30.11.09

TRANSPARÊNCIAS


De sexta para sábado escrevi apaguei e reescrevi um parágrafo acreditando ser ele o primeiro de um novo conto. Duas e meia da manhã cansado da brincadeira de esconde esconde desliguei o computador e fui dormir. Domingo eu o reli. Mais de cinco horas para escrever aquele parágrafo e nem cinco minutos para perceber que ele não valia nada. Deletei. Li o jornal dominical, e não sei por qual razão me lembrei do quarto movimento da quinta sinfonia de Mahler (aquela que todo mundo só se lembra quando alguém comenta sobre o filme “Morte em Veneza”). Ouvi esse movimento umas cinco ou seis vezes até começar a achar que há uma familiaridade entre ele e o terceiro movimento da nona sinfonia de Beethoven. Repeti a dose, agora com o terceiro movimento da nona. Acho que elas conversam. Que suas espinhas dorsais vêm da mesma fôrma. Suas almas são quase gêmeas, uma é mais velha que a outra, mas elas dialogam e se fazem compreender. Não estou louco. Nem estava triste. As duas produzem sentimentos muito parecidos em mim. Quando achei que algum vizinho poderia vir reclamar, não da música, mas da exaustiva repetição a que estava sendo obrigado a ouvir, desliguei e voltei a tentar escrever o conto da noite anterior. Três páginas rapidamente se materializaram. Lembrei-me de Gide que invejava autores que tem facilidade e escrevem com rapidez. Não faço parte da trupe dos que passam muito rapidamente para o papel suas histórias. Preciso de tempo. Escrevo em ritmo de conta gotas. Escrevo, paro, levanto, faço café, atendo telefone, e volto para escrever. Se soubesse que seria tão fácil, não teria sofrido tanto na noite anterior. Tempo é uma coisa que eu cada vez menos consigo entender. Nem pretendo. Gosto de acreditar que ele está a meu favor.

27.11.09

IMAGENS

Entre as imagens de rua hoje registradas pelos meus olhos, duas ainda não se apagaram. A primeira é de dois casais que se esconderam atrás dos pilares da plataforma da estação do metrô para namorar. A segunda é de um morador de rua que dorme sob o minhocão, e que escolheu como cabeceira um dos pilares de sustentação do elevado no qual há um grafite com a imagem de um anjo de asas abertas usando um crucifixo.

No meio da tarde fui até a livraria Cultura do Shopping Bourbon. O rodízio de placas do meu carro não me permitia voltar para casa antes das oito, então procurei um filme cuja sessão preenchesse o horário entre 17 e 20 horas. Por falta de alternativa assisti “500 dias com ela”. O filme é ruim que dói. Não sei quem é mais sem graça, se a atriz ou o ator. Roteiro previsível, vídeo clip de quinta, com direito a cenas manjadas com casal apaixonado que deita em cama de lojas de departamento e cantorias de bêbados em restaurante com karaokê. Uma bobagem equiparável a invasão de filmes de vampiros cafonas que eu optei em não assistir.

Trouxe a biografia da Clarice para casa, e o único Murakami lançado no Brasil que eu ainda não li, “Norwegian Wood”. Vamos ao que interessa.

26.11.09

CRISTAL

Cada vez mais acredito no acaso como um conjunto de causas com propósitos pré-determinados. Imprevisível sim, mas não sem propósitos. Não perceber a relação entre eles e o fim por eles determinado, faz parte do plano. Não sei de quem, mas tem que ter um plano inteligente por trás. Algo bem low profile, que não gosta de aparecer, mas que sente um prazer desgraçado enquanto os constrói.

A moradora do apartamento abaixo do meu é uma viúva já de idade bem avançada que vive só. Segundo o zelador, ela tem duas filhas, mas elas não vêm visitá-la. Tem uma irmã que também não vem visitá-la. Passa os dias praticamente sozinha dentro de seu bunker. Entra e sai do elevador sem sequer olhar para nosso rosto. Não fala. Não encara. Praticamente não respira. Passa por você sem dizer bom dia ou boa tarde. Tem cara de jiló seco. Hoje a tarde ela tropeçou na frente do prédio e eu instintivamente corri para socorrê-la. Quando conseguiu ficar de pé, não olhou para mim, não fez sequer um gesto de agradecimento, me deu as costas e entrou no prédio como se o espírito santo a tivesse ajudado a se levantar. Respirei fundo. Tudo bem, não me incomodo em fazer o papel de espírito santo. Não precisa agradecer. Teria me feito muito mal não tê-la socorrido. Mesmo porque não sei a razão de sua imensa amargura, mas reconheço em seu corpo e em sua face muitas fragilidades. Talvez tenha desaprendido a falar. Depois de alguns minutos me recompondo de sua queda, dei meia volta e subi para lavar as mãos.

25.11.09

TURVO

Hoje não vi nada além.
Meus olhos não enxergaram mais do que dois palmos de distância.
Entre mim e mim mesmo,
o vazio e o eco da minha própria voz,
a revelar a ausência do novo,
o de sempre,
olhar,
ver,
cheirar,
e sentir,
um passo a mais e eu teria caído,
como sempre,
caio,
e me levanto,
e caio,
e me levanto.

Eu.
Meus olhos.
O vazio e o eco da minha própria voz,
O de sempre.

Nada além do desejo.

22.11.09

PARA MIM

Hoje acordei
querendo esquecer tudo
e não recomeçar nada,

apagar o que quase não é mais fogo,
não riscar sequer um palito de fósforo

ir embora,
ficar,
não me despedir,
acordar do pesadelo
voltar para a cama

dormir e re-aprender a sonhar.

20.11.09

ACONTECE

Com amigos franceses hospedados em casa, não deu para escapar, mesmo com o calor africano, fui obrigado a sair para mostrar a cidade. Uma das paradas foi o MASP, onde no segundo andar também é possível ver a exposição de fotografias do Walker Evans. O ar condicionado facilita bastante as coisas. Para mim o ponto forte de suas fotografias está nos retratos. Tanto nas fotografias feitas com o consentimento dos fotografados como naquelas em que os personagens não sabiam que estavam sendo fotografados, essas são suas melhores fotos. Evans tentou escrever antes de ser fotógrafo, mas não foi bem sucedido. Acho até que por isso mesmo seus retratos falam muito mais ao coração do que as imagens onde não há a presença do homem. É nos retratos que ele consegue contar suas histórias.

São Paulo não é uma cidade fácil para ninguém. Tanto para quem vive aqui como para quem está de passagem. Se para nós já é difícil descrevê-la, mais difícil ainda é compreendê-la. Para quem vem de cidades projetadas ou que se desenvolveram a partir de planejamentos, a variedade arquitetônica (?) passa a ser um dos atrativos. E como nos salta aos olhos a feiúra e a sujeira do centro velho. O patrimônio mais valioso é sua gente. Nem toda gente, mas boa parte dela.

Ainda não consegui ir à balada literária, mas até domingo vou passar por ela. Saiba mais visitando aqui o site do evento criado pelo querido Marcelino Freire.

16.11.09

TIRANDO O CHAPÉU


Não posso provar o que vou afirmar agora, mas eu já tinha pensado no que o Moacyr Scliar escreveu em sua resenha na Folha sobre o livro do Amós Oz “Cenas da vida na aldeia”. Não me lembro agora exatamente de sua afirmativa, mas afirmou que para escrever um livro como esse o escritor tem que ser muito bom e ter anos de vida nas costas. Pois quando comecei a ler o terceiro conto intitulado “Os que cavam” pensei a mesma coisa. Puxa como esse cara sabe contar suas histórias! Porque o texto é muito bom. A maneira de narrar e descrever o personagem Pessach Kedem, velho ranheta e amargo, político que amaldiçoa Deus e o mundo e ainda tem tempo para encher o saco da filha, é excepcional. São necessários muitos anos de observação para poder construir com tanta maestria a personalidade desse velho e de outros personagens desse livro de contos. Enquanto lia os contos, eu podia vê-los, e podia também entender perfeitamente a geografia da aldeia, a paisagem por ele denominada toscana israelense, os ventos e os cheiros do lugar, como se eu estivesse lá vendo e ouvindo tudo. Você percebe que ele não tem pressa para terminar de contar suas histórias, os lugares são muito bem descritos e os personagens conversam não apenas entre eles, mas também com o leitor. Talvez também por se tratar de histórias narradas numa aldeia, um lugar que nos dá a impressão de ter ritmo próprio, longe do tipo de vida que vivemos em nossas cidades, onde velhos são realmente velhos, professores têm perfil de professores, tias e sobrinhos têm jeitão de tias e sobrinhos, sem nenhuma artificialidade desnecessária, tudo isso contribui para a qualidade do livro. Mas sem a experiência vivida, os ouvidos calejados, e os olhos desgastados, assim como Scliar, também acredito que não seria possível contar tão bem a história da vida dessas pessoas. Leiam, porque é bom.

15.11.09

ADAGIO MOLTO E CANTÁBILE

Tenho um romance ainda não publicado, no qual o personagem principal num momento de extrema angústia zapeando canais na tv, se depara com uma orquestra executando a nona sinfonia de Beethoven. Ele diz que acha que o mundo deveria ter acabado segundos depois de que Beethoven terminou o terceiro movimento dessa sinfonia. Hoje tive a mesma vontade e sensação. Não há nada mais comovente. Não sei qual a fórmula matemática musical usada por ele quando a compôs, e nem quero saber. Acho um privilégio poder ouvi-la repetidamente e acho que ele deveria ser santificado por tê-la criado. Deus estava presente e ele foi um servidor perfeito de Sua vontade. Inicio aqui uma campanha para a santificaçao de beethoven. Mais do que a ode a alegria no quarto e último movimento da nona sinfonia, o terceiro movimento faz qualquer ser humano perceber sua significante insignificância diante da grandeza do universo, por isso acho que ela deveria ficar tocando repetidamente em todos os lugares possíveis. Dentro de elevadores, bancos, hospitais, congresso nacional, tribunais, delegacias, favelas, tanques de guerra, ônibus, trens do metrô, táxis, restaurantes, rua Oscar freire, vinte e cinco de março, campos de futebol, e por aí afora em todos os lugares onde um ser humano estiver presente. Porque o terceiro movimento da nona sinfonia do Beethoven desmonta qualquer personalidade prepotente, independente de cor, religião e classe social. Fechem os olhos e ouçam. Não há ser humano com sangue de barata capaz de não se emocionar com o equilíbrio perfeito de delicadeza e força. Duas características contidas nos homens desde sempre, e em permanente desequilíbrio. Beethoven conseguiu reuni-las e mostrar que é possível equilibrá-las, num só movimento, em apenas17 minutos, e intenso deleite.

12.11.09

LABORATÓRIO DE IDIOTAS

Cada vez mais me convenço de que não há um avanço nas relações de convivência entre os diferentes gêneros ou grupos que formam a sociedade. Depois de escolhido o seu grupo o sujeito se integra a ele e reforça a diferença geralmente menosprezando o diferente. O interesse pelo diverso serve apenas como fermento para fazer crescer o bolo do qual ele faz parte. Talvez eu seja um desconfiado por natureza, mas dificilmente erro quando ouço minha intuição. Acho que a maior parte dos que se dizem liberais, passam rapidinho para o lado dos retrógrados quando confrontados em questões íntimas ou pessoais. A linha que demarca os territórios deixa de ser apenas delimitadora e passa a fazer a função de segregadora. Ninguém mais quer falar sobre aprender a conviver com o diferente. Os discursos são muito parecidos, fala-se muito do que o outro quer ouvir, e pouco do que se realmente pensa, já que o objetivo quase sempre é ser aceito e vender seu peixe. O politicamente correto faz muito mais estrago do que a gente imagina. A carapuça se transforma no verdadeiro rosto de quem a veste.

Sou pela volta de todos os movimentos libertários e de afirmação.

Quero o confronto e a volta do idealismo radical.

Bactérias e fungos adoram ambientes úmidos, meia luz e mornos.

5.11.09

INSIGNIFICÂNCIAS

Esses dias insuportavelmente quentes não são inspiradores. Pelo menos para mim. Nascem pensamentos de cara já cansados, preguiçosos e desalentadores. Ontem, por exemplo, pensei que a luz dentro de mim fosse apagar de tanto cansaço. Do esforço e da superação. Não dá mais para matar um leão por dia. Mesmo porque não há mais leões para abater, o resto dos meus conterrâneos já fizeram picadinho deles. E não quero mais matar nada para sobreviver.

No fim de semana reli “O Caminho de Los Angeles” do John Fante. Eu o encontrei por acaso numa livraria e resolvi comprá-lo. Depois de 25 anos eu o reli novamente. Teria sido melhor deixá-lo como era na minha lembrança. O livro tem momentos muito bons, mas hoje, com meus olhos embrutecidos pelos anos vividos, não me comove mais. Pena. Em certos trechos quis avançar porque achei que ele já tinha dito tudo o que queria dizer.

As vezes também acho que já disse tudo que queria dizer.