2.2.05

SENCHÁ.










Consultório psicanalítico.
Sala 3. Fim de tarde.
O doutor tem os olhos fixos sobre o paciente.
O paciente procura palavras para explicar o seu cansaço.
Diz que está cansado. De tudo.
De recomeçar tudo todos os dias. Explica que recomeçar
no seu caso quer dizer o mesmo que nada. Recomeçar
diz o paciente, não quer dizer coisas práticas, mas crenças.
E crenças não surgem assim do nada. É preciso ignorar
a razão. A lógica e a razão. E ele não consegue.
Não quer mais apenas acreditar, assim, fazer de conta, fingir.
Não quer mais. Não. Quer. Mais. Fingir. Acreditar.
O doutor ainda mantém o olhar sobre o paciente. Mas seu
pensamento está em outro lugar. Descruza as pernas e acende
um cigarro. Paris. Casa de chá, antiquário, rue du Bourg-Tibourg
numerrrro, numerrro, tenta se lembrar e não consegue,
numerrro, numerrro. La Grande Tradition, Les Meilleurs Crus.
O paciente já parou de falar e o doutor não percebeu.
Continua olhando fixamente para ele.
O paciente se levanta. Toca o ombro esquerdo do doutor
e pergunta se ele está bem. O doutor dá um sorriso e
imediatamente se lembra. Fondée em 1854, numerrro 30.
É isso meu caro diz o doutor ao mesmo tempo.
O paciente aguarda. O doutor se levanta e lhe dá um
abraço. Eu também, ele diz. Eu também cansei.
Estou cansado. Preciso de um chá. Você precisa de um chá.
Precisamos de um chá. O mundo precisa de um chá.
O doutor abre a porta. O paciente vai embora.
O céu escurece rapidamente. Chove forte.
O paciente se esconde sob a marquise de uma alfaiataria.
Olha os tecidos na vitrine, cumprimenta o artesão.
Príncipe inglês. Schotische karo. Salz und Pfeffer.
Seus pés estão encharcados. Um banho quente era
tudo que precisava agora. Um banho quente.
O doutor dá um gole em seu Sencha Midori. Respira fundo.
Graças a Deus, Graças a Deus.

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