3.4.11

VIGIAR E PUNIR



Não me lembro quantos anos eu tinha da primeira vez que me senti aprisionado dentro de meus próprios pensamentos. Lembro-me que aguardava meu pai voltar do Banco. Ele estacionou o carro em frente à garagem de uma casa numa rua próxima ao Banco e me disse para aguardá-lo. Eu não era mais nenhuma criança, já sabia dirigir, devia estar beirando os 14 ou 15 anos e ele me encarregou de manobrar o carro caso o proprietário do imóvel chegasse ou quisesse sair. Naquela época, tínhamos que ir até o estabelecimento bancário para pagar as contas, não havia internet para facilitar a vida e evitar filas. Eu sabia que ele demoraria muito para voltar. Era sempre a mesma coisa, eu já o havia esperado antes, no mesmo lugar com a mesma incumbência. Ouvia rádio e observava as pessoas para não sentir o longo tempo de espera. Numa dessas vezes vi um senhor muito magro de estatura mediana, de terno e gravata e uma pasta de couro surrada chegar e se aproximar de uma das casinhas geminadas que ficava do outro lado da calçada. Eu não sei porque associei esse senhor a profissão de professor. Observei ele procurar a chave de sua casa dentro da pasta e depois abrir a porta e entrar. Essas casas geminadas, quatro ou cinco ao todo, eram todas iguais. Tinham no máximo três metros de frente, um degrau acima do nível da calçada e uma porta de madeira com uma janelinha de vidro que dava direto para a rua. Lembro-me que fui tomado por um sentimento de tristeza que até então eu nunca havia experimentado. Aquele homem que eu imaginei professor na minha cabeça morava só lá dentro, não tinha com quem falar e era muito pobre. Vivia para trabalhar e trabalhava para viver. Naquele dia meu pai demorou muito mais que o costume. Eu não conseguia me livrar da imagem daquele senhor de pele pálida acinzentada e cabelos esticados com brilhantina. O que ele faria lá dentro? O que comeria? Teria ele livros? Televisão? Um gato? Um vaso para regar? Fui ficando cada vez mais triste e lembro-me que senti muito medo, temi que um dia eu poderia ser como aquele homem. Depois de muitos anos, mais de trinta, escrevi um conto chamado Miguel, O Arcanjo (publicado no meu segundo livro “Contos Indiscretos”) cujas imagens todas sem exceção foram extraídas da minha memória ligada a esse dia e a esse professor imaginário e sua casa. Nos últimos dias aprisionei-me novamente em meus próprios pensamentos. Esse velho professor imaginário voltou a me freqüentar. Seu rosto sério e triste enquanto procura a chave dentro da pasta de couro surrada de vez em quando olha para mim e pensa me conhecer. Eu não quero olhar para dentro de seus olhos. Não quero saber o seu nome. Lembro-me que naquele dia meu medo estava diretamente ligado a sensação da solidão e condição precária daquele desconhecido. Pela primeira vez entrei em contato com a idéia de possíveis fatalidades, o peso das imposições da vida goela abaixo e a consciência de que eu também fazia parte de um todo que é muito mais frágil do que se imagina.

Frágil como casa construída sobre estacas fixas em terreno de areia movediça.

"Tudo o que se pensa ou é afeto ou aversão." ( Robert Musil )

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