Com uma insônia desgraçada e reforçada por um estado gripal, no início da madrugada assisti a um filme/documentário sobre a vida e o trabalho do roteirista norte americano Albert Isaac Bezzerides conhecido como Buzz. O Buzz era de origem greco (pai) e armênia (mãe), e o que me prendeu ao documentário foi a forma como ele falava de seu trabalho. Muito pobre ele começou a vida ajudando o pai a vender frutas no mercado de Fresno em São Francisco, e um dia vendo que sua mãe não tirava os olhos de um livro, decidiu que seria escritor. Queria escrever livros para chamar a atenção e ter o amor de sua mãe. O documentário focou sempre ele falando de como escrevia os roteiros para os filmes da Universal e depois para a MGM. Muitos sucessos, filmes que de acordo com a opinião de muitos outros roteiristas já traziam as características dos filmes noir. Mal pago, enganado por sucessivos produtores de cinema, muitos de seus filmes não levaram nem seu nome nos créditos. Acusado de comunista e boicotado pelos estúdios, depois voltou a escrever sucessos para a televisão e etc... Em muitos momentos no documentário ele diz ter “consertado” tal e tal trecho de tal e tal filme, demonstrando ao mesmo tempo despojamento e não se dando a menor importância. Ele sabia que seu trabalho como roteirista era bom, mas não via sua profissão com o glamour que as pessoas costumam ver , trabalhava como se fosse ferreiro, marceneiro ou qualquer outro artesão. Fazia seu trabalho e nunca se achou melhor ou pior, foi amigo do Falkner, e outros escritores de sua geração. No fim da vida ele assumiu um physique du rôle de um velho boxeador, camisa xadrez/gorro de lã/calça de veludo que disseram que ele nunca tirava do corpo, uma carinha simpática, como a do Norman Mailer já envelhecido. Me emocionei muito com suas aparições, suas falas sem amargura. Um homem cheio de lembranças do que fez, com consciência da importância de seu trabalho, e simples. Um pouco triste, vê-lo em sua casa cheia de carros velhos que as pessoas deixavam para que ele consertasse (e ele não consertava). Por outro lado, uma vida vivida sem arrependimentos, feita de trabalho e honestidade, sem estrelismos e egocentrismos e muita dignidade.
Reconheço em mim a alegria de “consertar” enquanto faço as revisões dos meus textos. Há uma certa euforia depois de cada corte do que penso excessivo, elimino um advérbio aqui e outro adjetivo ali e me sinto mais leve, e mais limpo, e mais feliz, um trabalho artesanal, como o de um restaurador paciente e esperançoso para ver a obra pronta. Por mais falsa que essa afirmação possa parecer, prefiro a reclusão da minha casa, escrevendo e revisando meus textos, a qualquer noite de autógrafos ou reuniões que exijam minha presença. Tenho um pouco desse silêncio do Buzz dentro de mim.
Conheci um homem muito parecido com o Buzz na cidade de Wels onde morei na Áustria. O nome dele era Willi Neuman e ele foi escultor e depois restaurador de móveis antigos. Quando a segunda guerra estourou, Hitler o obrigou a ir para Graz restaurar grandes esculturas de pedra. Willi tinha esse silêncio dentro dele, passava horas lixando e polindo suas peças e nada o fazia mais feliz. A noite bebia seu vinho e ia para cama já ansiando o dia seguinte para fazer a mesma coisa.
Viver no tempo em que revistas estampam bundas e caras enxertadas, lábios e orelhas artificiais, mulheres abacaxis e homens qualquer-coisa-com-tanto-que-eu-apareça, me faz muitas vezes me sentir um ser fora de lugar. Prefiro ser antiquado a ser adequado. Beijar uma boca imperfeita que uma de borracha. Comer sopa de letrinhas a bebidas isotônicas. Não fazer parte a ter que me dividir para agradar a gregos e troianos.