29.4.11

DIFERENÇAS

A revista encarte de final de semana do “Figaro” trouxe uma matéria sobre os armênios que vivem na Turquia e sobreviveram ao genocídio escondendo suas verdadeiras identidades e se convertendo ao islamismo. Surpreendeu-me o artigo. Conhecimento sobre judeus que trocaram nomes e se converteram a igreja católica para escapar da inquisição eu tinha, mas de armênios tradicionalmente cristãos convertidos ao islamismo não. O artigo trás entrevistas com essas armênios/turcos que pouco a pouco estão se re-convertendo a sua antiga religião e também resgatando seus nomes de origem. São pessoas que ainda sentem medo e extremo desconforto com a situação. Alguns intelectuais turcos começam a abrir a boca, defendendo a necessidade de se discutir o genocídio, na opinião deles é preciso falar sobre o assunto, só assim tanto a sociedade turca como a armênia vai conseguir suportar e compreender os fatos e ir para a frente. A maioria dos turcos não quer ouvir falar nisso, prefere negar, fazer de conta que isso não existiu. Mais de 1 milhão de armênios foram mortos no início do século 20, os sobreviventes hoje estão espalhados pelo mundo. Acredita-se que hoje aproximadamente 60.000 armênios vivem na Turquia sob “falsa identidade”.

Para mim, descendente de armênios, nascido no Brasil, tudo isso é ao mesmo tempo estranho e muito próximo. Tive um pai extremamente engajado com a causa armênia, homem que passava madrugadas em reuniões com amigos discutindo esses assuntos. Eu sempre fui avesso a qualquer tipo de clubes reservados e regionalismos de todo gênero. Convivo com amigos de todas as cores, incluindo aí os turcos e curdos. Não sou resistente, faço o possível para valorizar as diferenças mesmo quando elas representam dificuldades. No entanto, se reconheço minhas origens e as valorizo, não tenho orgulho por ser isso ou aquilo, orgulho do que? Nacionalidade, cor, origem, não conquistei nada nesse sentido, nasci assim.

Um amigo francês me irritou e decepcionou quando se negou a dar informações a uma mulher árabe que tinha o rosto todo coberto e apenas os olhos a vista. Isso ocorreu há alguns dias, antes da lei que proíbe as mulheres árabes de andarem com o rosto coberto na França. Estávamos no metrô quando a mulher veio pedir informação e ele a ignorou, fez como se ela não existisse. Quando perguntei por que havia feito isso, ele me disse que se recusava a falar com alguém que escondia o rosto escondendo sua identidade. Me senti extremamente incomodado com sua atitude. O rosto é sim parte da identidade de uma pessoa e particularmente acho um horror ter que escondê-lo por razões de credo religioso, mas daí a não falar com a pessoa, não dar uma informação, por favor, não. Sugeri que ele lesse mais, se informasse mais sobre outras culturas, se olhasse no espelho e dormisse com um livro do Lévi-Strauss sob o travesseiro.

Tem também o outro lado, aquele em que qualquer um pode pisotear a religião católica ou judaica, mas quando se quer discutir a islâmica, budista ou qualquer outra, se é policiado e chamado de preconceituoso, racista e etc. Religião, como o próprio nome a define, é só um meio de se ligar a Deus, não importa qual é o Deus, os rituais, crenças, modos, são apenas os meios formais praticados pelo crente para se aproximar Dele. E mesmo acreditando que uma das causas do atual mal estar da sociedade contemporânea está no fato dela ter perdido as referências por excesso de relativismos, acredito que todas as religiões devem ser vistas com desconfiança e relatividade, isto é, qualquer uma que se auto proclamar mensageira única da palavra de Deus.

Agora voltando ao tema. Dê uma olhadinha ao redor. Se você disser que não tem preconceitos você é um imbecil e mentiroso. Qualquer um de nós tem. É natural e humano. A questão não está em ter ou não ter, mas como você lida com isso, já que é um ser racional. O diferente é sempre estranho, pode provocar amor, repulsa, vontade de conhecer, vontade de matar para não ter que conviver, enfim, sentimentos adversos. Agora imagine um mundo feito somente por gente como você, pensando igual a você, agindo igual a você. Passo mal só de pensar num mundo cheio de iguais a mim. Preciso do outro para me ver.


27.4.11

ERRATA

Correção sobre o post abaixo. Um amigo francês que conhece muito bem a história de sua cidade natal me alertou que a chama sobre o túnel onde Lady Di morreu não tem nada a ver com a princesa. Foi um presente dado pelos americanos para os franceses depois da segunda guerra mundial. É um cópia da tocha que a estátua da liberdade carrega. Antes isso. De resto mantenho minha opinião sobre o assunto.

26.4.11

FOGO DE PALHA

Fui me encontrar com um amigo marroquino que não via há alguns anos. Marcamos num Café próximo a estação Alma Marceau, em frente à imensa chama dourada cafonésima sobre o túnel onde Lady Di sofreu o acidente e morreu. O sol estava forte ontem no final da tarde e o Café estava lotado. Meu amigo chegou pouco antes e pegou uma mesinha do lado de fora. Depois de re-atualizar nossas vidas, a conversa foi parar na Lady Di e no monumento agressivamente dourado sobre a ponte. Não me comovo com aquele troço reluzente. Meu amigo marroquino observa com cara de desprezo um grupo de pessoas que se aproxima da chama e deixa um ramalhetezinho feito com as flores das castanheiras próximas ao local. Lady Di parece um nome saído de algum conto medieval, qualquer coisa menos uma santa ou vítima, ou ainda uma pessoa pública de valor inestimável. Está longe, bem distante do meu universo e de pouquíssimos personagens por quem eu acenderia uma vela. Durante o tempo em que ficamos sentados no Café conversando, muita gente passou por lá, deu voltas em torno da chama, olhou para o túnel e seguiu em frente. A chama cumpre sua função, a de lembrar que ali morreu alguém que não alterou a história do mundo, que não teve a menor importância para a humanidade, mas que foi admirada por muita gente sei lá porque e que eu duvido que elas também saibam. Reflexo do momento em que vivemos. O nada pode ser tudo, depende do universo pessoal de cada um e do ponto de vista de quem tem interesse em transformar o nada em tudo. Tudo pode ser valorizado e é relativo. Tem gosto para tudo e todo tipo de gente para gostar de qualquer coisa. Gosto não se discute já diria a minha avó. Você provavelmente deve estar pensando que eu sou um sujeito chato e que não respeita o direito e a liberdade alheia. Respeito sim, mas não gosto que me imponham idéias e muito menos uma visão de mundo baseada na relatividade de tudo. Gosto se discute sim, se você tiver disposição e coragem para comprar brigas com a turba. Sobretudo deve ter consciência de que será visto como um ser em extinção, e por isso mesmo você será isolado, coitado, o bicho pensa e ainda diz o que pensa, nada experto esse bicho. Corre o risco de ser fotografado e estampado em camisetas, mas vai morrer de qualquer jeito porque a idéia é ter você estampado nas camisetas e não refletir sobre suas idéias. O que importa é a intenção. Entendeu? Ter intenção já e o bastante, e melhor ainda se sob a foto estampada estiver escrito em letras garrafais, Sou um cara de intenções. Quando nos despedimos o amigo marroquino parecia indignado. Tinha que ser desse tamanho? E dourada desse jeito? Sorri de volta para ele. Para mim tudo está no lugar certo. Tinha que ser assim, e dourada.

24.4.11

RESSURREIÇÃO

Pensar paralisa as ações. Posso pensar e fazer coisas diferentes ao mesmo tempo, mas quando quero resolver questões específicas percebo que tenho uma tendência a ficar parado. Não faço outra coisa a não ser refletir sobre o assunto. Conhecedor dessa minha tendência me forço a caminhar. Assim não me sinto como uma pedra imóvel e uso os passos para gerar energia. Ontem sai daqui depois das 14 horas e atravessei a cidade de uma ponta à outra. Paris é convidativa. Não tem ladeiras, é plana e tudo fica mais fácil. Mas com a entrada da primavera e do bom tempo a cidade começa a ficar lotada, os cafés onde antes encontrávamos lugar facilmente para sentar e ler algum jornal, agora estão cheios de turistas. Turistas. Um capítulo a parte. Os bancos das praças também estão ocupados, a cidade está ocupada.

Entrei numa dessas salas de cinema onde são exibidos filmes de grandes diretores para descansar um pouco. Assisti a um filme que não conhecia
do Fassbinder. O título traduzido para o português deve ser “Eu só quero ser amado por vocês” não sei o título que saiu no Brasil O filme é bom, conta história de um sujeito que por querer ser amado a todo custo faz dívidas o tempo todo e tem conflitos de imagem com pai e mãe, origem de toda essa necessidade de ser amado de qualquer maneira. Mas de alguma forma ficou datado, não o temática, mas o formato, e também as interpretações dos atores, estáticos e um pouco caricatos como no teatro (quando ruim). Algumas cenas teriam bastado por si só, o diálogo explicativo torna-se supérfluo. Outros tempos, outro jeito de se fazer cinema, talvez um Fassbinder mais placativo do que sensitivo, sei lá, algo enquadrado demais para o meu gosto. A sala estava lotada e era climatizada. No início do filme devo ter cochilado, mas depois consegui me concentrar e ir até o final.

Hoje almocei com amigos na casa de um deles. Almoço de páscoa, tartar de salmão de entrada, cordeiro assado com pequenas batatas e cebolinhas e sobremesa de frutas vermelhas mergulhadas em rum. Durante o almoço bebemos vinho, mais vinho, mais um pouco de vinho e para terminar mais uma garrafa de vinho. A ressurreição de cristo foi comemorada e no fim do almoço um pouco desse alívio contagiou o ambiente. Uma brisa fresca entrou pela janela e eu pude senti-la alisando meu rosto.

Sensação de que o ano novo está começando agora.

22.4.11

PUNCTUM CAECUM


Tem um vazio que nunca se preenche.
Um lugar que não consigo acessar.
Um ponto cego.
Um lugar que não é receptor e nem divulgador da informação que eu gostaria de ter.
Uma região do meu cérebro onde não há luz.
Um lugar onde tudo o que está ao redor é percebido, sentido, ingerido e digerido, exceto o centro, onde eu gostaria de poder me sentar confortavelmente.

Um homem. Pode ser. O que quiser. Desde que. Não pense. Muito.

Não ouça a Rhapsódia para contralto de Brahms. Nunca. Se você quiser continuar a acreditar. Em qualquer coisa.

Ouça a Rhapsódia para contralto de Brahms. Sempre. Que quiser. Continuar a acreditar. Em qualquer coisa.

Há dois tipos de Homens. Os que amam. E os que são amados.

O cd da mezzo Kathleen Ferrier que ganhei de presente é uma regravação de um disco de vinil da década de 40. Disco raro. Eu. Você. Meu caro. Eu. Você. Que me gravou. Não deveria ter feito isso. Não deveria ter introduzido a voz dela em meus ouvidos. Não. Deveria. Ter. Introduzido sua voz em meus ouvidos. Sua voz. Mastigando biscoitos belgas. E a voz de Kathleen Ferrier cantando “Kindertotenlieder” me fizeram encontrar a criança que eu havia esquecido em algum lugar dentro de mim. Ela está morta. Morta! Kathleen Ferrier. Não. A criança. Não. A. Criança. Mon Cher. A criança.

Mais ce quoi ça?

Quoi?

Ça.

20.4.11

PATCHWORK

Hoje um provérbio que uma amiga austríaca costumava me dizer me veio a cabeça. Ele diz mais ou menos o seguinte: “aproveite o que o destino está te oferecendo, não o ambicione”. Tem um q de frase saída de livro de auto-ajuda, mas estou tentando dar o valor devido a ela, reinterpretá-la. Aceitar as coisas como são nunca foi o meu forte, continuo não resignando diante de situações que apresentam dificuldades, mas estou menos tenaz. O problema é o cansaço e a descrença que passaram a me frequentar nos últimos tempos. Alguma coisa mudou. Ainda não sei bem o que. Antes achava que as coisas de alguma forma se encaixavam e aquela história de que no fim tudo dá certo de alguma forma me fazia um ser mais esperançoso. Agora hesito, duvido e o medo tem me visitado.

Encontrei um livro que traz toda a correspondência entre Baudelaire e sua mãe. As cartas foram trocadas durante os últimos dois anos de sua vida, quando ele foi para Bélgica tentar vender suas obras para os editores de lá e voltar a Paris com dinheiro e pagar suas dívidas. Fracassou, não conseguiu fazer o que ele chamava de “grande affaire” em suas cartas para a mãe que o financiava assiduamente. Morreu amargurado, duro, entristecido, doente e achando que ninguém o reconhecia como poeta. Numa carta a Narcisse Ancelle ele conta que depois de ter combinado verbalmente o valor de 500 francos para fazer cinco conferencias, recebeu apenas 100 francos, e os organizadores argumentaram que não tinham mais dinheiro em caixa, pagaram 50 francos pelas duas primerias, as outras três eles consideraram um ato de generosidade de sua parte e não pagaram. Na mesma carta ele escreve não ousar contar a sua mãe o que havia acontecido, sentia vergonha por depender economicamente dela e ter que pedir mais dinheiro. Para mim deveriam canonizar Baudelaire, por tudo, obra e vida, e sua mãe Mme Baudelaire também deveria ser canonizada.

O lançamento do meu romance “Dissonantes” vai sofrer um atraso. Ficou para agosto ou setembro. Enquanto isso, escrevo outras histórias. C’est comme ça.

Encontrei uma gravação de 1952 das canções de Strauss com a soprano suíssa Lisa Della Casa, acompanhada pela Filarmônica de Viena e dirigida por Karl Böhm. Ouvi quetinho ao mesmo tempo em que devorei um quilo de aspargos com um creme maionese limão que um amigo fez para mim e bebi quase uma garrafa inteira de vinho branco gelado. Noite de lua cheia. Quente. Hoje fez 26 graus em Paris. Grandes prazeres. Os sentidos estão aí.

16.4.11

PRIMAVERA BEAT

Ontem a noite fui assistir "HOWL", o filme (que leva o nome de um de seus livros e poemas) que conta um pouco do percurso de Allen Ginsberg e do processo sofrido por causa de sua obra considerada obscena e sem qualidades. A sala da prefeitura do Marais onde exibiram o filme pela primeira vez aqui na França estava lotada. Temia encontrar algumas lhamas sentadas em almofadões e tropeçar em suas sandálias artesanais, mas quando cheguei lá encontrei um público bastante eclético que ia de a à z, formado na maioria por uma gente barulhenta, mais para mal educada interessada em aplacar sua fome no bufê gratuito montado no fundo da sala do que para blowin in the wind. Fui com Colette minha amiga e jornalista americana apaixonada pela poesia dele. O filme não me elucidou nada, conhecia a trajetória de sua vida e na década de 80, apresentado por Caio F., li muito Ginsberg e seus amigos da chamada geração beat, Kerouac, Burroughs. A história é bem contada, entrecortada por desenhos e trechos do processo com o embate entre advogados, a opinião das testemunhas do processo formadas por professores universitários e intelectuais pró e contra seu livro “Howl”. Apenas no final Ginsberg aparece cantando um dos seus poemas. Sua vida íntima, seus amores, o que ele pensa sobre escrever, tem um pouco de tudo lá dentro e vale ser visto, principalmente porque ele evidencia a pobreza criativa do período em que estamos vivendo.

Saímos de lá e sentamos num desses cafés do Marais para beber alguma coisa e conversar. Bebemos muitas coisas e por volta das duas da manhã fomos obrigados a interromper nossa conversa que começou com “as vezes tenho a impressão de que já vivemos tudo, não tem mais nada para ser feito, criado, escrito” e foi interrompida no meio do “o problema é que quando estou amando me transformo numa gueixa e me esqueço de mim, meu projeto é o outro, é observar a ação do outro, é especular o outro e querer a todo custo que o outro me ame já que estou convencido/a que o outro não me ama como eu o amo e não consigo fazer mais nada a não ser pensar no outro”. Oh mon dieu! Veja, talvez essa história de ser gueixa passe. Depois desse período inicial de total entrega e esquecimento do seu moi, seu surmoi volte mais provocativo e com força total, como um renascimento e você se descubra um ser com vontades próprias sem necessidades narcisistas e todas essas merdas teorizadas por Freud que eu preferia nunca ter ouvido falar. Você acha que bebemos muito? Mais non! Queria tanto conhecer aquele bar onde só entram ursos. Colette, s’il te plait! E se um deles resolve te abraçar? Mas é tudo que eu quero nesse exato momento, ser abraçada/o e que meus ossos virem pó.

Voila um pouco de Ginsberg para refletir (?)

CANÇÃO

O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação
o peso
o peso que carregamos
é o amor.
Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano —
sai para fora do coração
ardendo de pureza —
pois o fardo da vida
é o amor,
mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.
Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor —
esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
— não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:
o peso é demasiado
— deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.
Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro da carne,
a pele treme na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho —
sim, sim,
é isso o que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar ao corpo
em que nasci.

11.4.11

SEM FILTRO

“A verdade, eu quero a verdade, não me importo se ela é agradável ou desagradável, mas quero ouvir a verdade” eu disse e no segundo seguinte eu já estava me perguntando sobre qual verdade eu estava falando. Porque depois de tanto tempo argumentando comigo mesmo sobre o que seria real e o que seria imaginação, as possibilidades se tornaram múltiplas e quase infinitas e meu alarme interno disparou a tocar. Eu sabia, quando pedi que me dissesse a verdade, que meu interlocutor poderia me dizer qualquer coisa. É por isso que pedimos a verdade, porque internamente algo nos diz que estamos pisando em terreno minado. Teria que ecoar dentro mim sua resposta para concluir sozinho se o que ele me dizia confirmaria meus temores. Não sei se acontece com todo mundo, mas em momentos como esse tomo consciência da enorme responsabilidade que devo ter comigo mesmo. Não tem outro jeito, eu sozinho terei que decidir se a resposta é verdadeira ou não, se vou me convencer ou não. Posso discutir as inúmeras hipóteses com amigos, especular variantes, mas terei que decidir sozinho se quero acreditar na pessoa ou não. E dessa resposta vai depender nosso futuro, o meu e o da pessoa, e a decepção pode nos separar para sempre. Já reparou como verdades podem ser construídas? Tanto para satisfazer a pessoa que está esperando uma resposta como para proteger quem está respondendo. A verdade pode por muito tempo ser aquilo que conseguimos ou queremos ver. De fato a verdade está o tempo todo sendo dita nas entrelinhas, numa palavra ou outra que escapa ao controle do consciente, no sentimento de desconforto ou inadequação que a gente percebe e nega dizendo que o tempo vai dar conta e ajustar as coisas. Verdade não é ajustável, é o que é, o tempo só faz desvendá-la.

8.4.11

FREUD EXPLICA


Não sei se já contei que todas as sextas de manhã tenho uma aula com duração de duas horas com um professor maluco especialista em analisar literatura através dos olhos de Freud. A aula se chama “Crítica freudiana”. Gosto muito dessa matéria, porque tem esse viés psicanalítico, a literatura analisada através do inconsciente de quem a escreveu, o implícito, o que não é fácil de perceber, mas desconfio de quase tudo. Porque por vezes não consigo ver todas as conotações sexuais que ele vê e interpreta segundo as teorias freudianas. O professor é um sujeito que deve carregar no bolso uma carteirinha do fã clube do Freud, se isso existir. Nem pense em sugerir que qualquer outro teórico tem uma visão diferente sobre o assunto, ele imediatamente acaba com a reputação profissional de qualquer outro psicanalista. Um sujeito de aparência esquisita, tímido e desengonçado que se veste horrivelmente com ternos na cor mostarda, que faz movimentos corporais estranhíssimos logo que começa a descrever as teorias freudianas e analisar os textos. Mas é fascinante assistir suas aulas. Porque ele se entrega de corpo e alma para passar seu recado e tentar nos convencer de suas convicções. Ele já analisou alguns contos e trechos de romances, e em todos, sem exceção, todos, encontrou símbolos fálicos, impulsos sexuais, compulsões, pulsões e narcisismo. Um professor que não olha na cara de nenhum dos alunos da classe (esses dias pensei que esse não olhar no rosto dos alunos pode ser uma coisa meio parecida com os consultórios de psicanalistas freudianos onde os doutores analisam os pacientes sem os encarar). Seu olhar está sempre direcionado para algum lugar indefinido, entre um aluno e outro. Baba pelas laterais da boca e sua respiração se altera quando ele comenta as pulsões sexuais. Mas repito, é impressionante o vigor e a vontade de ensinar desse homem que lê trechos de livros para nós trocando a voz de acordo com o personagem e rindo de coisas que só ele consegue achar engraçadas e óbvias. Também é o único professor que trabalha com um relógio de bolso sobre a mesa, aperta o botãozinho quando a aula começa e acaba pontualmente duas horas depois, como se estivéssemos num consultório.

Os parques da cidade estão lindos. Uma explosão de cores e perfumes de flores nos atiçam os sentidos.

6.4.11

CHEWING GUM


Sou do tipo que masca palavras no cérebro. Eu não as engulo, nem as digiro preparando-as para expeli-las, eu as escuto, penso ter compreendido o que elas querem dizer no exato momento em que me foram ditas, mas depois, no dia seguinte normalmente, eu as reencontro e as mastigo como gomas virando-as de um lado para o outro dentro da minha cabeça. É a partir daí que o trabalho de compreensão se inicia. É a partir daí que as duvidas se multiplicam e me envenenam. Desse sumo extraído não através da paciência, mas muito mais da compulsão nasce a dor, o alívio, as respostas que não procurei mas fui obrigado a ir ao encontro. Nenhuma vítima. Nenhum carrasco. Nenhuma relação doentia. Uma construção esquisita, um modo torto de registrar e vivenciar. Não é o meio, não é o começo, e se parece muito com o fim. Já mastiguei muitas palavras no cérebro. Não tem gosto de amargo. Não tem gosto nenhum. E não posso retirá-las com as pontas dos dedos e grudá-las na parte de baixo de nenhuma poltrona de cinema e ir embora. Não tenho acesso a elas. São elas que me acessam e por isso o mal estar. Le malaise. Ficam a me torturar, provocando perguntas que não posso responder, e respostas de perguntas que não fiz.

3.4.11

VIGIAR E PUNIR



Não me lembro quantos anos eu tinha da primeira vez que me senti aprisionado dentro de meus próprios pensamentos. Lembro-me que aguardava meu pai voltar do Banco. Ele estacionou o carro em frente à garagem de uma casa numa rua próxima ao Banco e me disse para aguardá-lo. Eu não era mais nenhuma criança, já sabia dirigir, devia estar beirando os 14 ou 15 anos e ele me encarregou de manobrar o carro caso o proprietário do imóvel chegasse ou quisesse sair. Naquela época, tínhamos que ir até o estabelecimento bancário para pagar as contas, não havia internet para facilitar a vida e evitar filas. Eu sabia que ele demoraria muito para voltar. Era sempre a mesma coisa, eu já o havia esperado antes, no mesmo lugar com a mesma incumbência. Ouvia rádio e observava as pessoas para não sentir o longo tempo de espera. Numa dessas vezes vi um senhor muito magro de estatura mediana, de terno e gravata e uma pasta de couro surrada chegar e se aproximar de uma das casinhas geminadas que ficava do outro lado da calçada. Eu não sei porque associei esse senhor a profissão de professor. Observei ele procurar a chave de sua casa dentro da pasta e depois abrir a porta e entrar. Essas casas geminadas, quatro ou cinco ao todo, eram todas iguais. Tinham no máximo três metros de frente, um degrau acima do nível da calçada e uma porta de madeira com uma janelinha de vidro que dava direto para a rua. Lembro-me que fui tomado por um sentimento de tristeza que até então eu nunca havia experimentado. Aquele homem que eu imaginei professor na minha cabeça morava só lá dentro, não tinha com quem falar e era muito pobre. Vivia para trabalhar e trabalhava para viver. Naquele dia meu pai demorou muito mais que o costume. Eu não conseguia me livrar da imagem daquele senhor de pele pálida acinzentada e cabelos esticados com brilhantina. O que ele faria lá dentro? O que comeria? Teria ele livros? Televisão? Um gato? Um vaso para regar? Fui ficando cada vez mais triste e lembro-me que senti muito medo, temi que um dia eu poderia ser como aquele homem. Depois de muitos anos, mais de trinta, escrevi um conto chamado Miguel, O Arcanjo (publicado no meu segundo livro “Contos Indiscretos”) cujas imagens todas sem exceção foram extraídas da minha memória ligada a esse dia e a esse professor imaginário e sua casa. Nos últimos dias aprisionei-me novamente em meus próprios pensamentos. Esse velho professor imaginário voltou a me freqüentar. Seu rosto sério e triste enquanto procura a chave dentro da pasta de couro surrada de vez em quando olha para mim e pensa me conhecer. Eu não quero olhar para dentro de seus olhos. Não quero saber o seu nome. Lembro-me que naquele dia meu medo estava diretamente ligado a sensação da solidão e condição precária daquele desconhecido. Pela primeira vez entrei em contato com a idéia de possíveis fatalidades, o peso das imposições da vida goela abaixo e a consciência de que eu também fazia parte de um todo que é muito mais frágil do que se imagina.

Frágil como casa construída sobre estacas fixas em terreno de areia movediça.

"Tudo o que se pensa ou é afeto ou aversão." ( Robert Musil )

1.4.11

NOTAS E OBSERVAÇÕES

Como é que você, caro amigo e leitor deste blog, consegue distinguir o que é ficção do que é realidade? Eu não perco mais o meu tempo tentando fazer essa distinção. As histórias, tanto as vividas como as imaginadas fazem parte de uma única realidade, uma espécie de não lugar, onde convivem tanto o que vejo como o que sinto e ainda a tradução e interpretação dos pensamentos oriundos desse não lugar.

Esta semana caminhei muito e vi mais algumas exposições. Uma pequena sobre Mahler que está acontecendo no Musée D’orsay e outra no MAM daqui, do pintor holandês Kees van Dongen. A temperatura subiu e a cidade te convida a caminhar e a explorá-la. Descobri que desde que cheguei aqui perdi 6 quilos. Mas como, se minha dieta é basicamente feita de tudo que eu tenho vontade de comer, não evito nada, não me controlo e como e bebo muito praticamente todos os dias? As caminhadas, plus subir e descer as escadas da Sorbonne, deve ter sido essa a receita milagrosa.

Passarela sobre o Sena.


A exposição do compositor Mahler é bem feita e tudo e tal, mas poderia ter sido feita no hall de entrada de qualquer sala de concertos, já que pequena e essencialmente feita de fotos, cartas e poucas telas. A do Kees van Dongen no MAM é uma maravilha, para mim uma grande descoberta, mais de 90 telas de diferentes estilos e fases vividas pelo pintor. Van Dongen era um rebelde e não se ligava muito a uma coisa chamada coerência de estilo. Gosto disso quando se trata de artistas, seja qual for o seu métier. Ele foi fazendo as coisas de acordo com sua vontade e interesse. O resultado é surpreendente. Cada vez mais me convenço de que esses pintores belgas e holandeses trazem no dna um talento para a pintura que os diferencia de todo o resto. Pense apenas em Van Gogh, Rembrandt, Rubens, Bosch, Van Eyck ou Van der Weiden.


Fotografei esse Zeppelin logo de manhã quando chegava na universidade

Hoje quando acordei notei que meu relógio de pulso havia parado de trabalhar por volta das 5 horas da manhã. Fui para a aula e comentei com um amigo. Ele me informou que o dele também havia parado aproximadamente na mesma hora que o meu. Ele brincou comigo e disse que talvez fosse efeito de alguma nuvem radioativa vinda do Japão. No final da noite vindo para casa, por acaso no metrô encontrei com Jasmim, de quem já falei aqui. Conversamos um pouco e ela comentou comigo que o seu relógio havia parado. Não sei se uma nuvem radioativa faz relógios pararem, mas a partir daí comecei a desconfiar que talvez meu amigo tivesse razão. É muita coincidência. Antes de entrar em casa me lembrei que tem um relojoeiro bem do lado de casa. É uma portinha com um espaço mínimo que eu por vezes paro para observar um senhor de cabelos brancos e olhos muitos claros que passa o tempo debruçado sobre os relógios que conserta. Entrei, ele me atendeu muito bem e disse que hoje já havia trocado mais de seis baterias, o que muitas vezes precisa de todo um mês para fazer. Será? Os relógios vão parar antes do mundo acabar? Um aviso?