Freud teria se dado mal se tivesse dependido dos meus sonhos para desenvolver suas teorias. Demoro para dormir, durmo muito mal e quando sonho, raramente consigo me lembrar sobre o que sonhei. Confesso que meu forte sempre foi sonhar acordada. De qualquer forma, tenho quase certeza que o mestre vienense não teria se interessado por meus devaneios. Teria me deixado esperando sentada na sala de espera da Bergstrasse enquanto vasculhava os porões escuros da mente de uma outra pessoa menos óbvia. Mas Freud já morreu faz tempo e eu estou aqui vivinha da silva, tentando decifrar um sonho que se prolongou em vários capítulos, ou melhor, em várias noites perturbando ainda mais meu já precário descanso noturno. No sonho eu me chamo Turandot. Mas ao contrário do que você possa estar pensando eu não sou nenhuma princesa chinesa e nenhum príncipe desconhecido se deslumbrou com minha beleza. A única afinidade entre meu sonho e a obra de Puccini é a ária na qual o príncipe desconhecido anuncia que ninguém havia dormido naquela noite. No meu sonho estamos eu e meu amante Gringo com uma terrível insônia num apartamento de cobertura na praia de Copacabana. Por que estamos com insônia? Não sei. Aparentemente desejo alguma coisa dele, e estou sofrendo porque ele não quer me dar o que quero. Estamos deitados de olhos fechados depois de termos feito amor até a exaustão. Não conseguimos dormir. Não conversamos. Não nos mexemos.
Não sei bem como, mas no sonho eu sei que o Gringo sente algo por mim. E ele sabe que se admitir a si mesmo que é amor o que sente por mim, vai ter que me dar essa coisa. Se você está se perguntando o que seria essa coisa que eu queria que ele me desse, eu também não sei te responder. É aí que Freud teria entrado para facilitar minha vida, mas como você sabe, infelizmente não podemos mais contar com ele. Ou felizmente. Porque desconfio que em tempos tão narcísicos como o que estamos vivendo, provavelmente ele teria trocado o divã pelo sofá da Hebe. De qualquer maneira, eu e o Gringo não conseguimos dormir e de repente eu nos vejo no imenso terraço daquele apartamento olhando para o mar. Eu de pé, rente a grade protetora, e ele sentado, como um pesado saco de areia. É quase de manhã. O sol está começando a ultrapassar da linha do horizonte que divide o mar com o céu. Além de nós dois, há o barulho das ondas e o sol, que agora já se mostra metade acima da linha e metade abaixo dela. Olho para o Gringo e pergunto: não é uma beleza o nascer de um novo dia? Ele levanta os olhos em minha direção sem mover o rosto enfastiado e não diz nada. Seus braços estão rentes juntos ao corpo e pela primeira vez eu noto que eles são muito longos. Colados nas laterais desse saco humano, seus braços são tão longos que ele poderia abraçar o mundo inteiro. Um perfeito australopithecus, parente próximo da Lucy nossa macaca mãe, digno de exposição em qualquer museu do mundo.
Os pensamentos do Gringo parecem estar longe. Os meus, como na vida real, são muitos e brotam como ervas daninhas nos canteiros do Jardim Botânico. Penso simultaneamente em como não havia percebido antes que seus braços eram tão longos, num trecho da música “Além do horizonte” do Roberto Carlos e no que será que ele deve estar pensando enquanto olha para mim. Incrível como mesmo enquanto estamos sonhando podemos pensar uma quantidade enorme de coisas ao mesmo tempo. De pronto ele está fumando um charuto. Um desses cubanos que dão de imediato um ar de poderoso chefão a quem sabe manuseá-los e tragá-los. E o Gringo é mestre nessa coisa de representação. Repete os gestos com perfeição, e a repetição dos movimentos qualifica e da credibilidade a sua performance. Foi quando começou a me contar como havia chegado aonde chegou, isto é, como havia se transformado nesse sujeito que eu amava. Sim. Porque mesmo no sonho ele tinha certeza que eu o amava. E eu o amava. Ele não estava errado. Eu o amava. Contou que veio parar aqui como enviado da empresa em que trabalhava. Fez prospecção de campo. Viajou pelo país para encontrar o lugar certo para abrir uma filial. Encontrou um terreno numa cidadezinha do interior e fincou bandeira. Lá, segundo o Gringo, teve que lidar com a ignorância e o amadorismo dos meus conterrâneos. Ainda segundo o Gringo, aqui todo mundo é amador, e assim seremos para sempre. “Porque vocês não conseguem separar as coisas. Uma coisa é o que vocês sentem, outra é o que devem fazer. Além disso, vocês choram por qualquer coisa”. Enquanto ele falava, eu observava o sol que agora já estava acima da linha do horizonte e cobria o azul do mar com uma manta de cor rosa alaranjada. Respirei fundo. Lembro-me que de repente fui abatida por uma preguiça macunaímica. E senti fome, muita fome, meu Deus, como senti fome. Perguntei a ele se não queria comer alguma coisa. Novamente ele apenas me olhou. Mas eu conheço o Gringo. Nisso ele não é diferente dos outros gringos, basta exibir alguns exemplares das frutas que decoraram a cesta da cabeça da Carmem Miranda para ele começar a dançar o chica chica boom. Porém, no sonho ele não reagiu como eu esperava. Continuei sem resposta. Ele limitou-se a tragar seu charuto e a soprar círculos de fumaça no ar. Bom, pensei, um novo dia já começou e eu não vou ficar aqui parada observando o grande apache meditar. Interpretei os círculos de fumaça como um sinal de que ele queria paz. Fui para cozinha e voltei com uma sacola repleta de frutas. Ele olhou para mim, depois para a sacola e depois para mim de novo, em seguida fixou os olhos nos meus e disse que não podia. Eu perguntei o que ele queria dizer com não podia. “Eu não posso”, ele repetiu, “não posso dar o que você quer”. Foi então que eu comecei a descascar as frutas. Descasquei bananas e mexericas, laranjas e mangas, papaias e abacaxis e as arrumei em torno do Gringo encerrando-o dentro de um círculo. Não sei por que fiz isso, mas o Gringo ficou lindo dentro daquele anel de saturno feito de frutas tropicais. Um silêncio assustador se esparramou sobre nós. Ele continuou fumando seu charuto enquanto eu recolhia as cascas que haviam ficado espalhadas fora do anel. Quando acabei de varrer o terraço inteiro e ele de fumar, o sol já estava a pino. O Gringo havia acompanhado minha dança ao seu redor. Havia registrado meus movimentos com seus olhos filmadores. Não me disse nada. Eu compreendi o que deveria fazer quando ele esticou os longos braços em minha direção.
Pouco antes de acordar deste sonho, eu ainda me vi aninhada em seu colo. O Sol começava a se despedir da praia de Copacabana. O perfume das frutas havia atraído um bando de aves que se aproveitava de nossa imobilidade para matar a fome e desarrumar o anel que nos envolvia. “Turandot minha princesa”, o Gringo sussurrou meu nome como se não quisesse incomodá-las enquanto alisava meus cabelos crespos, “o que elas estão cantando?” Bem te vi, eu disse a ele, certa de que sabia falar a língua delas. “Bem te vi, bem te vi” ele repetiu imitando-as.
Não sei bem como, mas no sonho eu sei que o Gringo sente algo por mim. E ele sabe que se admitir a si mesmo que é amor o que sente por mim, vai ter que me dar essa coisa. Se você está se perguntando o que seria essa coisa que eu queria que ele me desse, eu também não sei te responder. É aí que Freud teria entrado para facilitar minha vida, mas como você sabe, infelizmente não podemos mais contar com ele. Ou felizmente. Porque desconfio que em tempos tão narcísicos como o que estamos vivendo, provavelmente ele teria trocado o divã pelo sofá da Hebe. De qualquer maneira, eu e o Gringo não conseguimos dormir e de repente eu nos vejo no imenso terraço daquele apartamento olhando para o mar. Eu de pé, rente a grade protetora, e ele sentado, como um pesado saco de areia. É quase de manhã. O sol está começando a ultrapassar da linha do horizonte que divide o mar com o céu. Além de nós dois, há o barulho das ondas e o sol, que agora já se mostra metade acima da linha e metade abaixo dela. Olho para o Gringo e pergunto: não é uma beleza o nascer de um novo dia? Ele levanta os olhos em minha direção sem mover o rosto enfastiado e não diz nada. Seus braços estão rentes juntos ao corpo e pela primeira vez eu noto que eles são muito longos. Colados nas laterais desse saco humano, seus braços são tão longos que ele poderia abraçar o mundo inteiro. Um perfeito australopithecus, parente próximo da Lucy nossa macaca mãe, digno de exposição em qualquer museu do mundo.
Os pensamentos do Gringo parecem estar longe. Os meus, como na vida real, são muitos e brotam como ervas daninhas nos canteiros do Jardim Botânico. Penso simultaneamente em como não havia percebido antes que seus braços eram tão longos, num trecho da música “Além do horizonte” do Roberto Carlos e no que será que ele deve estar pensando enquanto olha para mim. Incrível como mesmo enquanto estamos sonhando podemos pensar uma quantidade enorme de coisas ao mesmo tempo. De pronto ele está fumando um charuto. Um desses cubanos que dão de imediato um ar de poderoso chefão a quem sabe manuseá-los e tragá-los. E o Gringo é mestre nessa coisa de representação. Repete os gestos com perfeição, e a repetição dos movimentos qualifica e da credibilidade a sua performance. Foi quando começou a me contar como havia chegado aonde chegou, isto é, como havia se transformado nesse sujeito que eu amava. Sim. Porque mesmo no sonho ele tinha certeza que eu o amava. E eu o amava. Ele não estava errado. Eu o amava. Contou que veio parar aqui como enviado da empresa em que trabalhava. Fez prospecção de campo. Viajou pelo país para encontrar o lugar certo para abrir uma filial. Encontrou um terreno numa cidadezinha do interior e fincou bandeira. Lá, segundo o Gringo, teve que lidar com a ignorância e o amadorismo dos meus conterrâneos. Ainda segundo o Gringo, aqui todo mundo é amador, e assim seremos para sempre. “Porque vocês não conseguem separar as coisas. Uma coisa é o que vocês sentem, outra é o que devem fazer. Além disso, vocês choram por qualquer coisa”. Enquanto ele falava, eu observava o sol que agora já estava acima da linha do horizonte e cobria o azul do mar com uma manta de cor rosa alaranjada. Respirei fundo. Lembro-me que de repente fui abatida por uma preguiça macunaímica. E senti fome, muita fome, meu Deus, como senti fome. Perguntei a ele se não queria comer alguma coisa. Novamente ele apenas me olhou. Mas eu conheço o Gringo. Nisso ele não é diferente dos outros gringos, basta exibir alguns exemplares das frutas que decoraram a cesta da cabeça da Carmem Miranda para ele começar a dançar o chica chica boom. Porém, no sonho ele não reagiu como eu esperava. Continuei sem resposta. Ele limitou-se a tragar seu charuto e a soprar círculos de fumaça no ar. Bom, pensei, um novo dia já começou e eu não vou ficar aqui parada observando o grande apache meditar. Interpretei os círculos de fumaça como um sinal de que ele queria paz. Fui para cozinha e voltei com uma sacola repleta de frutas. Ele olhou para mim, depois para a sacola e depois para mim de novo, em seguida fixou os olhos nos meus e disse que não podia. Eu perguntei o que ele queria dizer com não podia. “Eu não posso”, ele repetiu, “não posso dar o que você quer”. Foi então que eu comecei a descascar as frutas. Descasquei bananas e mexericas, laranjas e mangas, papaias e abacaxis e as arrumei em torno do Gringo encerrando-o dentro de um círculo. Não sei por que fiz isso, mas o Gringo ficou lindo dentro daquele anel de saturno feito de frutas tropicais. Um silêncio assustador se esparramou sobre nós. Ele continuou fumando seu charuto enquanto eu recolhia as cascas que haviam ficado espalhadas fora do anel. Quando acabei de varrer o terraço inteiro e ele de fumar, o sol já estava a pino. O Gringo havia acompanhado minha dança ao seu redor. Havia registrado meus movimentos com seus olhos filmadores. Não me disse nada. Eu compreendi o que deveria fazer quando ele esticou os longos braços em minha direção.
Pouco antes de acordar deste sonho, eu ainda me vi aninhada em seu colo. O Sol começava a se despedir da praia de Copacabana. O perfume das frutas havia atraído um bando de aves que se aproveitava de nossa imobilidade para matar a fome e desarrumar o anel que nos envolvia. “Turandot minha princesa”, o Gringo sussurrou meu nome como se não quisesse incomodá-las enquanto alisava meus cabelos crespos, “o que elas estão cantando?” Bem te vi, eu disse a ele, certa de que sabia falar a língua delas. “Bem te vi, bem te vi” ele repetiu imitando-as.