31.12.10

FELIZ ANO NOVO!

Que a boa energia lançada na virada do ano nos acompanhe durante todo 2011.

28.12.10

PAPAI NOEL

Passei o natal em Grenoble na casa dos avós de um amigo. Tranqüilo, sem estresse. Três dias calmos, na companhia de gente acolhedora e boa. Comemos e bebemos muito, mas também gastamos energias fazendo longas caminhadas nas montanhas cobertas de neve. Estou de volta em Paris e passo o Reveillon aqui. Enquanto o tgv rolava me trazendo de volta, refleti sobre como essas datas de festas coletivas conseguem mobilizar as emoções. Ninguém escapa. De uma maneira ou de outra, mobilizam até aqueles que passam esses dias criticando a onda de consumismo que se instaura quando na verdade a idéia é a confraternização e bla bla bla. Emoção também pode ser tratada como um produto consumível. Na maioria das vezes por essas mesmas pessoas que amam nos dizer como é que devemos nos sentir.

Tem um clochard que mora na Rue St Antoine bem próximo aqui de casa. Quando eu ia em direção ao metro vi quando uma mulher lhe entregou um par de sapatos. Ele perguntou qual era o número, e ao ouvir a resposta disse que os sapatos eram pequenos para os seus pés. A mulher insistiu e disse que mesmo assim queria que ele ficasse com os sapatos. O sujeito lhe respondeu que não, o que faria com um par de sapatos que não cabiam nos seus pés? Os dois discutiram e ele mandou ela enfiar o sapato vocês sabem onde. Eu me diverti. Pense bem. O que ela queria?

Um outro clochard que faz ponto todos os dias de manhã sentado nas escadarias do metrô St Paul desejando bom dia para os passantes e atrapalhando o acesso a entrada da estação, passou o dia 24 fantasiado de papai Noel com uma garrafa de vinho na mão e um saco plástico preto vazio ao lado. Casais jovens que passavam com seus filhinhos pelo local tratavam de desviar rapidamente. Ho ho ho.

Pouco antes da minha professora do primeiro ano primário me dizer que Papai Noel não existia, eu me perdi da minha mãe numa grande loja de departamentos. Fazíamos as compras de natal quando eu o avistei no fundo da loja. Sem que ela percebesse, eu fui procurá-lo, atraído por sua longa barba branca, não me lembro bem como tudo aconteceu, sei que ao me aproximar dele desatei a chorar de medo e acabei sendo anunciado como menino perdido pelos alto falantes da loja. Naquele ano ainda desejei uma máquina fotográfica kodak. O coitado do meu pai se virou para dar conta do recado. Lembro que ganhei a máquina e no dia seguinte já não tinha mais o menor interesse nela. Nem sei por que pedi uma máquina fotográfica de presente. O que me lembro é que infernizei a vida dele para ganhá-la.

Sem balanços. 2010 passou muito rápido. Quase todos os meus desejos foram realizados por mim mesmo. Quase todos. Virei meu próprio papai Noel? Não tenho queixas. Tenho feito menos pedidos a mim mesmo, já que com o tempo fui obrigado a aceitar que nem tudo depende somente da minha vontade de realizá-los, mas de uma imensa gama de fatores extraordinários e de outras pessoas. Continuo pedindo. E desejando. E quando dou de cara com um papai Noel já não o temo. Eu o abraço (quando ele permite), e sopro alguns desejos em seu ouvido.

21.12.10

SONHOS


Assisti um documentário sobre o poder dos sonhos feito em 2009 por uma inglesa chamada Amy Hardie que me impressionou bastante. Amy é ela mesma a protagonista de seu documentário. Mulher que sempre se considerou racional e cartesiana, ela nunca se lembrava de seus sonhos. Um dia, ela sonha que seu cavalo está lhe dizendo que vai morrer. Assustada ela acorda e vai procurar o cavalo e o encontra morto. Algum tempo depois, ela tem um outro sonho, dessa vez com o primeiro marido já falecido com quem ela teve um filho, que lhe diz que ela morrerá aos 48 anos. O problema é que ela havia acabado de fazer 48 anos poucos dias antes de sonhar. A partir daí ela passa a fazer uma crônica diária, filma suas filhas falando sobre a morte, seu marido que é psicanalista e que tenta analisar seus medos com argumentos racionais para tentar explicar os sonhos, expõem seu medos, filma seu cotidiano em contagem regressiva. Depois de dois ou três meses ela desenvolve uma grave doença nos pulmões, e os médicos que tratam dela não conseguem descobrir a razão e nem a cura para a doença. A gente vai ficando aflito porque tudo nos leva a crer que ela vai filmar a própria morte. Nesse meio tempo ela ouve falar de uma brasileira (tinha que ser) que é xamã e que mora na Escócia. Vai procurá-la e a moça lhe diz que ela tem que sonhar de novo e interferir nesse sonho. As duas fazem um ritual maluco e entram no sonho e conseguem desconectar o processo de morte que ela mesma havia programado ao acreditar na previsão feita no sonho. Ufa, um sufoco, o cavalo reaparece, o medo de serpentes, o ex marido, tudo volta a ser cozinhado no caldeirão daquela sessão xamãnica e nos é compartilhado. O filme é sério e de alguma forma tenta discutir as diferentes percepções que a gente pode ter da realidade.

Corta.

Dia seguinte.

Caminho com muito cuidado para não escorregar nas ruas enlameadas de neve.
Reflito.
Sobre as múltiplas realidades existentes.
Qual será o processo seletivo?
Como é que isso deve funcionar?
Então sou eu quem as inventa ou elas se apresentam prontas?
Creio que estamos sempre fazendo escolhas.
Mesmo quando achamos que não.
E elas devem ter uma relação com a razão, e também com a intuição.
Eu também não me lembro dos meus sonhos.
Dizem que sempre sonhamos, mesmo quando achamos que não.
Acho que deve ter alguma relação com o fato de existir gente que sonha enquanto está acordado, o que é o meu caso.
Sonho durante o dia.
De noite tento dormir.
De noite o órgão responsável pela produção dos sonhos está tão cansado que me boicota.
Que saco!
Queria sonhar.
E lembrar dos meus sonhos.

19.12.10

SERIA O RENASCIMENTO DOS ISMOS?


É com uma certa frequência que escuto falar sobre o fim das ideologias. Segundo a opinião dos que insistem em decretar a derrocada dos ismos, uma das razões seria a vitória do niilismo. Outro dia refletindo sobre isso, encontrei uma face positiva contida nesse argumento. Porque se o idealista, como eu o compreendo, acredita em algo que pode ser pura imaginação e fantasia e nega a realidade individual das coisas, isso quer dizer que estamos menos vulneráveis e desconfiamos mais de teorias que nos são apresentadas como soluções salvadoras e definitivas. O que não é de todo mal. Talvez formemos uma massa de incrédulos, no fundo uma massa de niilistas que só acredita vendo e não está disposta a embarcar em novos ismos a qualquer preço. A face negativa fica por conta da passividade, que venceu a vontade de tomar as rédeas e transformar, típica dos idealistas, e traço forte dos descrentes. Se as definições me permitissem ser mais flexível eu diria que estamos mais para uma sociedade niilista idealista, um bando de gente descrente com devaneios egocêntricos. O engajamento será sempre proporcional a visão que o indivíduo tem da realidade.

O filme do inglês Michel Hoffman, que tenta nos contar como foram os últimos dias da vida de Tolstoi, e aqui saiu com o título “Tolstoi, o último outono”, é uma mostra de como podemos banalizar um mito quando tentamos tirá-lo de seu trono de intocável. Isso pode ser saudável? Sim, pode, mas é inevitável que seja também brochante. A parte a interpretação excepcional de Helen Mirren e Christopher Plummer, não sei não se a coisa foi assim tão descafeinada, beirando a tea time. Faltou o peso sombrio do homem Tolstoi e sobrou uma coisa inglesa mais para “orgulho e preconceito”. O filme trata de relação tumultuada entre Tolstoi, sua mulher Sofia com quem viveu quase meio século e seu admirador e chefe da seita toistoniana, Chertcov. Chertcov tenta convencer Tolstoi da necessidade de deixar seu legado para o povo russo enquanto Sofia se sente traída pelo homem que ela dedicou a vida inteira e que está prestes a deserdá-la. Se procurarmos lá no fundo nossa porção Poliana, podemos encontrar algo de positivo nesse embate entre idealismo e realidade, no filme representado por Chertcov e Sofia na mesma ordem. Aí entra a história do engajamento ser proporcional a amplitude da visão da realidade do indivíduo. Esta é a chave do filme, e do embate dos personagens envolvidos, se apegue a esse argumento e vá assisti-lo.

Vou tentar aqui fazer uma previsão. Acho que vem aí uma onda de protestos estudantis e movimentos sociais. Diferente de maio 68, vai ser uma coisa organizada sobre os preceitos dessa sociedade niilista idealista egocentrista, isto é, um bicho de sete cabeças. Eu o sinto sendo alimentado nas conversas entre professores e estudantes. Por enquanto e só um sentimento, daqueles que vem com arrepios na coluna, mas que no fundo provoca uma certa felicidade.

15.12.10

O OLHAR DA ROMY SCHNEIDER

Sexta que vem o canal de televisão Arte vai mostrar um documentário com a atriz Romy Schneider. E toda hora que eles fazem a chamada para nos lembrar do documentário, eles abrem a cena com ela cantando "La chanson d'Hélène", que foi tema do filme "Les choses de la vie" de Claude Sautet. Bem... os dias aqui estão frios, neva muito, a cidade nos lembra o tempo inteiro que o amor é... ehhh já me esqueci, faz tanto tempo, de qualquer forma eu não consigo mais tirar esse olhar e a voz da Romy Schneider da cabeça. Saio para a rua e ela me acompanha. E faz um estrago danado. O amor, o começo, o meio e o fim. Quanta coisa pode caber num olhar, quanto sentimento uma canção é capaz de provocar, quanta coisa está passando pela minha cabeça nesses dias. O amor do jeito que eu conheço foi-me apresentado pelo cinema. Antes de amar a primeira pessoa que amei, o cinema já havia soprado em meu ouvido as canções de amor que me fariam sonhar e grudado nos meus olhos as imagens de como meu amor deveria se parecer. Essas imagens e canções fazem parte do meu imaginário romântico, e eu duvido de toda pessoa que tenta me convencer que o amor como eu o imagino não possa existir. Sonho para continuar vivo. Compartilho com voces o vídeo e a canção, reparem no olhar da Romy Schneider.


PURO ACASO

Um amigo me presenteou dois jeans, um azul escuro e outro preto, Levis 501, ele os trouxe de uma viagem que fez aos EUA. Chegaram em boa hora, não sei como mas ele leu meus pensamentos. Hoje eu os levei para fazer a barra aqui perto de casa, numa costureira que eu sempre vi trabalhando numa pequena oficina quando passava pela Rue de Turenne. Uma senhorinha simpática que trabalha sozinha na sua oficina. Durante o tempo em que experimentei as calças ela quis saber tudo sobre minha vida e contou mais um tanto da sua. Veio da Tunísia há 50 anos, é judia, viúva e tem dois filhos, um deles acaba de vender o apartamento e ela está com medo que ele não encontre outro logo e gaste todo o dinheiro. Tem razão eu respondi, conheço essa história, dinheiro na mão é vendaval, ou se reinveste logo em algo concreto ou ele desaparece. Depois ela abriu uma gaveta e me mostrou um bolinho com 750 reais que um brasileiro lhe deu como pagamento de outros reparos. Eles valem alguma coisa? Sim, eu lhe respondi, aproximadamente uns 300 euros. Ela ficou feliz da vida. Deve trocar logo ou guardar? Troque logo eu lhe recomendei, e compre alguma coisa de presente para a senhora. Não, ela sorriu. Não preciso de nada, mas vou trocar assim mesmo. Na hora de pagar ela cobrou apenas pelo trabalho de uma das calças. Eu quis pagar as duas, mas não teve jeito, ela se recusou a receber. Saí de lá e depois de caminhar algumas quadras entrei numa livraria que fica na Rue de Bretagne, logo que entrei dei de cara com outro senhor que conheci num Café outro dia e com quem conversei longas horas. No dia em que eu o conheci falamos sobre livros e foi ele quem me indicou a livraria onde estávamos agora. Contei a ele que havia levado minhas calças para fazer a barra e resolvido vir conhecer a livraria. Ele conhece a costureira, me contou que foram namorados logo que ela chegou em Paris no final da década de 50. Disse que ela era uma mulher belíssima, mas que a coisa não se desenvolveu porque ele enveredou por outras áreas. Outras áreas? Sim, ele gostava muito dela, mas acabou gostando mais ainda do irmão dela, com quem ele manteve encontros em segredo até o dia que não deu mais para esconder e os dois tiveram que assumir a história. Segundo ele, o rapaz era de uma beleza inacreditável e o seduziu. Como assim seduziu? Até então eu não sabia que me interessava por rapazes, ele me respondeu com um sorriso maroto no rosto. Ah bom, e depois disso? perguntei curioso. Depois disso eu vivi com o irmão dela até pouco tempo, precisamente até dois anos atrás, quando ele faleceu com quase noventa anos. Viveram juntos por mais de 50 anos? Sim, e nesse tempo todo a irmã costureira não os perdoou, nunca mais falou com nenhum dos dois, nem no enterro ela apareceu. Meu Deus, eu disse, essa história parece ter sido inventada. Non, non monsieur, não saiu de nenhum livro, essa é a história da minha vida, ele me respondeu. Antes de pegar sua sacolinha de livros e ir embora, ele voltou-se novamente para mim e me disse, ah monsieur, se você quiser agradecê-la e fazê-la feliz, compre um sonho de baunilha e leve para ela, é seu doce predileto. E foi o que fiz. Comprei o sonho de baunilha e levei para ela. Feliz como uma criança ela me perguntou como eu sabia que ela gostava de sonhos. Eu lhe respondi que não sabia, que havia acertado por puro acaso. Agradeci mais uma vez e voltei para casa tentando me convencer de que esses encontros são apenas obras do acaso.


13.12.10

CALMA, É SÓ MAIS UM PRODUTO

No final de semana vi dois filmes. Um deles, uma bobagem, “De vrais mensonges” (Mentiras verdadeiras, ou algo parecido em português) com a Audrey Tautou, vá num domingo a tarde, sessão das 16 horas e esqueça que eu falei sobre o filme. Essa moça vai se perder se não parar de se auto-interpretar como uma moça boazinha, vai entrar no rol das ordinárias com voz infantilizada. Pronto, é só isso. Mas se quiser ver um filme bem feito, simples, que conta uma história mais simples ainda, vá ver “Mardi, après Noel” (terça, depois do natal), um filme que vem da Romênia, com bons atores, e que conta a história de um casal que tem uma filha de oito anos e que vai acabar se separando porque o sujeito se apaixona pela dentista da filha. O interessante é a maneira delicada como o tema separação e a passagem da perda da ingenuidade é tratada. Salvou o mal humor provocado pela Tautou e sua voz de nenê.

Voltou a fazer muito frio em Paris. A temperatura caiu para 8 graus negativos hoje. Sai de casa ainda muito cedo para ir a Sorbonne, com o dia começando a clarear. Teria preferido ficar na cama, mas não queria perder a aula de sociologia da cultura com esse professor que gosto tanto chamado Pecquignot. Três horas ininterruptas de um prazer inenarrável. Claro, objetivo e bem humorado. Marx, Michel Verret, Bourdieu, Hoggart, ele os trata com um respeito enorme, e nos apresenta esses sujeitos com um talento raro. No volta, ainda no metrô, meus pensamentos me levavam para outros lugares. O que vou fazer com tudo isso que estou ouvindo e acumulando dentro da minha cabeça? Dá para transformar o acumulo em produto e sobreviver deles? Dá para por Marx na minha vida? Porque se minha existência está diretamente ligada a minha produção, meu Deus, estou frito.

11.12.10

À LA RECHERCHE


Faz muito tempo que não sei o que é dormir um sono de horas ininterruptas. Durmo em conta gotas. Durmo no limite entre os territórios da consciência e o da inconsciência. Um replay da outra metade do dia, onde de alguma forma também fico transitando entre um e outro território. Longtemps, je me suis couché de bonne heure. Na maior parte do tempo é lá que fico, nesse lugar que não é nem um nem outro, e quando estou num quero ir para o outro e quando estou noutro quero voltar para o um. A luz verde permanentemente acesa do pequeno aparelho responsável pela minha conexão com a internete serve como um farol. Sou um rochedo no meio do oceano. Essa é a minha conexão. Voltarei para ela na manhã. Por enquanto me conecto a outros quartos onde dormi parte da minha vida. O perfume das tannenpalm é só uma lembrança. O silêncio. Eu o escuto, também como parte da lembrança. Agora é o cheiro do lixo que sobe com os homens poubelles quando abro as janelas. L’habitude! A única que tenho é a de lutar contra o que pode tornar a ser. Paciência. Não tenho. Volto para o farol e me agarro a ele. Nenhum náufrago a vista. Ouço as batidas do meu coração. Meu computador é equipado com dois. Duo cori está escrito logo ao lado das teclas que pressiono nesse momento. Duo cori. O perfume de vétiver está impregnado em todos os objetos e tecidos. O teto está mais baixo. Posso tocá-lo, mas não. Branco. Frio. Liso. O teto não foi feito para ser tocado. O sino da igreja bateu uma única vez. Meia hora de alguma hora. St Paul. St Paul. St Paul. São Paulo, 25/1/1962, St Paul. Logo ao lado. Faz um milhão de anos que moro num lugar chamado longe.

5.12.10

ANTICONGESTIONANTE E 131


Nos últimos cinco dias não saí de casa. Peguei uma gripe muito forte e não tive condições de fazer nada nem disposição física. Quando acordava dos meus pesadelos, uma seqüência enorme deles, acho que provocada pelos remédios e descongestionantes, sentava para escrever meu quarto romance, ainda sem título. Nevou muito ontem de manhã, mas a neve não resistiu a chuva fria que veio logo em seguida e derreteu. Tive como trilha sonora, o Quarteto de cordas de Budapest executando Beethoven que encontrei por 8 euros a caixa completa num sebo da Rue Vaugirard. Ouvi esses cds exaustivamente e escrevi também exaustivamente. Em alguns momentos me pergunto por que insisto em fazer isso. Passar horas em frente ao computador escrevendo e sofrendo para dar sentido a uma história que só interessa a mim mesmo, sem falar no cansaço físico, na dor nas costas e na congestão intestinal por passar horas sentado nessa porcaria de cadeira. Devo ter tendências masoquistas. Acho que escrevo para não enlouquecer. Ou já devo estar louco e ainda não me dei conta. Mas desconfio que escrevo para não enlouquecer, porque não saberia o que fazer com um monte de coisas e assuntos que não me interessam, e quatro montes ainda maiores de pessoas que me interessam ainda menos. Prefiro assim. Não tenho medo da solidão. Outro dia, enquanto dialogava com os meus botões, conclui que não conheço outra forma de sociabilizar com as pessoas a não ser pelo distanciamento. Quando me distancio é quando mais me sinto próximo delas. E Deus não vai me castigar por isso. Minha produção literária se faz a conta gotas, esse é o meu maior castigo. E eu tenho o péssimo costume de me maltratar. As vezes tenho a impressão de que faço de tudo para procrastinar minha escrita. Não sei fazer de outro modo, ou não tenho alternativa. Não sei. O que sei é que gostaria de ter conhecido Beethoven. Eu lhe beijaria as mãos e sussurraria em seu ouvido toda a minha gratidão. O quarteto para cordas número 131 em dó menor é mais um exemplo da genialidade desse sujeito forte e sensível. Depois desses cinco dias eu o conheço de cor e só não saio assobiando porque não teria fôlego para acompanhar os acordes ininterruptos e longos. Dormi com o adágio do primeiro movimento, acordei com ele, escrevi com ele e chorei com ele. E o quarteto de Budapest o interpreta magistralmente (uma expressão que devo estar plagiando de algum crítico besta, mas sinceramente, não tenho outras palavras para dizer o que quero dizer). Ainda estou me recuperando da minha gripe infernal. Voltei para o limbo, daqui a pouco volto para o cotidiano. E enquanto escrevo esse post ouço mais uma vez o quarteto para cordas 131. É assim que as coisas devem ser. É assim que eu gosto de perceber e absorver a vida: através da pele. O resto é shopping center, supermercado.

2.12.10

LARRY CLARK

A exposição do fotógrafo Larry Clark no mam de Paris causou discussões e polêmica mesmo antes de sua data de abertura. O prefeito queria proibi-la por achar que algumas fotos de Clark são um atentado ao pudor. Lembre-se, o prefeito de Paris é conhecidamente gay e aí vai um recado para quem está acostumado a enquadrar o homossexual num único formato: tem para todo mundo, o leque de tipos é no mínimo igual ao do heterossexual, vai do conservador ao estridente, do tradicional ao pós-moderno, do gari ao prefeito. Enfim, a exposição foi aberta com a condição de que a entrada seria proibida para menores de 18 anos. Quando a visitei não vi nada que um adolescente não poderia ver e que não possa ver num clicar de teclas no computador de sua casa. Aliás, a exposição é composta na maioria de fotos de adolescentes e teria como alvo exatamente esse público. Uma advertência na entrada do museu teria sido suficiente. Enquanto via as fotos, novamente tive minhas velhas reflexões sobre como enquadrar a fotografia no imenso universo da arte. As fotos de Larry Clark por exemplo, são um misto de documento e testemunho. Não consigo vê-las como uma produção artística, no sentido original do que é fazer arte, como produção de algo inteiramente novo no campo intelectual ou material, mas como recriação de um estado da realidade. Quando vemos os garotos injetando drogas nas veias enquanto seus pênis estão em estado de semi rigidez (Nossa! Demorei para achar uma expressão que substituísse o popular “frappé”), as imagens são o registro de um testemunho, no caso o do Larry Clark num universo que a maioria dos visitantes da exposição já ouviu falar mas poucos tenham feito parte, e funcionam como uma forma de incursão higiênica num mundo que esses visitantes normalmente não teriam entrado não fosse através dessas fotos. Como bom ouvinte voyeur que sou, ouvi pouquíssimos comentários das pessoas que estavam próximas, o silêncio acompanhava o olhar da maioria. Passa-se de um pênis semi-ereto a outro sem nenhum comentário, de um pico a outro com cara de paisagem, adultos de idade variada, mentes cheias de fantasias. O que se passa dentro de cada uma dessas cabeças? O que estão pensando? No final da exposição minhas emoções estavam em baixo da sola dos meus pés, saí me perguntando o por que daquele cansaço. Entrar no universo de Larry Clark não exige nenhum esforço, e talvez esteja aí o perigo.