30.7.11

TIC TAC TIC TAC



Os últimos dias da semana foram de constatações. Saber esperar é algo que não se aprende voluntariamente, mas na marra. Os acontecimentos têm seu próprio tempo, que na maioria das vezes não é o que desejamos, mas que dita o nosso, então o melhor a fazer é seguir os conselhos da sexóloga/política Marta Suplicy quando ministra do turismo, não se estresse, se renda, relaxe e goze.

Esperar. Sentar num café e esperar. Ou ir a uma pequena exposição gratuita no Hotel de Ville chamada “Paris no tempo dos impressionistas” que relaciona os pintores que viveram em Paris na segunda metade do século 19 com a reconstrução da cidade feita por Haussmann. Enquanto se espera pode-se também amadurecer a visão, quero dizer, a percepção do real e do entorno. Devo ter passado pelo menos algumas dezenas de vezes diante da obra intitulada “Seule” de Toulouse Lautrec nas minhas inúmeras visitas ao Musée Dorsay, mas ela precisou sair de lá e vir para o Hotel de Ville para eu percebê-la. Uma pequena tela, óleo sobre papel, que por razões que eu não saberia explicar, dessa vez me fisgou.


O tempo esta semana também me fez sentir seu lado sádico. Esperei dias para dar continuidade a um conto que havia começado a escrever e não sabia mais o que fazer com ele. Esperei. Sentado. Dias. Noites. Até que ontem movido pela insônia resolvi retomá-lo e voilá ele ganhou vida. Bom. Quase terminado.


Esperar o tempo amadurecer reflexões e decisões pode ficar mais agradável se você fizer uso de instrumentos que tem a mão. Para quem gosta de musica clássica, uma boa alternativa é ouvir a Radio Classique Française pela internet. O site é o http://www.radioclassique.fr que trás um programação variada e rica, fugindo da transmissão pautada pela mesmice das outras rádios.

Idéias fixas, obsessões e compulsões de qualquer tipo não são antídotos contra esse lado sádico da personalidade do tempo. Isso só agrava a aflição e confere poder a ele. Não tem como escapar dessa equação, se ficar o bicho come, se fugir o bicho pega.

28.7.11

GARANTIAS



Num certo momento do percurso de suas vidas eles tiveram que decidir entre continuar juntos caminhando sob a chuva e permitir que ela encharcasse seus ossos ou correr cada um protegido pelo seu próprio guarda chuva. A primeira alternativa apontava riscos, com o tempo e a quantidade de água absorvida, seus ossos terminariam apodrecendo. O sonho de terminarem eternizados como esqueletos numa escola de medicina não se realizaria. A segunda alternativa certamente era a mais segura, os riscos de doença estariam minimizados a porcentagens baixíssimas, estariam protegidos de resfriados e dores de ouvido. Sempre optaram por se prevenir ao invés de remediar, enfim e breve, por que contrariar regras? Alterar percursos, mudar receitas, melhor não. Optaram pela segunda. Morreram depois de muitos anos, seguros, protegidos e secos. No atestado de óbito a mesma causa mortis: osteoporose.

25.7.11

TRAÇOS

Estou no meio da leitura de um livro que comecei a ler no final de semana. A autor é inglês e se chama David Nicholls e o romance saiu aqui na França com o título “Um jour”. Não sei se foi lançado no Brasil, mas se foi e a editora que o lançou foi fiel ao título, ele deve se chamar “Um dia”. Roteirista de televisão e cinema o autor soube construir a história com uma narrativa daquelas que vão te envolvendo lentamente. Ele situa o par na década de oitenta e a gente os acompanha, os encontros e desencontros, os pensamentos tipos da classe social a qual pertencem, como cada um deles desenvolve a própria vida, até chegar na década de 2000 e etc... O livro é bom, bem escrito, mas o que me chama a atenção durante a leitura é o fôlego narrativo do autor. De alguma forma acho que a gente consegue descobrir a nacionalidade do escritor através da dinâmica que ele impõe a sua escritura. Noto nos escritores ingleses essa calma necessária e quase nada ansiosa de nos contar o que querem nos contar em suas histórias por meio dos detalhes que escapam (intencionalmente) do perfil dos personagens. Você vai me dizer que todos os escritores fazem isso. Sim, é verdade, mas dependendo de suas origens e nacionalidades eles fazem isso de maneiras diferentes. Não há uma unidade, não poderia dizer que todos os autores ingleses escrevem de um só jeito, ou todos os brasileiros escrevem de uma única maneira, mas há uma tradição que, acredito, é aprendida através das leituras e outras influencias como o meio onde ele vive, origem, nível social e sei lá mais o que. Por mais contemporâneo, moderno e inovador que ele seja, ele não consegue se livrar de alguns traços de ligação com outros escritores da mesma nacionalidade. Poucos são os escritores que de tão geniais fogem a essa tradição inconsciente. Eu disse geniais, e gênios quando existem, não se enquadram a nenhuma regra.

Assisti a um documentário feito por Hugues Le Paige chamado “Le prince et son image” em que o jornalista acompanhou e filmou Miterrand de muito perto no seu dia a dia como presidente. O documentário expõe a construção da imagem em torno do ex-presidente francês. Miterrand incorporava a imagem do poder e soube fazer uso dela. Todo o entorno, o partido, seus ministros, secretários, amigos, amantes, jornalistas, ajudaram a construir o mito. O documentário não é nada isento da intenção, não idolatra o ex presidente, mas não é neutro. Serve para mostrar como a forte personalidade de Miterrand influiu nesse processo. Eu me impressiono com pessoas que como ele representam o perfeito casamento do ser e do estar. São pessoas que produzem uma imagem de si mesmas com inteligência e sabem como manipulá-la no cotidiano. Elas acreditam nelas antes de todo mundo começar acreditar que elas são como as pessoas às vêem. E esse jogo de espelhos se faz rapidamente. Miterrand se acreditava um homem forte. Foi assim que ele construiu sua imagem. Calculando, interferindo intelectualmente, escolhendo palavras, impressionando pela formalidade, talvez ele não tivesse conseguido se não tivesse esses traços de caráter dentro dele. Não consigo imaginá-lo descontraído, livre de pensamentos cartesianos, analisando a lógica em tudo. Dizem que era um sucesso com as mulheres. Talvez a aura do poder o ajudasse a conquistá-las, mas a intimidade, o diálogo interno, é isso que eu gostaria de saber, como será que esse homem pontiagudo dialogava com si mesmo. Quais eram seus temores, em quais situações duvidava de si, enfim, quando a imagem não era suficiente para encobrir os malaises.

22.7.11

DIFERENÇAS INCURÁVEIS

Eles se conhecem há 43 anos. Dessas mais de quatro décadas viveram juntos 25 anos, uma história de amor dedicado e profundo mas repleta de pequenas traições e reatamentos até o dia em que chegaram a conclusão de que o melhor seria a separação. Há 18 anos estão separados. Depois da separação ficaram quase dois anos sem se ver e sem se falar, mas voltaram a se encontrar. Depois do reencontro mantiveram aquele tipo de distância que está longe de transformar duas pessoas que já foram muito íntimas em estranhas, mas que está ainda mais longe de ser capaz de resgatar antigos sentimentos. Um encontro por acaso aqui, outro acolá, telefonemas nos respectivos aniversários. Atualmente eles moram em cidades diferentes. Um em Paris, o outro em Nice. O de Paris, hoje com 80 anos é o que ficou sem par. O de Nice, três anos mais jovem, é o que vive há 18 anos com o companheiro que motivou o rompimento. Antes de ontem o de Paris enviou um cartão postal para o de Nice lembrando-o do aniversário do dia em que se conheceram. Escreveu a data em números romanos, lembrou dos apelidos e de como costumavam se chamar na intimidade e no final completou o texto reafirmando o amor eterno apesar do tempo e da separação. Não queria recuperar o antigo amor, mas resgatar sentimentos que um dia fizeram parte da vida dos dois. Esperou um telefonema de agradecimento até três dias depois da data do aniversário. Segundo sua experiência a entrega do cartão poderia ter sofrido um atraso. Esperou. Não obteve resposta. Ligou.
Você recebeu o cartão que eu te enviei?
Sim, o de Nice respondeu.
E?
E o que?
Você não vai dizer nada?
Dizer o que?
Se gostou, se ficou feliz, ou sei lá... qualquer coisa.
O que eu posso te dizer?
Sei lá, diga o que quiser, mas diga alguma coisa, você acha que foi fácil descobrir como se escreve as datas em números romanos?
Você não tinha a menor obrigação de fazer isso.
Não é uma questão de obrigação, mas... você sabe como é cansativo para um homem na minha idade fazer todo o percurso até o correio...
Fez isso porque quis...
Chovia sapos quando saí de casa...
Ai meu Deus, vai começar com as cobranças...
Queria te surpreender, dizer que ainda me lembro do dia em que...
Eu sei, eu sei, o maldito dia em que nos conhecemos.
...
Você está me ouvindo?
...
Alô...alô, alôôô...
Preferia não ter te ligado, preferia ter acreditado que você não me ligou porque havia se emocionado com o meu gesto.
Você continua o mesmo.
Como assim?, "o mesmo".
O mesmo sonhador romântico infantilizado.
Acho que vou desligar.
Está vendo, continua o mesmo.
Você também, quanta delicadeza!
...
Você está me ouvindo?
...
Alô...alô, alô.
Preferia que você não tivesse me ligado, preferia ter acreditado que você enviou o cartão sem esperar nada em troca.
Você continua o mesmo.
Como assim?, "o mesmo".
O mesmo calculista ingrato, frio e insensível.
Acho melhor a gente desligar.
Está vendo, eu não disse que você continua o mesmo.
Não. Fui eu quem disse isso antes.
Está bem, então faça de conta que eu não te enviei nenhum cartão e que também não te liguei.
É o que farei. Melhor assim.
É. Melhor assim.
Tchau, até a qualquer hora.
Tchau.

18.7.11

O QUE IMPORTA



O fim de semana foi de tempo ruim, chuva, frio, temperatura de outono. Um alívio. Odeio o calor do verão, ideal para mim é temperatura entre 15 e 20 graus, céu azul e sol. Paris com tempo fresco é sinônimo de menos gente nas ruas, menos manadas de turistas, mais espaço nas calçadas e Cafés com mesas livres. Aproveitei para terminar de ler o livro de Philippe Besson chamado “Se résoudre aux adieux” que poderíamos traduzir como “se resolve com despedidas”. Um livro feito de cartas escritas pela protagonista Louise que viaja para longe depois de ter optado pelo silêncio provocado pelo luto derivado pelo fim de seu relacionamento com Clément. Chato? Não. Triste? Também não. Realista e universal, do ponto de vista da identificação de sentimentos e reações que também já fizeram parte de nossas vivências. Tudo depende de como você encara a leitura de um livro e a própria literatura. Eu estou sempre procurando paralelos, seja na trajetória de vida do personagem ou no perfil psicológico. Se me identifico com algum personagem, vejo aí uma chance de descobrir alternativas e ampliar meu leque de reflexões. Os desconfortos emocionais são universais e incomodam tanto um chinês como um francês como um Senegalês. Amor é amor em qualquer lugar do mundo, guardadas as diferenças culturais que delineiam os costumes e regras de conduta social, as necessidades individuais no que concerne aos sentimentos humanos são basicamente as mesmas. Todo mundo quer encontrar o grande amor da sua vida, todo mundo sofre com a solidão da busca, todo mundo tem uma idéia preconcebida do que é ser feliz, morre-se e mata-se por amor nos quatro cantos do mundo. Como ele curou sua dor? Como ela resolveu suas angústias? As vezes a narrativa me ajuda a valorizar algumas reflexões, outras me faz pensar em coisas que não havia pensado quando experimentei as mesmas dores e alegrias. Um bom romance é capaz de iluminar espaços escuros no cérebro da gente.

Com a temperatura mais baixa caminhei bastante e vi dois filmes. Um dos anos 70 chamado “Deep end” do diretor Jerzy Skolimowsky, que também fala de amor. Um adolescente em fase de descoberta da sexualidade que se apaixona por uma moça que como ele cuida dos vestiários de uma piscina pública. O filme é primoroso, visto sob a ótica do triângulo roteiro, direção e fotografia. A trilha sonora é do Cat Stevens. Se tiver aí em dvd, vale pegar para ver como esse adolescente dá seus primeiros passos.

O outro filme que vi é argentino, e mais uma vez, não deixou a desejar apesar de não ter a profundidade anunciada logo no início dele. “Medianeras” de Gustavo Taretto começa muito bem, tenta traçar alguns paralelos entre arquitetura e o planejamento das cidades (aqui em especial Buenos Aires) e seus habitantes, mas com o passar do tempo, mesmo que com muita sensibilidade e humor ele acaba adocicando demais os alfajones. Claro que dá para falar da solidão sem ser amargo, mas o excesso de lugares comuns e clichês do solitário urbano para descrever o perfil dos dois personagens solitários acaba tirando a força dramática do filme. Mas o filme tem mais qualidades que defeitos, por isso quando sair aí no Brasil você não deve deixar de ver. E como são bons os atores argentinos!

Termino este post falando de amor, mas de um tipo que já não existe mais (ou será que ainda existe?), do amor profundo, capaz de fazer uma cortesã mudar de vida para dedicar-se exclusivamente ao seu amante, e em seguida abdicar desse amor por acreditar que estará fazendo o melhor por ele. Falo de Violetta e Alfredo, personagens de La Traviata, transmitida diretamente do festival de Aix em Provence. Nem vem me dizer que sou cafona, se há uma coisa que me emociona é personagem de ópera morrendo de/ou por amor. Natalie Dessay e Charles Castronovo fizeram o par. O papel do pai (Germont) foi belissimamente interpretado e cantado por Ludovic Tézier, esse barítono francês que está cada vez melhor. Gosto de Natalie Dessay, mas normalmente tenho um pé atrás (inesquecível como Rainha da Noite da Flauta Mágica de Mozart e Olympia nos contos de Hoffman, mas irregular em o Rapto do serralho). Dessa vez ela me convenceu (com alguns deslizes, logo no início não conseguiu a coloratura exigida) mas depois foi perfeita, bem como sua atuação, como atriz, demonstrando um controle físico impressionante. Em alguns momentos a coreografia me lembrou o balé da Pina Bausche. Castronovo é americano, escreva aí, se ele se entregar mais ao interpretar os papéis, pode ser um grande tenor, porque voz ele tem de sobra. O Le Monde fez uma crítica extremamente negativa da produção. O crítico (não me lembro o nome) disse que o papel era muito pesado para Natalie Dessay, que o cenário foi pobre, e que Alfredo parecia o filho da Violetta. Bobagens, nenhum fundamento, nenhum argumento plausível acompanhou sua crítica.

Você sabia que Violetta realmente existiu? Se chamava Marie Duplessis, morreu de tuberculose aos 23 anos e teve como último amante Franz Liszt? Dumas (filho ilegítimo do Alexandre) também foi amante dela e inspirou-se em sua história para escrever “A dama das camélias”.

15.7.11

PARTES DE UM TODO


Vamos começar por partes. Não. Não sei dividir em partes o que é um todo. Na minha cabeça um evento cotidiano aparentemente insignificante pode gerar tsunamis assassinos e botar abaixo anos de trabalhos dedicados a construção de uma mente saudável. A loucura. Ela está sempre presente. Mesmo que apenas como antônimo de sanidade. Instante. Ilusão. O que é real?

Vi duas exposições. As duas me atraíram pelo lado emocional. A primeira entrou por acaso no meu percurso de volta para casa. Descobri o Centro Cultural Gulbenkian aqui em Paris. Ele fica na casa em que a família morou antes de se mudar definitivamente para Portugal. Vê-se sua trajetória, o que fez, com quem casou, onde morou e pouquíssima coisa de sua coleção particular (hoje em Portugal). Mas logo na entrada, um Francesco Guardi que eu não conhecia já valeu a visita. Ninguém visitava o local no momento em que eu estava lá. Sentei, vi o documentário entrevista com o neto do Gulbenkian, descansei da longa caminhada e fui embora. Os armênios são bons anfitriões. Sempre. Faltou o café e alguma prima ou tia para ler a borra, mas a casa me acolheu. Ainda no caminho de volta entrei na galeria de arte Gagosian. Queria ver os retratos de escritores do fotógrafo Richard Avedon. Bons. Muito bons. Mas poucos. Queria ver mais. Sai de lá com a sensação de que não me mostraram tudo. Galerias de arte tem essa coisa compromissada com conceitos estéticos. Eu estou começando a ficar alérgico a esses conceitos. As fotos dos retratos não são acompanhadas com os respectivos nomes. A maioria dos escritores expostos é conhecida, outros não, não teria sido mais inteligente identificá-los. A assinatura Avedon é mais importante do que o reconhecimento da personalidade registrada?

Encontrei-me com uma amiga ontem a tarde para tomar um café. Escolhemos o Café Beaubourg ao lado do centro com o mesmo nome pela praticidade, já que no meio do caminho de nossas casas. Já falei dos garçons bonitinhos mas ordinários que trabalham lá. O Café não tem mais nada de chique, e agora no mês de Julho está tomado por turistas que são enxotados de lá quando querem comer seus sandwiches comprados em outra esquina e pedem um expresso para acompanhar. Não pode. Pas ici gentalha. Vai comer seu sandwiche barato em outras paradas, não aqui. Pois ontem dois dos garçons/modelos/boys/bundinhas arrebitadas trabalhavam no mesmo horário. Um deles, o da bundinha ainda mais arrebitada que o outro estava para lá de dispersivo. Equivocou-se por duas vezes ao trazer nossos pedidos. Minha amiga não perdeu tempo, disse, olho no olho: se errar na próxima, vou passar a mão na sua bunda. Os cafés vierem logo em seguida. Corretamente.

11.7.11

BAZAR

Até pouco tempo tinha como vizinho um jovem estudante marroquino. Sami o nome dele, como o personagem do meu primeiro livro. O rapaz é simpático, mas as vezes era barulhento, trazia amigos e festejava quase todo final de semana até altas horas da madrugada. Tive que reclamar algumas vezes com ele, tantas que com o tempo era só ele ouvir o barulho da minha porta se abrir que ele já abaixava o som e pedia para os amigos falarem mais baixo. Notei a sua ausência por causa do silêncio que se faz presente alguns dias. Perguntei por ele à zeladora do prédio (uma Argentina chamada Dolores, louca mas boa pessoa). Ela me disse que ele partiu para Casablanca de férias, mas que em setembro ele estará de volta. Ontem quase a meia noite, estava emperrado numa frase de um novo conto quando bateram na minha porta. Pensei que algum vizinho iria reclamar do Chopin que eu ouvia enquanto trabalhava. Abri e dei de cara com um sujeito que me perguntava num francês com sotaque árabe se eu poderia ajudá-lo a instalar os canais de sua televisão. Perguntei onde ele morava, ele me disse que era meu vizinho (o apartamento onde Sami morou até duas semanas). Quando entrei no apartamento dele me senti de volta aos anos 70 na casa do caseiro da chácara dos meus avós. Tudo lá é antigo e velho, sofás são grandes demais, tapete com uma mesa de centro de madeira escura de tampão de azulejos e pés em forma de patas de leão, quadros de feltro com inscrições em árabe douradas pendurados nas paredes, cortina de crochê e a televisão tão antiga que quando eu a vi pensei que seria impossível ajudá-lo. Ajunte agora a essas imagens um cheiro adocicado de cuscuz marroquino. Acrescente ainda dois sujeitos deitados em dois sofás posicionados um de frente para o outro comendo seus cuscuzes em tigelas coloridas sobre suas barrigas. No chão havia pratos recém esvaziados. O cuscuz marroquino tem um cheiro adocicado que eu não consigo suportar por mais de alguns segundos. Meu pensamento era um só: sair o mais rápido possível de lá. Parei de respirar. Consegui fazer os canais entrarem e se ajustarem automaticamente e tratei de me mandar de lá. Voltei rapidamente para o meu studio. Respirei varias vezes profundamente e depois resolvi tomar um banho porque achei que o cheiro do cuscuz estava impregnado nas minhas roupas e no meu corpo. Quando sai do banho bateram na minha porta novamente. Era o marroquino me trazendo um prato de cuscuz como forma de agradecimento. Não podia recusar. Peguei o prato, agradeci, entrei, fechei a porta e naquele exato momento pensei que só poderia estar fazendo parte de um pesadelo. O que fazer? Me senti um lixo, um sujeito mal educado e grosseiro, mas eu não comeria aquele cuscuz nem que todas as vacas do mundo começassem a tossir juntas. Enfiei tudo num saco plástico, depois em outro saco plástico e mais em outro e desci até a lixeira central do prédio e o depositei no cesto. Voltei, lavei a tigela colorida e hoje de manhã eu a devolvi. Por favor, tudo menos isto. Até do Sami e dos seus amigos barulhentos eu senti saudades.

À propros Chopin: profundo e frívolo. Tudo passa muito rápido de um estado ao outro.

Estou numa sintonia estranha com a dinâmica da vida. Não é a palavra que mais ouço nos últimos dias. E a que mais tenho falado também. Não venha me dizer para dizer sim que outros sins virão automaticamente. Isso é filosofia barata de botequim. E a vida é cara. Muito cara. Procurar respostas fáceis para questões complexas é coisa de gente preguiçosa. Tenho a impressão de que será preciso esgotar os nãos.

Em Brahms não há fraquezas. Não. Tudo é força e intensidade. Razão e emoção. Todos os sentimentos humanos se condensam em sua música.

6.7.11

PRAZERES

No final do dia fui ver a exposição do Manet no museu d’Orsay. Quando cheguei não havia mais a multidão que me disseram que eu encontraria. Foi tranqüilo. Pude me aproximar das telas e apreciá-las demoradamente. São uma beleza. “Olympia”, “Almoço na relva”, “A execução de Maximiliano” e outras menos conhecidas mas nem por isso menos belas. Estava com uma amiga austríaca de passagem por aqui. Saímos de lá e o sol ainda estava a pino, resolvemos então tomar uma cerveja num desses cafés próximos do museu. Descubro então no cardápio uma lista com cervejas belgas, as minhas favoritas. A cerveja belga tem um sabor diferenciado de todas as outras que conheço, são mais encorpadas que as outras e você pode sentir o gosto da cevada e do malte, algumas têm até 9,5 graus de álcool, mas para mim são imbatíveis, não há nenhuma que se possa comparar a elas. As que mais gosto são, Duvel, Trapistes (produzidas pelos monges trapistas), Chimay e uma particularmente diferente chamada Morte Subite que é feita com o suco de cereja (não faça caras e bocas antes de experimentar, é simplesmente deliciosa). São facilmente encontradas por essas bandas e normalmente mais caras que as alemãs, holandesas ou francesas, mas têm sabor incomparável. Se você tomar uma um dia, vai perceber que o que bebe no Brasil é qualquer outra coisa, menos cerveja. Porém, porque tem sempre que ter um porém, fica quase impossível bebê-las em restaurantes e cafés por causa do alto preço. Hoje no Café onde nos sentamos eles pediam 10 euros por uma Duvel. No supermercado você a encontra por 1,70 euros. Mas como o garçom fez questão de me dizer, “estamos em Paris”. Bom. Para mim isso se chama roubo. Saímos de lá e viemos bebê-las em casa, sem culpa, sem a sensação de que estavam batendo a minha carteira. Voilá, um amigo francês me disse que costuma encontrar algumas marcas de cerveja belga no Brasil. Procure por aí, se encontrar compre, deixe gelar e experimente, vai ser difícil tomar qualquer outra depois. Manet e cervejas, comecei falando de um e acabei falando de outra coisa, mas para mim os prazeres se misturam, tanto um como outro embebedam meus sentidos.

4.7.11

AMIGO TEMPO

Nesse trecho, a única voz que escutamos é a nossa. O som dos nossos passos serve como marcador de ritmo e presença, a noção de direção fica prejudicada. Caminhamos. Na companhia do tempo. Corredores do labirinto. Procuramos saídas. O gps está nas mãos dele. Os dias são longos. As noites curtas. Não há senha de acesso.

A loucura é um estado de intensa absorção em si mesmo. Não há contornos, não há sombras, não há diferenças entre o interior e o exterior. É preciso todo o esforço do mundo para se reconhecer e saber onde se está. A cura, quando possível, se dá quando permitimos que uma parcela do mundo exterior, pessoas ou objetos, ultrapasse e nos transporte de um lado para o outro.

Eu senti uma distensão dentro da minha cabeça,
Como se meu cérebro tivesse rompido
Eu tentei repará-lo – uma borda à outra
Mas não consegui mais juntá-las
Emily Dickinson

Pode essa cisão. Não ser a loucura, mas a cura. Novos territórios, nova cartografia. Nova organização física, ajustamento da mente. Limites. O que não coube numa borda pode estar contida na outra. No tempo.