não podia. “Eu não posso”, ele repetiu, “não posso dar o que você quer”. Foi então que eu comecei a descascar as frutas. Descasquei bananas e mexericas, laranjas e mangas, papaias e abacaxis e as arrumei em torno do Gringo encerrando-o dentro de um círculo. Não sei por que fiz isso, mas o Gringo ficou lindo dentro daquele anel de saturno feito de frutas tropicais. Um silêncio assustador se esparramou sobre nós. Ele continuou fumando seu charuto enquanto eu recolhia as cascas que haviam ficado espalhadas fora do anel. Quando acabei de varrer o terraço inteiro e ele de fumar, o sol já estava a pino. O Gringo havia acompanhado minha dança ao seu redor. Havia registrado meus movimentos com seus olhos filmadores. Não me disse nada. Eu compreendi o que deveria fazer quando ele esticou os longos braços em minha direção.
Pouco antes de acordar deste sonho, eu ainda me vi aninhada em seu colo. O Sol começava a se despedir da praia de Copacabana. O perfume das frutas havia atraído um bando de aves que se aproveitava de nossa imobilidade para matar a fome e desarrumar o anel que nos envolvia. “Turandot minha princesa”, o Gringo sussurrou meu nome como se não quisesse incomodá-las enquanto alisava meus cabelos crespos, “o que elas estão cantando?” Bem te vi, eu disse a ele, certa de que sabia falar a língua delas. “Bem te vi, bem te vi” ele repetiu imitando-as.

16.1.12

AJUSTES INEVITÁVEIS

Depois de muitos anos revi na tv “Cenas de um casamento” de Ingmar Bergman. Eu tinha 12 anos quando o filme foi lançado (em 1974), mas só fui assistir anos depois, por volta dos 18 ou 20 anos e lembro que na época acompanhei o filme com atenção e curiosidade, mas não consegui me envolver com o drama do casal. Ainda não havia vivido experiências profundas em relacionamentos, era impossível sentir na pele o drama de Johan e Katarina. Trinta anos e algumas paixões/amores e dissabores depois já sei que a paixão é capaz de desequilibrar qualquer ser humano por mais budista que ele seja, e que o amor, mais do que qualquer outro sentimento, precisa da ação do tempo para se solidificar e permanecer. Ontem durante minha sessão particular de cinema, fui fisgado pela verborragia bergmaniana, acompanhei os diálogos quase que adivinhando o que um ou outro falaria e como reagiriam depois de uma ou outra cena. O tempo de vida me deu alguma malandragem, e a abordagem sobre o tema ficou previsível depois das minhas próprias experiências. Mas na vida real não existe know-how, mesmo porque não existe fórmula pronta, cada paixão se apresenta de uma forma e a loucura provocada por ela vem mascarada de outros argumentos que a justificam posteriormente. A gente dificilmente vai conseguir usar o que acha que aprendeu com a última paixão que nos deixou de quatro. Quando ela passa acreditamos que não agiremos mais como agimos antes, mas não adianta, faremos tudo novamente. O “objeto” da paixão muda, e imediatamente tratamos de pedir a ele que dê o nó na venda que colocamos sobre nossos olhos. Dessa vez acreditamos que tudo será diferente, dessa vez ele ou ela é a peça que faltava em nossas vidas, dessa vez eu estou sentindo o que nunca senti antes, dessa vez eu estou no comando, dessa vez... e por aí vai, a gente já está perdido. Talvez esse irreconhecível déjà vu seja mais saudável do que imaginamos, caso contrário não conseguiríamos nos apaixonar e sentir o que sentimos depois de simultâneas vivências. A vida ficaria sem graça e completamente previsível. Enquanto via o filme do Bergman, me lembrei de “Quem tem medo de Virginia Woolf, o filme de Mike Nichols feito em 1966.
Os dois filmes, guardadas as diferenças, têm muito em comum. No entanto, “Quem tem medo de Virginia Wollf” não deixa pedra sobre pedra, enquanto o sentimento de esperança preservado no final do filme do Bergman vira pó. Os rostos marcados pelas batalhas do casal (Liz Taylor e Burton) falam por si. Por sua vez Bergman finaliza seu filme depois de expor o inevitável desgaste das relações quase que literalmente nos dizendo que apesar de tudo é possível construir alguma coisa com o que sobrou. Gosto dos dois filmes, por causa da complexidade das personagens envolvidas, mas o de Nichols tem um impacto de furacão devastador comparado ao de Bergman. A cena que abre “Quem tem medo de Virginia Woolf”, com Elizabeth Taylor bêbada abocanhando uma coxa de frango que ela retira da geladeira nunca mais descolou da minha memória. Nem mesmo a exposição das amarguras do casal de amigos (Peter e Eva no filme de Bergman) carregadas de uma acidez constrangedora consegue me causar tanto mal estar quanto Liz Taylor naquela cena. E tem ainda uma preparação cronológica do que está por vir no filme do Bergman que não está presente no texto de Edward Albee. Nele, a decadência está escancarada desde as primeiras cenas e você sabe que aquilo não pode acabar bem. Mas o que realmente eu queria dizer, é que assim como acontece com a gente quando estamos apaixonados, alguns textos literários, filmes ou obras de arte também precisam da ação do tempo e do desgaste para fazer parte de nossas vidas e ancorarem definitivamente em nossos corações. A vida é feita de encontros, me disse um amigo na semana passada. Eu digo que de desencontros também. A sincronia é ajustada pelo tempo, sem que a gente perceba ele se instala e acerta os ponteiros.

7.1.12

SALADA DE FRUTAS


Fui assistir a dois filmes nesta semana, “O garoto da bicicleta” e “Triângulo amoroso”. Os dois têm tudo a ver, mesmo quando aparentemente tratam de temas diferentes. O primeiro, dos irmãos Dardenne, conta a história de um garoto que abandonado pelo pai acaba sendo adotado por uma mulher completamente estranha a seu círculo familiar. A mulher acaba entrando por acaso na vida do garoto e a relação dos dois toma corpo, mesmo quando tinha tudo para dar errado. O tema central do filme são as experiências que o garoto terá que vivenciar até entender que o amor que ele quer não necessariamente virá de seu genitor, mas de alguém que nada tem a ver com ele. O segundo filme, Triângulo Amoroso, do diretor alemão Tom Tykwer,que dirigiu em 1998 o premiado Lola Rennt (Corra Lola Corra) propõe (com muita inteligência e uma pitada de humor) uma discussão sobre os conceitos do que pode ser uma relação amorosa a três. Relações triangulares são recorrentes na dramaturgia e na literatura (também abordei o assunto no meu romance “Dissonantes”), mas Tykwer aborda o tema construindo seu roteiro matematicamente e questionando as convenções que cercam o tema sexualidade com muita perspicácia. Quando você pode se auto afirmar hetero e quando você pode se dizer homossexual? O que define você sexualmente? Ou ainda, é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo? E duas de sexos diferentes? No caso do primeiro filme, as perguntas são outras, mas de qualquer forma o que passa quase despercebido é a formação de uma família a partir de outros pressupostos que não os convencionalmente estabelecidos. Duvido que a mãe do garoto do filme teria mais ou menos paciência (ele é um pentelho chatérrimo) e sentiria mais ou menos amor do que a cabeleireira que o adotou. Mudando de alhos para bugalhos, outro dia conversando com uma amiga concluímos que as siglas glsbt deveriam ser suprimidas. Porque há enormes subdivisões que se perdem sob o manto dessas letras que querem definir os gêneros. Entre eles há variações e formas diversas que a gente desconhece. Conheço casais de mulheres que mesmo estando juntas continuam amando seus maridos e tendo relações com eles. São mulheres que conseguem amar não apenas seus maridos mas também suas mulheres, seus filhos, seus cachorros e etc. Uma coisa não exclui a outra, não é porque você gosta de manga que não pode gostar de mamão, não é porque gosta de balé que não pode gostar de futebol. Acredito que estamos no meio de uma transição que está mexendo com essas convenções. Acredito também que mesmo para os glbtês é difícil ainda compreender isso. O preconceito e a desinformação imperam mesmo entre os que se protegem sob essas siglas. Mas voltando para os filmes, apesar de terem sido lançados no final de 2011 aqui no Brasil, acho que o ano começa bem com eles. Vá vê-los. Seja você g, l, b, t, x, y,ou z, goste de manga ou de mamão, você é só mais um dentro desta imensa variedade de frutas a disposição no mercado.

30.10.11

DIFERENTES PORÉM IGUAIS

Por ter morado muito tempo e mais de uma vez fora do país, muitas vezes sou indagado sobre o que diferencia nós brasileiros de outros povos e culturas, e o que nos une. Antes me surpreendia com a imagem que nós (ou a maioria dos brasileiros que conheço) temos de nós mesmos. No decorrer da conversa tentava argumentar que individualmente existem muito mais semelhanças do que diferenças, mas com o tempo desisti. Porque detesto alimentar qualquer tipo de regionalismo e ufanismo, e também porque acho esse assunto muito chato, acaba sempre em “mas você não vai negar que nossas praias são as mais bonitas” e porque percebi que na maioria das vezes as pessoas não estão verdadeiramente interessadas no que você tem para dizer, mas querem vomitar suas idéias prontas. Não importa de qual classe social ele vem, se a, b, c, d ou e (nunca na história desse país tivemos tantas subcategorias de classes sociais), o que ele quer ouvir de mim é a confirmação de suas próprias idéias fixas sobre a imagem que ele faz de si mesmo e a que faz dos outros povos. Todos adoram repetir o mesmo rosário: nós brasileiros somos antes de tudo um povo simpático, solidário e gentil, um povo que apesar da pobreza, falta de educação e dificuldades, continua sorrindo e distribuindo gentilezas gratuitamente, capaz de demonstrar solidariedade apesar da escassez de recursos tanto intelectual como material. Por outro lado para essas pessoas quase todo europeu é rico, frio, calculista, mal humorado, pouco sorridente e nada solidário. Para mim uma das características marcantes do povo brasileiro é a vontade de acreditar. O problema está na ausência de capacidade crítica diante daquilo em que quer acreditar. Não importa no que ou em quem, queremos acreditar e opinar, antes de tudo queremos fazer valer a nossa opinião, ficar do lado daqueles que acreditamos bons ou de verdades divulgadas e assimiladas sem nenhuma reflexão. Outra característica marcante é a hipocrisia, olhamos para o outro sempre com um olhar de que não fazemos parte daquele todo, os outros são sempre responsáveis pelas nossas mazelas, se não fossem os outros tudo seria diferente. Gostamos de acreditar que somos diferentes, seres humanos mais “humanos”, mais “gente”, abençoados com a ausência dos lados indesejáveis que tanto não admiramos nos outros. Sugiro uma leitura rápida em qualquer lista de comentários de leitores de qualquer blog ou site, lá onde nos escondemos por detrás de nossos apelidos e carinhas. Assusta-me a quantidade de pessoas que pensam poder afirmar suas verdades como se as mesmas estivessem acima de qualquer dúvida, afirmações muitas vezes calcadas de sentimentos de raiva e deboche e de schadenfreude (satisfação pela desgraça alheia). Assusta-me tanto o intelectual prepotente por se pensar superior àquele com menos conhecimento do que ele, como o ignorante que não reconhece nos outros mais sabedoria e que ele poderia aprender alguma coisa com quem sabe. Minha experiência pessoal é a seguinte: no coletivo todo ser humano é muito parecido, seja ele de onde for, massa é massa, é bruta, irracional e ameaçadora. Posto sob a lupa e visto individualmente, as diferenças culturais sobressaem, gentilezas e demonstrações de solidariedades e calor humano ficam mais ou menos expostas dependendo do grau de proximidade entre as pessoas, e o homem seja ele de qualquer cor pode ser a semelhança do divino. A julgar pelos comentários que tenho lido em muitos sites de jornais e de blogues de outros amigos que se atrevem a dizer o que pensam, nós brasileiros no quesito hipocrisia e prepotência conseguimos superar muitos outros povos, só não sei se por ausência de autocrítica ou por excesso de esperteza.

27.10.11

EGONEWS

A Patrícia Corrêa do site Folha de Letras fez uma entrevista comigo há poucos dias Clique aqui para acessá-la diretamente, e se tiver tempo dê uma passeada pelo site mineiro, tem outras entrevistas interessantes e boas dicas de leitura. Boa Leitura!

18.10.11

LIXO E LIXO

Fui até a Sala São Paulo retirar ingressos que havia comprado para um concerto em novembro. Fui a pé daqui de casa (Sta Cecília/Higienópolis). Quando cheguei na Alameda Cleveland tive que interromper minha respiração por causa do fedor insuportável. Pensei que fosse morrer de nojo e de raiva. No encontro da Cleveland com a Helvetia centenas de seres humanos quase bichos se aglomeravam em torno do crack e sei lá mais do que em meio ao lixo. Nojo, revolta, pena daquele povo, raiva, e vontade de fazer uma fogueira com todos os políticos e autoridades que sugam esse país são alguns dos sentimentos que tive. Não me venham dizer que é complicado lidar com eles, que não se pode fazer isso ou aquilo e que eles se recusam a ir a abrigos, ou ainda que o pessoal dos direitos humanos vai dificultar e por isso é que eles estão lá. Pelo que vi essa geração já está perdida, não tem mais recuperação. Mas tem que dar assistência, cuidar e fazer um trabalho de prevenção para que esses miseráveis e desgraçados tenham ao menos condições de levar uma vida digna. Ignorá-los é aviltante, é validar o pouco caso das autoridades que se dizem competentes e que ganham para cuidar da cidade e não cuidam. Vão encurralando essa gente de um lado para outro, para que ninguém as veja. E elas se multiplicam na mesma velocidade dos helicópteros que atravessam a cidade e na mesma proporção das vendas dos vidros blindados dos automóveis. Não dá para fazer de conta que eles não existem. O fedor está saindo por tudo quanto é lado e um dia vai inevitavelmente invadir sua praia. Eu não quero me acostumar com essa paisagem urbana e me recuso a acreditar que estamos evoluindo. Isso aí não é pobreza, é miséria, resultado da ausência de atuação do poder público.

Gostaria que alguém me explicasse o seguinte: por que uma entrevistadora com a inteligência e capacidade da Marília Gabriela decide entrevistar uma garota como a tal da Sabrina Sato? No domingo pouco antes de dormir eu assisti no SBT uma das entrevistas mais constrangedoras que já vi e ouvi. A menina é totalmente desinteressante, não tem absolutamente nada para dizer, ria o tempo todo de qualquer coisa que fosse dita, meu Deus, foi constrangedor assistir aquilo, e desconfio que em alguns momentos a própria Marília Gabriela se sentiu constrangida com a situação. Sem falar da dificuldade que foi tentar entender o que a moça queria dizer quando conseguia terminar um pensamento(?). Enquanto a garota com muita dificuldade tentava organizar palavras para formar uma frase que pudesse dizer alguma coisa que tivesse algum sentido, a entrevistadora tentava adivinhar o que ela estava tentando querer dizer para que o telespectador pudesse compreendê-la. Marília, não tem ninguém interessante para entrevistar, então faz uma pausa, quebre o contrato, sei lá faça qualquer coisa, duvido que alguém entendeu o que essa garota tããão interessante e engraçada estava fazendo lá. Muito ruim. Se a idéia da produção do programa feito para o SBT é nivelar a entrevista ao grau de exigência de seu público, acho pior ainda. Não sei nem se serve para engrossar o livro 1001 entrevistas mais desinteressantes do mundo. Acho que não.

14.10.11

JURO QUE NÃO

Fui buscar duas calças que havia deixado na costureira para reparar. Na entrega uma das costureiras me mostrou dois pequenos furos logo abaixo daquelas tirinhas onde passamos o cinto. Olhei surpreso porque quando deixei a calça com ela os furos não existiam. “Já estava assim” ela disse, “juro que não fui eu quem furei, é da qualidade do tecido, esgarçou”. Duvidei de seu argumento, e disse que os dois buraquinhos devem ter sido feitos pelas pontas da tesoura que ela havia usado para descosturar as tiras, já que ela havia feito isso para estreitar a calça e as duas tirinhas tiveram que ser necessariamente retiradas. Sem mencionar a flagrante obviedade de que os furinhos moram agora exatamente no mesmo lugar onde as tirinhas moraram antes. Ela continuou negando com argumentos pouquíssimos convincentes enquanto eu pensava no que fazer. O que fazer numa situação como essa? Não sei. Na hora pensei em várias hipóteses, consegui manter a calma, os furos já estavam feitos e não havia mais como desfazê-los. Não posso mais usar a calça, já que eles são visíveis e para piorar, por iniciativa própria ela os fechou mal e porcamente costurando-os com uma linha de cor branca (a calça é cinza escuro) . Freqüento essa costureira há anos. Não faz parte do meu repertório fazer escândalos ou insultar funcionários, mas esperava ao menos que ela assumisse o erro, dissesse qualquer coisa como um sinto muito ou outra que me amolecesse o coração. No intervalo de nosso diálogo outra costureira se aproximou e deixou implicitamente claro que os furos nada mais eram que fruto de barbeiragem de alguém que não tem habilidade para exercer a profissão. A segunda calça estava em ordem. Na hora de pagar além de me cobrar as duas calças a moça me disse que não tinha troco para minha nota de 50 reais. “E agora?”, ela me perguntou segurando a nota com cara de quem não sabia o que fazer. Minha paciência começava a chegar ao limite. Respondi que ela poderia tentar trocar o dinheiro na vizinhança, eu esperaria. “Não posso sair daqui, a patroa vai ficar brava comigo”. Começava a pensar em mandá-la para o inferno quando a costureira mor e chefe do estabelecimento entrou no local. Equivocadamente pensei que ela seria a solução para nosso problema. Ciente do estrago feito na minha calça, ela foi logo tentando justificar o fato com o mesmo argumento da funcionária o que só fez piorar o meu humor. Você poderia trocar essa nota? Ela fuçou gavetas, depois a própria bolsa e em seguida olhou para mim e disse: “não tenho troco, o senhor pode ir trocar na padaria logo ao lado?” Não. Não posso. Não quero. E não vou. Vocês estragaram minha calça, estão cobrando por ela e ainda querem que eu vá trocar o dinheiro? Você não acha que poderia se organizar um pouco melhor? Nesse momento tudo o que eu queria era ir embora de lá. Duas clientes que esperavam para serem atendidas passaram a me dar razão e reclamar da demora. A coisa começou a virar uma piada de qualidade ainda inferior a dos quadros do programa zorra total, mas a costureira mor ao invés de ir trocar o dinheiro continuava a tentar nos convencer das dificuldades de trocá-lo. Vamos fazer uma parada aqui. Pausa para respirar. Todos sabem as razões da falta de profissionalismo dominante no país: educação. Porque sem ela, sem escola, sem aprender a pensar e a ligar lé com cré a coisa vai ficar sempre amadora, mas um amadorismo tosco, burro, que dificulta ainda mais o desenvolvimento dessas pessoas e atrapalha a vida dos outros. Eu até aprecio o amadorismo, o improviso usado de forma casual e inteligente, mas ele deve se restringir a aparência, não deve ser estrutural, não pode existir por falta de conhecimento, no máximo como resposta para falta de soluções. Assim como a informalidade nas relações, que tem lá seu charme e ajuda a seduzir, mas que necessariamente tem que estar fundamentada na formalidade. Informalidade sim, desde que ela não seja invasiva. Voltando para a costureira. A coisa acabou assim. O cabeleireiro que tem seu salão encostado na costureira, escutou todo o bla bla e providencialmente entrou na conversa. Disse que poderia trocar o dinheiro. Trouxe o meu troco, eu agradeci, peguei minha sacola e tratei de me mandar. Ele me acompanhou até a porta e disse: “não fica aborrecido não querido, elas não são “profissa” mas são gente boa, não estragaram sua calça por mal”.
Pode crer monsieur le coiffeur, eu juro que nunca duvidei disso.

12.10.11

FÉ E BRIOCHES

No dia da criança resolvi desobedecer minha mãe. Almocei assistindo televisão. Vi uma reportagem sobre a Nossa Senhora Aparecida que chegou a cidade de São Paulo subindo o rio Tietê. Ainda bem que ela não é feita de carne e osso, e no caso estava representada em forma de imagem feita de barro ou madeira, caso contrário teriam intoxicado a coitada da padroeira. Então escuto o padre (não sei como ele agüentou o fedor e os gases do rio enquanto carregava e expunha a imagem) dizer que é preciso conscientizar a população de que não se pode jogar lixo no rio. Está bem. Pensei que as autoridades municipais e estaduais é que tinham obrigação de canalizar e tratar a água dos municípios além de fiscalizar as concessionárias contratadas e os próprios cidadãos que desrespeitam as leis. Pobreza é mais um item que se combate com educação. Essa imundice e o pouco caso com ela é resultado da falta de educação que impera nesse país em todas as classes sociais. Desde o morador miserável das favelas até o milionário morador das mansões e coberturas neoclássicas com churrasqueiras decorativas nas varandas. Uns são mal educados porque não lhes são proporcionadas as condições mínimas para sair da miséria, outros porque só olham para o próprio umbigo e não conseguem enxergar nada além dos vidros blindados de seus automóveis. Quero minha fé de volta. A paisagem urbana dessa cidade é o retrato materializado de anos de falta de educação e pouco caso dessa gente que se diz bem educada, politizada e a serviço do país.

Um pouquinho dessa fé voltou depois que eu me deitei no chão da sala e escutei a terceira e a quinta sinfonias de Mahler. Meu Deus o que seria de mim sem esses sujeitos e suas composições? Deus estava ali no momento da criação. E veio me pedir calma enquanto eu as escutava. Não sei se vou conseguir. Estou tentando. Respirando no saco de pão. Vou rezar pelos pulmões de Nossa Senhora Aparecida.

25.9.11

O E-MAIL QUE RECEBI HOJE DE MANHÃ.

Hoje recebi um e-mail intitulado “Profecias do pai Simão”. O conteúdo do e-mail são “profecias” supostamente feitas pelo Zé Simão (na rede é difícil saber quem realmente é o autor do que nos enviam). A bem da verdade eu não leio o Zé Simão. Não gosto do seu humor apelativo e na maioria das vezes grosseiro e maldoso com as pessoas que ele pega como vítima. Não tem nada a ver com ser politicamente correto ou não, mas com limites e respeito, o que é escracho e o que é grosseria, um pouco do que penso desse tipo de humor feito pelo Pânico que tenho pânico só de pensar em assistir. Não consigo achar graça, acho forçado e burro. Por curiosidade passei a ler o e-mail, ainda era cedo, e quando percebi estava gargalhando e não conseguia parar de gargalhar com o festival de bobagens tão possíveis de se realizar no Brasil que não dá para deixar de se divertir com o ridículo das situações.
Abaixo o e-mail que recebi:

Rio 2016 - Profecias do Pai Zé Simão



Previsões de José Simão (Colunista Folha de São Paulo), para as Olímpíadas no Rio - 2016.


De 2010 a 2015

1. ONGs vão pipocar dizendo que apóiam o esporte, tiram crianças das ruas e as afastam das drogas. Após as olimpíadas estas ONGs desaparecerão e serão investigadas por desvio de dinheiro público. Ninguém será preso ou indiciado.

2. Um grupo de funk vai fazer sucesso com uma música que diz: vou pegar na tua tocha e você põe na minha pira.

3. Uma escola de samba vai homenagear os jogos, rimando “barão de coubertin” com “sol da manhã”. Gilberto Gil virá no último carro alegórico vestido de lamê dourado representando o “espírito olímpico do carioca visitando a corte do Olimpo num dia de sol ao raiar do fogo da vitoria”.

4. Haverá um concurso para nomear a mascote dos jogos que será um desenho misturando um índio, o sol do Rio, o Pão de Açúcar e o carnaval, criado por Hans Donner. Os finalistas terão nomes como: “Zé do Olimpo”, “Chico Tochinha” e “Kaíque Maratoninha”.

5. Luciano Huck vai eleger a Musa dos jogos, concurso que durará um ano e elegerá uma modelo chamada Kathy Mileine Suellen da Silva.

Abertura dos jogos

1. A tocha olímpica será roubada ao passar pela baixada fluminense. O COB vai encomendar outra com urgência para um carnavalesco da Beija flor.

2. Zeca Pagodinho, Dudu Nobre e a bateria da Mangueira farão um show na praia de Copacabana para comemorar a chegada do fogo olímpico ao Rio. Por motivo de segurança, Zeca Pagodinho será impedido de ficar a menos de 500 metros da tocha.

3. Durante o percurso da tocha, os brasileiros vão invadir a rua e correr ao lado dela carregando cartolinas cor de rosa onde se lê "GALVÃO FILMA NÓIS", "100% FAVELA DO RATO MOLHADO".

4. Pelé vai errar o nome do presidente do COI, discursar em um inglês de merda elogiando o povo carioca e, ao final, vai tropeçar no carpete que foi colado 15 minutos antes do início da cerimônia.

5. Claudia Leite e Ivete Sangalo vão cantar o “Hino das Olimpíadas” composto por Latino e MC Medalha. As duas vão duelar durante a música para aparecer mais na TV.

6. O Hino Nacional Brasileiro será entoado a capella por uma arrependida Vanuza, que jura que "não bota uma gota de álcool na boca desde a última copa". A platéia vai errar a letra, em homenagem a ela, chorar como se entendesse o que está cantando, e aplaudir no final como se fosse um gol.

7. Uma brasileira vai ser filmada varias vezes com um top amarelo, um shortinho verde e a bandeira dos jogos pintada na cara. Ela posará para a Playboy sem o top e sem o shortinho e com a bandeira pintada na bunda.

8. Por falta de gás na última hora, já que a cerimônia só foi ensaiada durante a madrugada, a pira não vai funcionar. Zeca Pagodinho será o substituto temporário já que a Brahma é um dos patrocinadores. Em entrevista ao Fantástico ele dirá que não se lembra direito do fato.

9. Setenta e quatro passistas de fio-dental vão iniciar a cerimônia mostrando o legado cultural do Rio ao mundo: a bala perdida, o trafico, o funk, o sequestro-relâmpago e a favela.

10. Durante os jogos de tênis a platéia brasileira vai vaiar os jogadores argentinos obrigando o árbitro a pedir silencio 774 vezes. Como ele pedirá em inglês ninguém vai entender e vão continuar vaiando. Galvão Bueno vai dizer que vaiar é bom, mas vaiar os argentinos é melhor ainda. Oscar concordará e depois pedirá desculpas chorando no programa do Gugu.

11. Um simpático cachorro vira-lata furará o esquema de segurança invadindo o desfile da delegação jamaicana. Será carregado por um dos atletas e permanecerá no gramado do Maracanã durante toda a cerimônia. Será motivo de 200 reportagens, apelidado de Marley, e será adotado por uma modelo emergente que ficará com dó do pobre animalzinho e dirá que ele é gente como a gente.

12. Adriane Galisteu posará para a capa de CARAS ao lado do grande amor da sua vida, um executivo do COB.

13. Os pombos soltos durante a cerimônia serão alvejados por tiros disparados por uma favela próxima e vendidos assados na saída do maracanã por “dois real”.

Durante os jogos

1. Caetano Veloso dará entrevista dizendo que o Rio é lindo, a cerimônia de abertura foi linda e que aquele negão da camiseta 74 da seleção americana de basquete é mais lindo ainda.

2. Uma modelo-manequim-piranha-atriz-exBBB vai engravidar de um jogador de hóquei americano. Sua mãe vai dar entrevista na Luciana Gimenez dizendo que sua filha era virgem até ontem, apesar de ter namorado 74 homens nos últimos seis meses, e que o atleta americano a seduziu com falsas promessas de vida nos EUA. Após o nascimento do bebê ela posará nua e terá um programa de fofocas numa rede de TV.

3. No primeiro dia os EUA, a China e o Canadá já somarão 74 medalhas de ouro, 82 de prata e 4 de bronze. Os jornalistas brasileiros vão dizer a cada segundo que o Brasil é esperança de medalha em 200 modalidades e certeza de medalha em outras 64.

4. Faltando 3 dias para o fim dos jogos, o Brasil terá 3 medalhas de bronze e 1 de ouro, esta ganha por atletas desconhecidos no esporte “caiaque em dupla”. Eles vão ser idolatrados por 15 minutos (somando todas as emissoras abertas e a cabo) como exemplos de força e determinação. A Hebe vai dizer que eles são “uma gracinha” ao posarem mordendo a medalha, e nunca mais se ouvirá deles.

5. A seleção brasileira de futebol comandada por Ronaldo Fenômeno vai chegar como favorita. Passará fácil pela primeira fase e entrará de salto alto na fase final, perdendo para a seleção de Sumatra.

6. A seleção americana de vôlei visitará uma escola patrocinada pelo Criança Esperança. Três meninos vão ganhar uma bola e um uniforme completo dos jogadores, sendo roubados e deixados pelados no dia seguinte.

7. Os traficantes da Rocinha vão roubar aquele pó branco que os ginastas passam na mão. Um atleta cubano será encontrado morto numa boate do Baixo Leblon depois de cheirá-lo. O COB, a fim de não atrasar as competições de ginástica, vai substituir o tal pó pelo cimento estocado nos fundos do ginásio inacabado.

8. Um atleta brasileiro nunca visto antes terminará em 57º lugar na sua modalidade e roubará a cena ao levantar a camiseta mostrando outra onde se lê: JARDIM MATILDE NA VEIA.

9. Vários atletas brasileiros apontados como promessa de medalha serão eliminados logo no inicio da competição. Suas provas serão reprisadas em 'slow motion' e 400 horas de programas de debate esportivo vão analisar os motivos das suas falhas.

Após os jogos

1. Um boxeador brasileiro negro de 1,85m estrelará um filme pornô para pagar as despesas que teve para estar nos jogos e por não obter patrocínio.

2. Faustão entrevistará os atletas brasileiros que não ganharam medalhas. Não os deixará pronunciar uma palavra sequer, mas dirá que esses caras são exemplos no profissional tanto quanto no pessoal, amigos dos amigos, e outras besteiras.

3. No início do ano seguinte, vários bebês de olhos azuis virão ao mundo e as filas para embarque nos voos para a Itália, Portugal e Alemanha serão intermináveis, com mães "ofendidas", segurando seus rebentos...

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21.9.11

CERCADO

Reincidentes são os dois casos que vou contar. Já aconteceram de outras maneiras antes e no mesmo lugar. Estava no cinemark do Pátio Higienópolis ontem. No meio do filme um senhor sentado na minha frente atende o celular e responde em tom assustadoramente alto que não podia falar naquele momento porque estava dentro do cinema. Por que atendeu então? Tive vontade de jogá-lo para fora da sala, mas me contive. Por respeito a sua idade e porque sofro de constrangimento passivo. É. Uma doença que aparentemente algumas pessoas têm: elas se sentem constrangidas com a ignorância e falta de sensibilidade de terceiros. Minutos depois e quase no fim do filme, três meninas sentadas ao meu lado começaram a utilizar seus celulares para mandar mensagens ou sei lá o que. A luz da telinha do celular delas passou a imperar na sala e a me incomodar. Depois de vários acende/apaga/acende/apaga e meu nível de constrangimento atingir o grau do insuportável, pedi em voz incisiva que parassem com aquilo. Não me atenderam. A solução foi ameaçá-las, ou paravam ou eu arrancaria os aparelhos de suas mãos. Saíram da sala. De onde não deveriam ter entrado se não são capazes de ficar por aproximadamente duas horas apreciando o filme sem se comunicar com amigos ou sei lá quem. Em razão da imensa falta de respeito alheio e por se acharem o centro do universo, os cinemas daqui deveriam fazer o que fazem outros por aí. Há um sistema que bloqueia a conexão dos celulares dentro dos cinemas e teatros e outros estabelecimentos que são ativados para que essa gentalha insuportável aprenda a se comportar em público. Ninguém deveria ser obrigado a ouvir conversa alheia. Eu não consigo compreender a cabeça dessas pessoas. Não consigo entender essa ausência total de respeito pelo outro, seja dentro dos lugares ou nas ruas, constantemente flagro pessoas gritando com o celular grudado na orelha, ou com esses aparelhinhos gesticulando numa clara demonstração de egoísmo e não estou nem aí para você. Não tem a ver com idade. A falta de educação é geral. E gritante.

Aliás, gritante também é o volume do som das salas do cinemark enquanto eles anunciam os filmes antes da sessão iniciar. Devem achar que porque nos bombardeiam os tímpanos a mensagem ficará gravada na nossa cabeça. A única mensagem que fica gravada na minha é de que estou ilhado, cada vez mais idiotas invadem a minha praia.

17.9.11

GÁSES

Muito cedo prestei atenção no significado das palavras. Sempre procurei coerência na literalidade delas, quero dizer, se no momento em que elas estão sendo pronunciadas elas querem dizer exatamente o que quem as falou ou escreveu queria dizer. Porque pode haver descompasso. Despojada da emoção, listada numa folha de dicionário de sinônimos e antônimos, ela significa muito menos do que quando carregada da emoção de quem a escolheu para dizer isso ou aquilo. A escolha, a forma, a carga emocional e a tonalidade podem alterar seu significado. O outro, o ouvinte, o receptor, ao ouvi-la também a sujeita e a condiciona aos limites de sua compreensão. O inferno, Sartre já disse de outra forma, só passa a arder quando nos vemos confrontados com os outros. Enquanto elas estão dentro do universo particular de cada um de nós, elas significam uma coisa, a partir do momento que penetram os ouvidos do outro ganham significados diferentes e vida própria.

Algumas noites acordo no meio da madrugada como se tivesse dormido além da conta e não consigo mais pegar no sono. Então me levanto e observo as luzes dos apartamentos dos prédios ao redor do meu. Não tenho pensamentos profundos. Observo e penso em múltiplas coisas, como por exemplo, o que aquele sujeito do prédio da frente está assistindo na televisão de sua sala ou o que amigos que moram em outros continentes poderiam estar fazendo naquele exato momento, ou ainda se devo ou não comer um pedaço do bolo de laranja que está dormindo quietinho na cozinha. As vezes ligo para algum amigo do outro lado do mundo e como um pedaço do bolo, só não consigo acessar o vizinho insone. Será que ele me vê e tem pensamentos parecidos? Outra noite, vi quando ele levantou do sofá e foi até a janela. De lá, ele olhou em minha direção. Constrangido eu preferi sair do terraço e voltar para dentro do apartamento. Gosto de observar, mas não de ser observado.

Ontem tive que atravessar a cidade. Fui até o bairro do Morumbi pela avenida nove de julho e voltei pela 23 de maio. São Paulo é decididamente uma cidade feia, sem atrativos no quesito paisagem urbana. Está bem, nenhuma novidade no que acabo de afirmar. O agravante é o cheiro que está impregnando a cidade. O gás carbônico das ruas e avenidas só perde para o fedor de urina e fezes humanas que penetra nossas narinas quando caminhamos pelas ruas do centro. Você já tentou chegar a Sala São Paulo a pé? Ouvi de um amigo outro dia, ah mas isso é covardia, quem mandou você ir a pé para lá, a cracolândia é conhecidamente um lixo. Como assim, quem mandou ir a pé? O que é então uma cidade para você? Um espaço urbano recortado por ruas e avenidas por onde passam automóveis, e o pedestre que se dane? Ver beleza na cidade onde nasci está cada vez ficando mais difícil.

11.9.11

É TUDO VERDADE


Hoje, 11 de setembro de 2011, acordei um pouco mais tarde. Fiz um café e fui para frente do computador sedento pela resposta de um e-mail enviado há alguns dias. Nada ainda. Passei então a ler a Folha de São Paulo na tela do computador. Não perco mais tempo lendo o jornal de ponta a ponta, desenvolvi um sistema próprio de leitura, bato o olho no título da matéria e vejo quem a escreveu e não reflito muito, ou abro o artigo e leio, ou passo batido sem nenhuma culpa porque a maioria das notícias é desinteressante, elas apenas confirmam o que já sabemos ou não trazem nenhuma nova discussão. Foi quando me deparei com uma matéria sobre o Padre Marcelo no caderno Mercado. Estranhei, o que um padre estaria fazendo num caderno de conteúdo econômico? Ao mesmo tempo que lia a matéria chamada “Padre Marcelo S.A.”, um dos moradores de uma das casinhas da vila localizada atrás do meu prédio, começou a escutar música num volume que todo o bairro poderia escutar. Imagino que sua intenção era propiciar um imenso prazer aos ouvidos de seus vizinhos, mas ler a matéria sobre o tal padre acompanhado por refrões de “eu sou pobre pobre pobre de marré marré de si, mas sou rico rico rico e cheio de mulhé” foi o suficiente para me provocar ânsias de vômito. Para mim gosto se discute e, bem, dentro do espírito democrático que acredito ter assimilado no decorrer da minha vida, aceito que ele escute o que quiser, mas por favor não quero ser obrigado a escutar a mesma coisa. Tentei acreditar que logo ele abaixaria o som e continuei a ler as matérias do jornal. Fiquei então sabendo que o padre Marcelo está construindo uma imensa igreja, um templo para milhões de pessoas, com sei lá quantas mil vagas de estacionamento e uma cripta onde ele futuramente será enterrado. Enquanto isso meu vizinho de baixo continuava a nos presentear com canções de altíssimo padrão, recheando meus ouvidos com refrões que jamais esquecerei. E o padre Marcelo ainda deu uma pequena entrevista onde fala coisas interessantíssimas como, por exemplo, que ele produziu um “cd contemplativo”. Veja bem, quando li isso, imaginei que seus fãs devem comprar o “cd contemplativo” para colocar em algum lugar da estante e ficarem horas olhando para ele até alcançarem o nirvana. Mas não. Segundo o padre Marcelo “você o coloca para tocar e ele leva você ao ágape, que em grego antigo significa amor divino". Que beleza! Um cd contemplativo que emite som! Nessa matéria fiquei sabendo ainda que o padre Marcelo cultuava o corpo quando jovem, e que já caiu duas vezes da esteira onde costuma correr. Tudo bem, por que um padre não poderia se preocupar com a saúde do seu corpo? Mas ele chegou a pensar que seus tombos eram resultado da inveja alheia. Não falou em olho gordo, mas inveja, o que é diferente. E está na bíblia. Decididamente a data 11 de setembro deve ter algo que transcende outras datas. Porque desse trecho em diante meu vizinho de cima passou a gritar para o da vila para que o mesmo abaixasse o som. Sai no terraço para ver quem estava gritando e um ovo endereçado ao vizinho de baixo passou bem rente a minha cabeça. Voltei para terminar de ler a entrevista e descobri que o padre Marcelo usou medicamentos que misturam finasterida com menoxidil para conter a calvície, remédios esses que podem afetar a potência sexual, mas que ele não se preocupa com isso porque é celibatário. Por algum milagre, o vizinho desligou o som e eu pude continuar a ler o jornal tranquilamente. Foi quando descobri que o padre Marcelo também acredita em milagres e já viu alguns. E que ele ainda não crê que possa provocá-los. Mas contou que só de por a mão na barriga de uma de suas fiéis que desejava ter filhos e perguntar a ela se ela tinha fé, a moça engravidou, que aquilo é um dom, o dom de tocar. É verdade. Pense na história que acabei de contar, do ovo que tocou a cabeça do meu vizinho, no bem estar que esse milagre provocou a todos os moradores que moram na redondeza, aquilo foi um milagre, provocado pelo dom de tocar, vindo diretamente do céu.

8.9.11

APERITIVO

DISSONANTES
Sergio Keuchgerian

Dissonantes é o terceiro livro do escritor Sergio Keuchgerian e o segundo dele lançado pelo selo Mundo Editorial. O título, que nos leva a pensar em sons desarmônicos, reflete o universo dos personagens que compõem um romance moderno e sintonizado com o espírito do tempo em que estamos vivendo. Mas é quando a clareza de um título nos dá a impressão de que não é preciso nenhum subtexto para compreendê-lo, que inúmeras nuances e interpretações surgem para confundi-lo. É bem provável que Mário, o personagem principal de Dissonantes desconfie do tempo como medidor de conhecimento entre as relações humanas. Certo é que hoje ele desconfia tanto das histórias de amor que parecem fadadas ao final feliz como dos sons harmoniosos de qualquer música capaz de nos fazer chorar. Por outro lado ele foi obrigado a confiar em seus temores. Afinal foram eles que o obrigaram a seguir em frente desde o princípio e que serviram de alerta face às armadilhas que ele encontrou pelo caminho. Dissonantes é apenas um dos sinônimos que vem a sua cabeça quando ele escuta sons em desacordo.

Se Mário precisasse responder à pergunta “quanto tempo é preciso para se conhecer uma pessoa?”, ele provavelmente não conseguiria respondê-la. Seus pensamentos o levariam inevitavelmente a Viena, cidade onde viveu e conheceu Anna e Renato, Uli e Yumiko e tantas outras pessoas que fizeram parte da história de sua vida. O mundo, quando ele os conheceu, ainda tinha de um lado os países capitalistas e do outro os comunistas. O surpreendente triângulo amoroso vivido no período vienense, o retorno ao seu país de origem e as descobertas que fez sobre si mesmo e sobre o grande amor de sua vida fazem parte de um contexto que apenas aparentemente não tem conexão com os eventos que alteraram o mapa político e social de sua época. O amor, a arte e a morte são os temas desta história narrada de maneira simples e objetiva, nem por isso sem o rigor da reflexão intelectual, por vezes dolorosa, da realidade de um homem em busca do conhecimento de si mesmo.

Sobre O Autor

Sergio Keuchgerian nasceu em São Paulo, em 25 de janeiro de 1962, e é formado em Direito. Atualmente vivendo em Paris. De 1988 a 2000, morou na Áustria, onde trabalhou com moda e fotografia. De volta ao Brasil, se especializou em fotografar espetáculos teatrais e advogou. Diário da busca e Contos indiscretos são seus livros publicados.












Foto Ricardo K.

Serviço:

Dissonantes
Páginas: 168
Preço: R$ 35,00
Formato: 14cm x 21cm
ISBN: 9788599802144
Acabamento: Brochura

Contatos:

Jamille Pinheiro Dias
Tel: (11) 82218199
jamillepinheiro@gmail.com

Mundo Editorial
Tel: (11) 41258767
Falar com Haydêe
mundo@mundoeditorial.com.br

5.9.11

PARA FACILITAR A DIGESTÃO

Ontem assisti um filme na tv chamado “Bom Apetite”, um filme espanhol que conta a história de três jovens cozinheiros (um espanhol, um italiano e uma alemã) que trabalham num restaurante conceituado em Zurique. Uma historinha bem contada, com bons atores, mas com desenrolar e final previsível. O que ficou do filme foi um pensamento que me acompanhou hoje o dia inteiro. A velha obsessão de tentar reconhecer o que é real e o que é ficção dentro de uma cabeça apaixonada. No filme, a alemã que trabalha no restaurante como sommelier, tem um relacionamento com o chefe. Ela acaba se abrindo com os dois amigos, mas não consegue se convencer dos seus argumentos sobre as verdadeiras intenções do chefe. Bom, ela está apaixonada por ele, e isso é o suficiente para cegá-la. Já estive em situações parecidas, e me lembro de ter tido consciência do que realmente estava acontecendo, mesmo que essa consciência não fosse de toda clara. Preferi deixar rolar, investi na história para ver o que aconteceria depois. Não teria adiantado em nada se algum amigo tivesse querido me preservar do futuro desastre que só ele conseguia ver naquele momento. Porque você está totalmente infectado com o vírus da paixão. Ele se mistura ao sangue e impede que qualquer argumento racional seja mais forte do que aquilo que está sentindo. Você se torna viciado em seus próprios sentimentos, você gosta de estar sentindo o que sente, a sensação é muito parecida com os efeitos de qualquer uma dessas drogas que proporciona bem estar. Na condição de apaixonado você é impelido a acreditar naquilo que quer e não na razão ou no que outros dizem. Vi o filme até o fim porque queria ter certeza de que o roteiro terminaria do jeito que imaginei. E ele terminou exatamente como pensei. Mas de volta a realidade e as minhas reflexões. Se eu tivesse esse poder de prever e interromper o andamento das situações antes que elas pudessem me machucar, acho que eu não ia ser mais feliz ou satisfeito. Distinguir a ficção da realidade não ajuda a gente a ser mais feliz ou sofrer menos. E a vida seria simplesmente horrível se não criássemos situações fictícias para suportá-la. Ou você vê algum sentido nela?

4.9.11

METRÔ

Fui recarregar meu cartão de embarque do metrô, o Cartão Fidelidade. Havia uma fila imensa e eu não tinha certeza de que eles aceitariam cartão de débito ou crédito. Fiquei na fila e quando fui atendido a atendente me disse que não aceitava cartões como forma de pagamento, só dinheiro. Reclamei. Ela me apontou as máquinas automáticas ao lado do guichê de venda de tickets que aceitavam cartões. Eu não estava sabendo da implantação dessas máquinas. Foram instaladas esta semana e são muito simples. Então recarreguei meu cartão ao lado de uma atendente que estava lá para explicar a novidade aos usuários. As máquinas aceitam apenas os cartões de débito. O que já é um avanço. Mas não entendo porque não é possível passar o cartão nos guichês de venda. Por que quando implantam um sistema não o fazem de maneira eficaz? De qualquer forma, as instalações dessas máquinas automáticas nas estações facilitam a vida do usuário e talvez representem a morte das plaquinhas com as inscrições "sem sistema" que estamos cansados de ler quando precisamos recarregar os cartões. Até que enfim!

À propos metrô, nesse meu último sejour em Paris conheci algumas pessoas que não utilizavam o metrô e preferiam pegar táxi para se locomover de um lugar ao outro. Todas elas eram brasileiras. Nunca ouvi de nenhum amigo de origem estrangeira qualquer coisa parecida, ao contrário, todos utilizam o metrô sem problemas, quando há críticas elas não têm cunho preconceituoso, mas a necessidade de trens mais novos ou ligações não existentes entre estações e etc. Quando eu perguntava a esses brasileiros por que não utilizavam o transporte público, as respostas eram burras e preconceitusas, ou era “o tipo de gente” ou “está sempre cheio”, ou eu sei lá qual bobagem usavam como argumento para não utilizá-lo. Quando eu dizia que táxis são muito mais caros ou que elas perderiam muito mais tempo nos congestionamentos, ou ainda que a estação do metrô ficava a 50 metros do hotel onde estavam hospedadas e que elas sairiam em frente ao destino desejado, elas olhavam para minha cara como se eu tivesse chutado a imagem da Nossa Senhora Aparecida. São as mesmas pessoas que não fazem uso do metrô no Brasil e que provavelmente só se locomovem pela cidade utilizando carros blindados. São as mesmas que se consideram diferentes das outras e por isso não querem se misturar com os outros. No começo ficava indignado com a ignorância e prepotência dessas pessoas, com o tempo a indignação deu lugar a um misto de pena e desprezo.

Sim, o metrô de Paris, assim como o de Viena ou o de Londres está sempre lotado como o daqui. E todo mundo tem umbigo. Alguns mais bonitinhos que os outros, mas a gente só consegue ver o umbigo dos outros quando olha para outras barrigas, se ficar olhando apenas para a própria, nunca vai descobrir diferenças. Mas do que é que eu estou falando? De autocrítica. E de meio de transporte. E de diferenças. E da educação que pode interferir na cultura de um povo e etc...

1.9.11

REFLEXÕES

Quando saía de casa hoje de manhã deparei com um sujeito gritando no meio da calçada com uma garrafa de plástico grudada no ouvido. Ele falava e gesticulava como se tivesse um interlocutor do outro lado da linha de seu suposto telefone celular. Lembrei imediatamente da crônica de hoje do Contardo Calligaris na Folha de São Paulo, em que ele comenta os recentes saques nas ruas de Londres e faz um pequeno paralelo com a Revolução Francesa. Calligares fala um pouco sobre a idéia que temos do que são produtos de primeira necessidade hoje e na época. Fala também da mutação dos códigos de valores da sociedade contemporânea, que hoje muito mais têm a ver com os objetos que possui do que com sua origem social. Uma reflexão clara e objetiva, apesar do pouco espaço em sua coluna. Não dá para discordar de seus argumentos, basta observar as pessoas nas ruas. Talvez sem seu “telefone celular” eu também não teria notado o sujeito que passou por mim na calçada.

Um quarteirão acima, a caminho do supermercado deparei com uma família inteira dormindo a céu aberto. Caixotes, restos de comida, cobertores, uma tv, dois cães, um casal e duas crianças ocupavam parte da calçada. Sempre que sou confrontado com uma situação dessas penso em como essas pessoas chegaram ali, a ponto de perderem tudo e ir parar no olho da rua. Penso de onde vieram e o que vai acontecer com elas, para onde vão e se um dia terão uma vida digna. Não vou entrar na discussão do papel do estado porque tenho muitas dúvidas a respeito da eficácia do braço estatal para resolver essas questões depois que ela chegam a esse ponto. Acredito que os investimentos deveriam ter sido feitos muito antes, preventivamente. Não consigo acreditar no crescimento de nenhum país que não invista na educação de seus cidadãos. Você pode me dizer o que quiser sobre o crescimento econômico do Brasil nos últimos dez anos e da suposta inclusão de sei lá quantos milhões de pessoas no mercado, mas eu não consigo ver nada disso na prática e no cotidiano. A pobreza impera. E não falo apenas da pobreza material, falo da pobreza intelectual, das péssimas condições de ensino do país e no atraso que isso representa num mundo cada vez mais competitivo e globalizado. Se você sair do seu meio de “gente diferenciada” e ir conversar com aqueles que imagina menos diferenciados, vai perceber que não tem muita diferença entre esses mundos, uns podem ter mais condições econômicas que os outros, mas no geral o bem estar para eles está diretamente ligado a sua força consumidora e posses. Acredito que o diferencial entre sociedades que são mais ou menos evoluídas (não venha me dizer que o conceito de sociedades evoluídas é relativo) esteja na força intelectual de seus integrantes. Pode-se aprender a pensar. O poder de reflexão do indivíduo é também sua força, é ele que vai proporcionar uma visão mais crítica sobre si mesmo e sobre seu entorno, e isso vai refletir coletivamente.

30.8.11

OSCILAÇÕES

Talvez tenha sido o forte calor do dia, não estou muito certo, talvez a temperatura interferido no meu humor. Mas hoje a coisa virou, coalhou. Sei. Você vai me dizer para ter paciência, mas esse nunca foi meu forte. Eu tenho tentado ser paciente a vida inteira, algumas vezes consigo me conter, outras, sinto esse desconforto que senti hoje o dia inteiro. Vontade de ditar as regras para que as situações deixem de ser um problema e se transformem em soluções. Mas quem quer soluções não é mesmo? E eu sinceramente venho perdendo aquela vontade de dizer o que deve ser feito a quem quer que seja.

Nesses momentos gostaria de ter o talento de Richard Strauss que musicou um poema mediano de Heinrich Heine chamado “Schlechtes Wetter” (tempo ruim) de forma primorosa. A alquimia dos gênios. Mas esse tempo ruim impregna e me transforma nele próprio. Sinto na pele o dia quente e melado e perco meu tempo ao invés de criar, transformar, produzir. Não tenho espírito macunaímico, gosto enquanto personagem de literatura, mas no dia a dia prefiro não encontrar nenhum pela frente.

Por outro lado, porque graças a Deus sempre tem um outro lado que pode funcionar como um refresco, hoje no final da manhã meu irmão veio fazer algumas fotos que eu terei que escolher para orelha do “Dissonantes” e divulgação. E foi bom tê-lo próximo, ser observado através de suas lentes, reencontrá-lo. As fotos ficaram muito boas, não vou postá-las aí porque minha porção narcísica é bem tranqüila, mas vocês vão poder vê-las nas matérias de divulgação e no livro. Sim, o lançamento está confirmado, no dia 5 de outubro na livraria da vila do pátio Higienópolis. E dessa vez não serão enviados convites, a notícia terá que rodar via todas as vias possíveis.

26.8.11

REGISTROS

Na quarta fui com uma amiga assistir a Filarmônica de Câmara Alemã de Bremen, acompanhada por Christian Tetzlaff na Sala São Paulo. Duas das peças que eles executaram eu gosto bastante, “Verklärte Nacht” do Schönberg e o concerto para violino de Mendelsohn-Bartholdy, as outras duas, o concerto para violino e orquestra de Mozart e a sinfonia n°8 de Haydn ,eu teria preferido ouvir em outra ocasião. Porque destoaram do programa e perderam a força. Ao lado de Schönberg pareciam música ambiente, de fundo. Entendo que talvez eles tenham tentado mostrar um pouco do que podem e sabem tocar, mas eu teria escolhido um repertório mais adequado ao tamanho da orquestra, quero dizer, obras mais intimistas, que exigem mais técnica do que força.

O que mais tem me chamado a atenção desde que cheguei em São Paulo é a comunicação entre as pessoas, o tato na conversa e nos diálogos necessários nas atividades cotidianas. Nós gostamos de nos autodenominar simpáticos e cordiais, mas não é a percepção que tenho tido. Os diálogos são rudes, não há gentilezas formais e necessárias na construção das relações, a degradação e a negligência no uso da palavra. Preste atenção, na falta de delicadeza, estamos descendo a ladeira no quesito educação. Ai que bobagem, você vai dizer. Eu digo que não, que algumas formalidades são condição sine qua non para a troca de conhecimento e respeito entre as pessoas. Estamos perdendo. Observe. A falta de educação é a regra. As vezes penso que perdemos o senso crítico. Esse deboche generalizado me dá arrepios.

A data do lançamento do meu novo romance, o “Dissonantes”, está programada para o dia 5 de outubro, o lançamento será feito na Livraria da Vila do Pátio Higienópolis. Quando estiver certo, confirmo no blog. Aliás, a nova livraria ficou linda. Vá conferir.

21.8.11

RETOUR

Chegando. Mistura dos sentimentos felicidade, desconfiança, expectativa e impotência. Tempo. Brückner e suas sinfonias me acompanham, me ajudam a refletir. O que ficou para trás, o que está no meio, o que virá. O dom da previsão não me foi abençoado. Minha casa. Meu único lugar. A partir. A ficar. A retornar. Uma única convicção: a de que não tenho nenhuma.

13.8.11

BÍLIS NEGRA

O impacto do início do filme “Melancholia” de Lars von Trier me lembrou o inicio de 2001 do Kubrick. As imagens do início extraordinário tendo como fundo musical o prelúdio de “Tristão e Isolda” de Wagner são tão marcantes quanto o início de Kubrick ao som de Strauss. De alguma forma o início dos dois filmes dialoga, mas a construção do roteiro e a intenção dos diretores são diferentes. O filme do dinamarquês me tocou profundamente porque explicita o mal estar e a falta de esperança que também sinto neste exato momento. A situação de sackgasse em que a sociedade contemporânea se encontra e continua fazendo de conta de que nada está acontecendo está ali. O encontro dos dois planetas, Melancholia e Terra, serve como anúncio desse fim de mundo que no filme é sentido de maneira diferente por cada um dos protagonistas. O marido de Claire, materialista que insiste em ignorar o perigo reafirmando os cientistas e suas explicações racionais para tudo, a própria Claire que teme o choque entre os planetas e o fim do mundo, aliás de seu mundo perfeito e confortável, e Justine que sabe que a catástrofe está perto e sofre no próprio corpo os efeitos de sua intuição. O filme é dividido em duas partes o que me agrada muito, já que assim o diretor consegue construir a história e diferenciar ricamente os papeis dos protagonistas. Ao trio se juntam os pais das duas irmãs, duas pessoas de visão de mundo opostas, ele beirando a infantilidade e a debilidade, ela cínica e descrente, e ainda o futuro marido de Justine que vai se ver forçado a compreender que Justine não é a mulher que ele havia idealizado, e mais o patrão de Justine e seu sobrinho abobado. Nesse grupo reduzido no qual os males da sociedade contemporânea estão representados, o malaise transparece e angustia. Perfeito. A festa de casamento se degringola. Lentamente a decadência vem a superfície, a começar com a limusine branca com sei lá quantos metros de cumprimento que não consegue fazer a curva e empaca na lama. A percepção do fim dos tempos é sentida de diferentes maneiras por essas pessoas, com exceção do filho de Claire não há inocentes. O romantismo da música de Wagner e o simbolismo das imagens surreais dão o contrapeso ao racional e ao irracional, nada mais tem importância quando o fim do mundo está próximo, mas nem por isso somos poupados.

Na quarta viajo para o Brasil. Por quanto tempo? Não sei. Vou tratar do lançamento do meu terceiro livro que deve sair no final de setembro ou início de outubro, cuidar de outros assuntos e esperar o fim do mundo chegar, com choque de planetas ou não, 2012 está próximo, catástrofes estão no menu previsível dos videntes. Mas os verdadeiros videntes são os que admitem não conseguir predizer o futuro. Deixar-me surpreender pelo que vem pela frente.

7.8.11

ABRINDO GAVETAS

No livro que reúne a correspondência entre a escritora Colette e sua amiga e atriz Marguerite Moreno, há um trecho que me toca em especial que é o seguinte: “imagine você que eu chego aqui, almoço sozinha, abro a gaveta da minha escrivaninha... e uma carta cai, apenas uma carta: era uma carta da minha mãe, uma das últimas, escrita a lápis, com palavras inacabadas e que já anunciavam sua partida... o que é curioso, a gente resiste vitoriosamente as nossas lágrimas, a gente se segura muito bem nos minutos mais duros. E depois... a gente descobre florir, uma flor ainda ontem fechada, uma carta cai de uma gaveta, e tudo cai.” A descrição do momento em que a vida cotidiana é interrompida pelas lembranças provocadas pela carta que cai da gaveta e a remete a uma outra dimensão da vida me é familiar. Conheço essa mesma sensação de desvio involuntário do trajeto dos meus pensamentos. De estar seguindo uma direção quando um som, uma palavra ou até mesmo o cheiro de um perfume basta para interromper o percurso do dia e o sentido da vida e me remeter a outro que eu acreditava já ter percorrido. (tradução espontânea do trecho da carta)

Das composições feitas por Prokofiev para violino e piano gosto muito das “cinco melodias opus 35 bis”. Elas foram inicialmente escritas para voz e piano e o violino nesse caso assume o papel da voz. Delicadas e precisas, parecem muito mais simples do que realmente são. Ao reescutá-las o refinamento da composição vem a superfície. Como quase toda a obra dele.

Diálogo entre duas garotas entre as prateleiras de uma livraria onde estive hoje a tarde.
Segurando o livro “Diário de Anne Frank”, uma garota perguntou para a outra se deveria comprá-lo ou não.
- É super triste, a tal da Anne Frank fica trancada num sótão porque tem que se esconder dos nazistas, e como não tem o que fazer passa o dia escrevendo sobre tudo o que lhe vem a cabeça, o que come, os barulhos que escuta, como vive lá dentro e etc.
- Ai deve ser bem chato, acho que não vou levar.
- Se você quer se divertir é melhor desistir de ler qualquer coisa e ir logo dançar.
- Mas você disse que adora ler e que eu deveria fazer o mesmo para me distrair.
- É, mas eu não leio para me divertir.
- Então por que você lê?
- Para não ser obrigada a escutar as bobagens que os outros falam.

2.8.11

ENTORNO


Clarões de independência são nuvens que se abrem e deixam que a luz do sol ilumine teu caminho novamente. Nada religioso ou místico, apesar de ser possível ver imagens parecidas nas obras de grandes pintores que pintaram anunciações provenientes dos céus. Por que isso acontece, de repente (ou não tão de repente assim) depois de meses envolto em nuvens cinzas que bloqueavam a visão da esquina mais próxima? Não sei. Mas num dia comum, sem aviso prévio, elas se abrem e deixam a luz do sol passar. E você volta a respirar normalmente.

Parei para tomar um café numa Brasserie ontem na hora do almoço quando voltava do Hospital Cochin no 14ème. Nada mais curioso e interessante do que observar conterrâneos e escutá-los. Por acaso sentei-me ao lado de dois casais de brasileiros que faziam comentários sobre a diferença de preços sobre comida e bebida e que usavam duas cadeiras e mais o entorno das duas mesas que ocupavam com suas sacolas de compras. Falavam num volume de voz acima do normal, e provocaram o deslocamento de uma dama e seu cachorrinho para uma mesa pouco mais distante. Brasileiros sempre perturbam a ordem, quase nunca por algum tipo de idealismo ou contestação necessária, mas quase sempre por falta de educação e por se acharem donos do mundo ou a última coca cola do deserto. Minutos depois a mesma mesa da velha senhora tchekoviana foi ocupada por três mulheres, duas senhoras e uma mocinha, também brasileiras. Discutiam em tom de voz alterado. Não sei porque. Mas depois de alguns minutos, uma delas disse a mocinha em tom sussurrante: “pelo amor de deus fale mais baixo porque na mesa ao lado tem brasileiros e eu não quero me misturar a eles”.

Perdi uma amiga esta semana. Uma alemã que conheci quando morei na Austria e nos tornamos muito próximos. Ela faleceu com quase 80 anos. Veio me visitar em abril aqui em Paris onde visitamos juntos a exposição do pintor alemão Cranach no Luxemburgo, assistimos Julio César no Garnier e jantamos juntos todos os dias em que ela esteve na cidade. Teve uma vida dura. Ainda menina perdeu os pais na segunda guerra, casou-se e mudou-se de Munique para Wels onde a vida provinciana, o marido alcóolatra e o marasmo fizeram-na refugiar-se no mundo romântico das óperas. Eu aprendi muito com essa amiga. O convívio durante o tempo em que morei em Wels desenvolveu-se rapidamente e nos tornamos bons amigos. Falávamos sobre muitas coisas, mas música, literatura, comida (ela (como eu) adorava comer e beber e era elegantíssima) e a decadência do mundo eram nossos temas favoritos. Seus últimos anos de vida foram feitos de viagens. Viajava atrás das óperas que queria assistir e tinha os olhos bem abertos para o que estava acontecendo. Numa das últimas conversas que tivemos, ela me disse que havia aprendido a ver as pessoas como elas realmente são e não como gostaria que fossem. Já está fazendo falta. Ruh in frieden.

30.7.11

TIC TAC TIC TAC



Os últimos dias da semana foram de constatações. Saber esperar é algo que não se aprende voluntariamente, mas na marra. Os acontecimentos têm seu próprio tempo, que na maioria das vezes não é o que desejamos, mas que dita o nosso, então o melhor a fazer é seguir os conselhos da sexóloga/política Marta Suplicy quando ministra do turismo, não se estresse, se renda, relaxe e goze.

Esperar. Sentar num café e esperar. Ou ir a uma pequena exposição gratuita no Hotel de Ville chamada “Paris no tempo dos impressionistas” que relaciona os pintores que viveram em Paris na segunda metade do século 19 com a reconstrução da cidade feita por Haussmann. Enquanto se espera pode-se também amadurecer a visão, quero dizer, a percepção do real e do entorno. Devo ter passado pelo menos algumas dezenas de vezes diante da obra intitulada “Seule” de Toulouse Lautrec nas minhas inúmeras visitas ao Musée Dorsay, mas ela precisou sair de lá e vir para o Hotel de Ville para eu percebê-la. Uma pequena tela, óleo sobre papel, que por razões que eu não saberia explicar, dessa vez me fisgou.


O tempo esta semana também me fez sentir seu lado sádico. Esperei dias para dar continuidade a um conto que havia começado a escrever e não sabia mais o que fazer com ele. Esperei. Sentado. Dias. Noites. Até que ontem movido pela insônia resolvi retomá-lo e voilá ele ganhou vida. Bom. Quase terminado.


Esperar o tempo amadurecer reflexões e decisões pode ficar mais agradável se você fizer uso de instrumentos que tem a mão. Para quem gosta de musica clássica, uma boa alternativa é ouvir a Radio Classique Française pela internet. O site é o http://www.radioclassique.fr que trás um programação variada e rica, fugindo da transmissão pautada pela mesmice das outras rádios.

Idéias fixas, obsessões e compulsões de qualquer tipo não são antídotos contra esse lado sádico da personalidade do tempo. Isso só agrava a aflição e confere poder a ele. Não tem como escapar dessa equação, se ficar o bicho come, se fugir o bicho pega.

28.7.11

GARANTIAS



Num certo momento do percurso de suas vidas eles tiveram que decidir entre continuar juntos caminhando sob a chuva e permitir que ela encharcasse seus ossos ou correr cada um protegido pelo seu próprio guarda chuva. A primeira alternativa apontava riscos, com o tempo e a quantidade de água absorvida, seus ossos terminariam apodrecendo. O sonho de terminarem eternizados como esqueletos numa escola de medicina não se realizaria. A segunda alternativa certamente era a mais segura, os riscos de doença estariam minimizados a porcentagens baixíssimas, estariam protegidos de resfriados e dores de ouvido. Sempre optaram por se prevenir ao invés de remediar, enfim e breve, por que contrariar regras? Alterar percursos, mudar receitas, melhor não. Optaram pela segunda. Morreram depois de muitos anos, seguros, protegidos e secos. No atestado de óbito a mesma causa mortis: osteoporose.

25.7.11

TRAÇOS

Estou no meio da leitura de um livro que comecei a ler no final de semana. A autor é inglês e se chama David Nicholls e o romance saiu aqui na França com o título “Um jour”. Não sei se foi lançado no Brasil, mas se foi e a editora que o lançou foi fiel ao título, ele deve se chamar “Um dia”. Roteirista de televisão e cinema o autor soube construir a história com uma narrativa daquelas que vão te envolvendo lentamente. Ele situa o par na década de oitenta e a gente os acompanha, os encontros e desencontros, os pensamentos tipos da classe social a qual pertencem, como cada um deles desenvolve a própria vida, até chegar na década de 2000 e etc... O livro é bom, bem escrito, mas o que me chama a atenção durante a leitura é o fôlego narrativo do autor. De alguma forma acho que a gente consegue descobrir a nacionalidade do escritor através da dinâmica que ele impõe a sua escritura. Noto nos escritores ingleses essa calma necessária e quase nada ansiosa de nos contar o que querem nos contar em suas histórias por meio dos detalhes que escapam (intencionalmente) do perfil dos personagens. Você vai me dizer que todos os escritores fazem isso. Sim, é verdade, mas dependendo de suas origens e nacionalidades eles fazem isso de maneiras diferentes. Não há uma unidade, não poderia dizer que todos os autores ingleses escrevem de um só jeito, ou todos os brasileiros escrevem de uma única maneira, mas há uma tradição que, acredito, é aprendida através das leituras e outras influencias como o meio onde ele vive, origem, nível social e sei lá mais o que. Por mais contemporâneo, moderno e inovador que ele seja, ele não consegue se livrar de alguns traços de ligação com outros escritores da mesma nacionalidade. Poucos são os escritores que de tão geniais fogem a essa tradição inconsciente. Eu disse geniais, e gênios quando existem, não se enquadram a nenhuma regra.

Assisti a um documentário feito por Hugues Le Paige chamado “Le prince et son image” em que o jornalista acompanhou e filmou Miterrand de muito perto no seu dia a dia como presidente. O documentário expõe a construção da imagem em torno do ex-presidente francês. Miterrand incorporava a imagem do poder e soube fazer uso dela. Todo o entorno, o partido, seus ministros, secretários, amigos, amantes, jornalistas, ajudaram a construir o mito. O documentário não é nada isento da intenção, não idolatra o ex presidente, mas não é neutro. Serve para mostrar como a forte personalidade de Miterrand influiu nesse processo. Eu me impressiono com pessoas que como ele representam o perfeito casamento do ser e do estar. São pessoas que produzem uma imagem de si mesmas com inteligência e sabem como manipulá-la no cotidiano. Elas acreditam nelas antes de todo mundo começar acreditar que elas são como as pessoas às vêem. E esse jogo de espelhos se faz rapidamente. Miterrand se acreditava um homem forte. Foi assim que ele construiu sua imagem. Calculando, interferindo intelectualmente, escolhendo palavras, impressionando pela formalidade, talvez ele não tivesse conseguido se não tivesse esses traços de caráter dentro dele. Não consigo imaginá-lo descontraído, livre de pensamentos cartesianos, analisando a lógica em tudo. Dizem que era um sucesso com as mulheres. Talvez a aura do poder o ajudasse a conquistá-las, mas a intimidade, o diálogo interno, é isso que eu gostaria de saber, como será que esse homem pontiagudo dialogava com si mesmo. Quais eram seus temores, em quais situações duvidava de si, enfim, quando a imagem não era suficiente para encobrir os malaises.

22.7.11

DIFERENÇAS INCURÁVEIS

Eles se conhecem há 43 anos. Dessas mais de quatro décadas viveram juntos 25 anos, uma história de amor dedicado e profundo mas repleta de pequenas traições e reatamentos até o dia em que chegaram a conclusão de que o melhor seria a separação. Há 18 anos estão separados. Depois da separação ficaram quase dois anos sem se ver e sem se falar, mas voltaram a se encontrar. Depois do reencontro mantiveram aquele tipo de distância que está longe de transformar duas pessoas que já foram muito íntimas em estranhas, mas que está ainda mais longe de ser capaz de resgatar antigos sentimentos. Um encontro por acaso aqui, outro acolá, telefonemas nos respectivos aniversários. Atualmente eles moram em cidades diferentes. Um em Paris, o outro em Nice. O de Paris, hoje com 80 anos é o que ficou sem par. O de Nice, três anos mais jovem, é o que vive há 18 anos com o companheiro que motivou o rompimento. Antes de ontem o de Paris enviou um cartão postal para o de Nice lembrando-o do aniversário do dia em que se conheceram. Escreveu a data em números romanos, lembrou dos apelidos e de como costumavam se chamar na intimidade e no final completou o texto reafirmando o amor eterno apesar do tempo e da separação. Não queria recuperar o antigo amor, mas resgatar sentimentos que um dia fizeram parte da vida dos dois. Esperou um telefonema de agradecimento até três dias depois da data do aniversário. Segundo sua experiência a entrega do cartão poderia ter sofrido um atraso. Esperou. Não obteve resposta. Ligou.
Você recebeu o cartão que eu te enviei?
Sim, o de Nice respondeu.
E?
E o que?
Você não vai dizer nada?
Dizer o que?
Se gostou, se ficou feliz, ou sei lá... qualquer coisa.
O que eu posso te dizer?
Sei lá, diga o que quiser, mas diga alguma coisa, você acha que foi fácil descobrir como se escreve as datas em números romanos?
Você não tinha a menor obrigação de fazer isso.
Não é uma questão de obrigação, mas... você sabe como é cansativo para um homem na minha idade fazer todo o percurso até o correio...
Fez isso porque quis...
Chovia sapos quando saí de casa...
Ai meu Deus, vai começar com as cobranças...
Queria te surpreender, dizer que ainda me lembro do dia em que...
Eu sei, eu sei, o maldito dia em que nos conhecemos.
...
Você está me ouvindo?
...
Alô...alô, alôôô...
Preferia não ter te ligado, preferia ter acreditado que você não me ligou porque havia se emocionado com o meu gesto.
Você continua o mesmo.
Como assim?, "o mesmo".
O mesmo sonhador romântico infantilizado.
Acho que vou desligar.
Está vendo, continua o mesmo.
Você também, quanta delicadeza!
...
Você está me ouvindo?
...
Alô...alô, alô.
Preferia que você não tivesse me ligado, preferia ter acreditado que você enviou o cartão sem esperar nada em troca.
Você continua o mesmo.
Como assim?, "o mesmo".
O mesmo calculista ingrato, frio e insensível.
Acho melhor a gente desligar.
Está vendo, eu não disse que você continua o mesmo.
Não. Fui eu quem disse isso antes.
Está bem, então faça de conta que eu não te enviei nenhum cartão e que também não te liguei.
É o que farei. Melhor assim.
É. Melhor assim.
Tchau, até a qualquer hora.
Tchau.