31.5.10

ROTH, CEVICHE E BEETHOVEN


Assim que comecei ler “A Humilhação”, o último livro do Philip Roth lançado no Brasil, me lembrei de uma amiga que ao contrário da grande maioria de leitores não o considera um grande escritor. Faço parte da imensa maioria que gosta muito dos seus livros e da forma como ele narra suas histórias. Temas como guerra da Coréia, presente no romance “Indignação” não me interessam, mas o maneira com a qual ele se debruça nos conflitos interiores de seus personagens é primorosa. “Complexo de Portnoy”, romance que o consagrou na década de sessenta já era assim. “A humilhação” também é assim e por isso gosto do livro. O primeiro parágrafo surpreende pela simplicidade, e se você tem o ascendente em virgem (como eu tenho), pode cair numa armadilha. Deve insistir e continuar a ler o romance, ignorar as primeiras impressões. Deixe as expectativas de fã de lado e siga em frente, pode não ser um grande livro, mas nem por isso ele é ruim. Sobre a opinião de minha querida amiga, graças a Deus ainda tem gente com opinião própria, é uma leitora crítica e apaixonada. A gente pode até discordar, mas é bom saber que há pessoas com capacidade crítica e coragem de dizer o que pensa.

No final de semana desci a serra. Em Ubatuba fui buscar um amigo no saco da ribeira, um pequeno porto no Perequê Mirim onde ele guarda seu barco. Lá, quase no píer, há um pequeno restaurante, simples, cinco ou seis mesinhas, freqüentado pela gente local e proprietários de barcos, onde comi um delicioso ceviche muito bem temperado, com coentro, rodelinhas de pimenta vermelha, cebola e limão. Refinamento é isso aí, usar o que a natureza está oferecendo de maneira simples e descomplicada. Mais ou menos isso deveria funcionar como receita para a vida. Também não sei porque complicamos nossas vidas buscando coisas ou ansiando sempre mais. Admiro boquiaberto pessoas sem muitas pretensões, que encontram prazer no cotidiano e no que fazem, se questionam pouco sobre suas próprias vidas. Não diria que são melhores ou piores que outras pessoas que como eu constantemente pensam em aprender mais, saber mais, conhecer mais, experimentar mais. São diferentes, mais satisfeitas consigo mesmas, passam uma impressão de que vieram prontas para o mundo, o que é muito diferente de passividade ou comodismo, isso sim me desespera. Durante o tempo em que morei na Áustria convivi bastante com artesãos que tinham essas características. Homens simples que executavam seus trabalhos com devoção e que chegavam ao fim do dia satisfeitos. Não tinham outro interesse a não ser ver o objeto em que trabalhavam ficar pronto. Não liam, não iam nem ao cinema nem ao teatro, os acontecimentos do mundo não alteravam nem um minuto de suas rotinas, dormiam cedo e ficavam felizes ao acordar e perceber que poderiam continuar a fazer a mesma coisa que vinham fazendo durante os últimos quarenta anos. Ah como eu os invejava! Mas não sou assim, então não me resta alternativa senão me aceitar como sou, fazer constantemente acertos comigo mesmo, me equilibrar sobre minhas próprias pernas dividindo o peso para não sobrecarregar nem uma nem outra.

Subi a serra ouvindo as sinfonias de Beethoven. O estado de espírito leve e profundo que alcancei enquanto os sons entravam em meus ouvidos, foi o mais próximo que talvez eu consiga chegar dos homens simples e artesãos que falei no parágrafo acima. Naquelas horas de viagem pensei e desejei muito pouco, meu nível de satisfação com a vida foi quase perfeito. Eu sei, eu disse quase. Porque quando escrevia a palavra perfeito senti um medo desgraçado.

28.5.10

AMIGOS DA GUARDA

Às vezes um bate papo despretensioso com um amigo/a pode re-iluminar pensamentos, propostas e promessas que a gente um dia fez a nós mesmos. Coisas que em determinado momento da vida a gente jurou que nunca mais faria reaparecem como um desafio. Como se a vida nos dissesse “olha aí, você disse que não cairia mais nessa cilada, então agora tem a chance de provar”. Pode ser qualquer coisa, trabalho, regimes alimentares, recaídas amorosas ou até parar de roer unha. Mas o tempo e o cotidiano vão funcionando como um corretor automático de texto e gente vai se tornando menos atento ao caminho que inevitavelmente nos levará ao que nos levou a promessa. Aquela luz forte que serviu como holofote e iluminou a experiência sofrida vai perdendo a intensidade, e é exatamente nesse momento de lusco fusco em que você já está quase se esquecendo do juramento, que um bate papo informal pode ser salvador. E não é preciso nem entrar em detalhes durante a conversa, basta contar algo ou narrar o acontecido. O amigo/a faz um comentário e a luz se acende, “é isso mesmo, já estava quase repetindo o que me levou um dia a jurar que não faria!”. Ufa, que alegria que dá na gente perceber que puxou o freio antes. E como é bom ter esses amigos anjos da guarda!

25.5.10

UMA SOLIDÃO RUIDOSA

No último fim de semana ganhei de um querido amigo um livro de presente. Nunca havia ouvido falar do falecido autor de nacionalidade tcheca, Bohumil Hrabal. O livro se chama “Uma solidão ruidosa”, tem pouco mais de cem páginas e sua narrativa é peculiar. O livro foi publicado em 1976 e o leitor desavisado pode deduzir que o romance é mais um dos muitos outros desta época cujo assunto é o regime comunista imposto na então Tchecoslováquia. O personagem do livro, assim como o próprio autor, passou os últimos 35 anos compactando papel numa velha prensa hidráulica, num porão úmido e infestado de ratos. Toneladas de livros passaram por suas mãos e ele salva muitas das obras. A história é simples e recheada de citações e passagens desses livros. Durante a leitura lembrei-me dos outros (poucos) autores tchecos que já li, como Viktor Klima e Milan Kundera e consegui identificar uma vitalidade que parece estar por trás de cada uma de suas palavras. Independente da história que esses autores estão nos contando, a forma narrativa energética sobressai. Particularmente neste pequeno livro, isso fica claro em cada um dos capítulos. Talvez em razão da divisão deles, compostos cada um de um único e longo parágrafo. Li rapidamente, acompanhando o fluxo rápido das idéias do autor. Muito antes de ser fisgado pela história, fui levado pela força e vitalidade da forma narrativa. Um livro que não é difícil de ler, mas que por outro lado não provoca grande prazer, não chega a emocionar, mas te conduz ao fim por força da fluidez. Não mencionei Kafka propositalmente. Mesmo porque sua forma narrativa e originalidade literária não caberiam em nenhuma moldura. Em seus livros, essa vitalidade também está presente, mas ao contrário de seus conterrâneos, a própria história serve de meio de transporte para levar o leitor adiante. Em “A metamorfose”, obra escrita quando o escritor ainda não havia completado trinta anos de idade, isso fica muito claro, a cada parágrafo avançado, a vontade de desvendar o próximo fica maior. “Uma solidão ruidosa” tem apenas 106 páginas e pode ser comparado a um desses carros antigos já extintos e expostos em salões de automóveis internacionais: démodé do ponto de vista estético, mas de qualidade inquestionável.

24.5.10

AREJANDO

Tem uma história querendo nascer dentro da minha cabeça. Pensei nela quando voltava da praia enquanto dirigia, mas ao contrário das últimas vezes que comecei a escrever um romance dessa vez estou com uma preguiça imensa. Estou sem vontade de sentar e escrevê-la. Escrever é cansativo, vou segurá-la dentro de mim, me preparar psicológica e fisicamente para soltá-la. Já virou lugar comum dizer que escrever é uma atividade que requer recolhimento e silêncio, mas é verdade e tenho muito respeito do início, das primeiras palavras, do organizar os pensamentos, quebrar a cabeça para transformar as idéias em uma história coerente. Tenho uma idéia geral do que quero, mas não sei por que razão fico inventando desculpas para não me sentar diante da tela. Em algum momento vou ter que apertar o botão player.

Enquanto isso, aqui em baixo, escrevo pensamentos, sentimentos, vontades, nada é sólido, nem ao menos palpável, e nem por isso irreal. A realidade é o que a gente sente, pensa e acredita, e dentro dela há ainda o que não conseguimos perceber, o fundo escuro e profundo, o outro lado da consciência, um lugar onde muito pouca gente tem coragem de entrar. De vez em quando me sinto corajoso e visito esse lugar. Entro, vasculho um pouco a desordem, abro algumas janelas e arejo o ambiente, coloco alguns objetos no lugar, jogo outros na lixeira e saio. Confesso: todas as vezes que estive lá trouxe alguma coisa dentro do bolso. Não me sinto culpado, não posso roubar a mim mesmo. No início não sei o que fazer com elas, mas depois vou encontrando utilidade para cada uma dessas coisas. Pensamentos se encaixam, sentimentos encontram eco, e as vontades vão surgindo mais leves e menos exigentes.

21.5.10

PODERES

Acordei com vontade de comer peixe feito com leite de coco e azeite dendê. Tinha todos os ingredientes em casa, exceto o dendê. Quando quero comer alguma coisa não meço esforços para satisfazer o meu desejo, sou pior que mulher grávida. Passei em dois supermercados antes de finalmente encontrar o azeite numa casa que vende artigos de Umbanda e Candomblé. Teria ido até a Bahia se fosse preciso, mas a lojinha tem a Bahia toda concentrada bem pertinho de mim. Sou freguês da loja de artigos religiosos, costumo comprar velas para oferecer a Miguel Arcanjo e espíritos do bem que me orientam e guiam no dia a dia. Não havia pensado nela até começar a entrar em desespero depois de sair do segundo supermercado e imaginar que corria o risco de não satisfazer meu desejo. Lembrei que havia visto as garrafinhas do azeite na prateleira ao lado das ervas e corri para lá. Quando saía da loja dei de cara com a vizinha que mora no apartamento de cima. A mulher olhou para mim como se tivesse visto um fantasma, deve ter pensado que eu fui lá para comprar os ingredientes para fazer o “trabalho” que certamente um dia vou fazer se seus graciosos cachorrinhos continuarem não respeitando o vizinho de baixo. Gostei da coincidência, ela passando na frente da loja bem na hora em que eu estava saindo. Semana passada coloquei um doutor na frente do meu nome quando interfonei para reclamar de seus filhinhos, mas o encontro casual vai impor mais respeito, acho que a partir de agora ela vai me levar mais a sério.

Como já estamos no assunto religião, vou emendar e falar sobre um documentário que vi ontem na tv italiana sobre o Papa João Paulo II. Dentro da minha fé cabe um pouco de tudo, com o passar dos anos me tornei um ser ecumênico, herdei preceitos ortodoxos por causa da minha ascendência, estudei em colégio de padres salesianos, adoro acreditar que depois da minha morte vou reencadernar e serei uma pessoa mais evoluída (sei lá o que isso deve significar, mas só de escrever a palavra evoluída já me sinto melhor) me emociono com as cerimônias judaicas, de vez em quando me ajoelho e curvo o meu corpo em direção a Meca, aprecio a filosofia budista, dou piruetas só de ouvir os tambores da umbanda e do candomblé, falo com Miguel Arcanjo o dia inteiro a ponto de acreditar que às vezes ele se cansa de mim, enfim, sou tudo isso aí e ninguém teve a idéia de me internar. Ainda. O documentário sobre o Papa João Paulo II mexeu comigo, e quanto mais avançava para os seus últimos anos de vida, quando seu rosto e seus olhos assumiram um semblante e um olhar contemplativo, mais eu me convenci que ele foi um sujeito especial. O homem tinha um talento para se comunicar com suas ovelhas que pouquíssimos homens públicos têm. Não importa se a gente concorda ou não com os ideais defendidos por ele, não estou discutindo a igreja católica a instituição ou sua história, estou falando sobre a pessoa Karol Wojtyla, sobre seu poder de irradiar emoção, transmitir mensagens, o sujeito que soube usar o poder que lhe foi concedido de uma maneira impressionante. O documentário trazia a opinião de pessoas que conviveram com ele não apenas dentro do vaticano, mas também antes, na vida pré papal, amigos, assessores, médicos, jornalistas. Gostaria de ter tido uma conversa íntima com ele. Como no momento não estou conseguindo me concentrar, nem ler nem escrever, assistir ao documentário teve um efeito terapêutico e bom.

19.5.10

LEAVE ME ALONE

Enquanto eu esperava a mocinha tirar o meu expresso, um sujeito encostou a barriga no balcão a apenas alguns centímetros de mim e disse num volume de voz elevado: um expresso puríssimo e virginal. O tom de sua voz era muito mais feminino do que masculino, esbanjava segurança e demonstrava firmeza. A atendente sorriu um sorriso típico de quem não achou graça da piada e emendou se ele queria com ou sem leite: sem pecado, puríssimo, ele respondeu para todo mundo ouvir. Com o canto dos olhos percebi que ele falava com ela, mas olhava para mim, imagino que para ver se eu havia achado graça. Continuei durinho sem mexer nem corpo nem cabeça, meio de costas meio de frente para o balcão, torci para ele não me cutucar o ombro com a ponta dos dedos ou se dirigir a mim de alguma outra forma, normalmente essas pessoas são de cutucar e me constrangem muito mais do que me fazem rir. A mocinha trouxe meu café e em seguida o dele. Procurei um envelopinho de adoçante e o encontrei infelizmente entre mim e ele, próximo o suficiente para encorajá-lo a soltar mais uma de suas pérolas: ele está no meio de nós. Imitei o sorriso amarelo da moça enquanto rasgava a pontinha do envelope e voltei para a minha posição original. Quando ia despejar o adoçante na xícara ele resolveu novamente se meter no meu café: não faça isso, vai cometer um pecado. Despejei como se não tivesse escutado sua sugestão, misturei o adoçante com a colherinha e me preparava para o primeiro gole quando novamente, e agora com uma voz chorosa, imitando uma criança, ele resolveu abrir a boca: perdeu, perdeu, perdeu a virgindade e agora é para sempre e na hora da morte amém. Não sei qual era o meu semblante no momento em que me virei e olhei para ele, sei apenas que ele deu dois passos para trás e disse: entendi, entendi, não precisa dizer nada, já estou indo, fui, deu mais alguns passos para trás e continuou repetindo, fui, desculpa aí, fui, entendi, e definitivamente para meu alívio e o da atendente ele foi embora. O que fazer com um tipo desses? A vontade é mandá-lo calar a boca e meter o bico no café da mãe dele, mas a gente por constrangimento acaba forçosamente rindo ou espera paciente que a pessoa se toque. Não sei o que pode ser pior, encontrar pela frente gente mal educada com perfil coerente de gente mal educada ou gente mal educada travestida de bem humorada. Outro dia vi um sujeito com uma inscrição na camiseta: “Fica na sua que eu fico na minha”, achei meio esquisito, mas agora entendo, se alguém souber onde posso comprar um dessas, por favor me envie o endereço. Sei, vou receber e-mails dizendo que estou ficando velho e ranheta, não tenho senso de humor e blá blá blá. Pode ser verdade, mas não encho o saco de ninguém. Fico na minha, e deixo os outros ficarem nas deles.

17.5.10

DESCULPA AÍ MOÇO...

Queria tanto querer menos de tudo. Para mim e para os outros. Desejar menos. Não precisar ser super-herói, não pensar que a razão desse querer menos seja fruto de qualquer tipo de medo, acovardamento ou insucesso. Viver uma vida mais na beiradinha do mar, mergulhar no rasinho e logo voltar para a superfície, colocar a cabeça para fora d’água e respirar feliz. Queria também não ter mais vontade de saber a razão de tudo, os por quês e senãos, não me sentir tão responsável por minha felicidade e a dos outros. Só existir e ser o que dá para ser, importar-me com o que sou e desinteressar-me pelo que gostaria de ser. Eu sei, ficar no nível volitivo da evolução pode não ser de todo tão... tão..., olha moço, não sei quando foi, mas em algum momento da minha vida me sugeriram que eu deveria ambicionar e eu aceitei a sugestão. Acreditei não na matéria, mas no impalpável, no que não dá para ver a olhos nus (existem olhos vestidos?), no que não se compra nos shoppingscenters, no que não tem etiqueta nem código de barras. Por isso muitas vezes me sinto muito só e no lugar errado, e como se isso não bastasse, também no século errado. Você sabe em qual dos depósitos da Universal Studio abandonaram a máquina do tempo do filme “De volta para o Futuro”? Se souber me diga, quero que ela me sugue, me leve de volta para o meu tempo, para um lugar onde o conhecimento e o reconhecimento são uma única coisa, a palavra, a moeda de troca e a contemplação, uma forma de oração. Eu sei, o tal do nível volitivo é pegajoso, mas olha moço, estou quase chegando a conclusão de que quase tudo e quase nada é quase a mesma coisa. Tudo é relativo, depende do ponto de vista de cada um, e esse cada um hoje vale tão pouco que se bobear daqui a pouco todo mundo vai passar a se chamar Zé. Viu Zé, tá doendo aqui dentro, e eu não sei o que é e tô nem querendo saber. Num quero me esforçá. Quero ficá véio. Bem véio. Num ligá pra mais nada. Pode dá uns tapa na minha cabeça, me chama de bobo, tô nem aí. Só quero ficar olhando. Nem virar a cabeça eu quero mais. E quando eu fechar os olhos, tomara que seja para sempre.

14.5.10

CAMINHOS.

Pensamentos logo de manhã: arrumar uma pequena mala e descer para o litoral norte, levar dois livros, o pequeno notebook, caneta, lápis, um caderninho, o cd do Beethoven com a terceira sinfonia que faz tempo que não ouço e acordei com a melodia do segundo movimento na cabeça, comprar pão sírio, duas garrafas de vinho tinto, levar o carregador do celular, calça de agasalho, cobertor.

“Tudo pode dar certo” o último filme do Woody Allen não é mais do mesmo como andam dizendo por aí, ou é, se a gente levar em conta que o personagem principal diz muita coisa que a gente costuma pensar no dia a dia (pelo menos eu). Estranhei o ator Larry David, não gosto de sua voz nem do seu jeito, pouco convincente, teria gostado mais se o próprio Allen tivesse atuado. A mesma coisa com a atriz Evan Wood, acho ruim, boba e pouco convincente. Mas adoro o tema do filme e suas indagações. Por trás dos diálogos e críticas Woody Allen deixa a gente perceber sua visão romântica e burguesa de mundo. O acaso, a falta de matemática quando o assunto é amor, os opostos que não suportariam viver se um ou outro deixasse de existir, a sublimação dos preconceitos, o intelectual ranzinza apaixonado por uma ex miss tudo. No fundo o filme é um retrato do pensamento burguês (somos todos, nem pense em dizer que você não é, essa é a maior característica de todo burguês, negar sua condição), feito por um, para o consumo dos outros. Não acho que “não burgueses” conseguiriam achar graça no filme. Por isso considero o filme um pouco menos universal do que outros “A rosa púrpura do Cairo”, “Zelig” ou até “Match Point”, não menor, mas mais restritos a um mundinho. Vale assisti-lo, mais do mesmo do Woody Allen é melhor do que a maioria de filmes que está em cartaz no momento.

Frase para reflexão:
“Não se pode tomar um caminho antes que a gente mesmo se torne o caminho”
Atribuída ao Buda (nunca se sabe), mas de qualquer forma eu gostei e vou me esforçar.

12.5.10

ID-OS-SINCRAZIAS

Até algumas semanas atrás era difícil me lembrar dos meus sonhos. Normalmente demoro muito para pegar no sono, e depois de algumas horas bem dormidas costumo acordar sem razão no meio da noite e preciso de mais um bocado de tempo para voltar a dormir. Lembrar o que estava sonhando ou se sonhava enquanto dormia até então dificilmente acontecia. Porém, de uns tempos para cá os sonhos resolveram se rebelar/revelar e permitir que eu me lembre deles logo depois de acordar e os mantenha na memória por todo o dia. Lembro-me que não faz muito tempo comentei com uma amiga que eu achava estranho o fato de não sonhar ou não me lembrar dos meus sonhos. Não imaginava que histórias tão estranhas pudessem habitar meu subconsciente. Cavalos ferozes empinando em estradas de terra e tentando me alcançar por onde eu costumava passear no meu sejour austríaco, velórios dentro de cemitérios onde a sensação térmica era de mais de quarenta graus, hipopótamos e crianças querendo me dizer alguma coisa, gente que eu nunca vi conversando sobre coisas que só eu sei, meus sonhos se revelam com uma roupagem oriunda do mundo fantástico, mundo esse que quando estou acordado não costumo visitar. Agora quando acordo tenho o dia inteiro para tentar compreendê-los ou ao menos encontrar pistas das origens dessas imagens/histórias. Li que os sonhos são importantes para a nossa saúde mental, e espero que realmente sejam. Me sentiria frustrado se não representassem mais do que um mero bate bola entre os mundos inconsciente e consciente. De qualquer forma estou gostando de tê-los como companhia, e vou incluí-los no meu cotidiano apostando no jogo do bicho, quem sabe não queiram assumir papel importante também na saúde do me bolso. Ajudariam bastante como mensageiros da sorte.

10.5.10

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA...

Tenho duas irmãs e um irmão, uma única mãe, não tenho mais pai, nem avós. Em encontros como o de ontem, no almoço do dia das mães, noto como somos diferentes e iguais ao mesmo tempo, e como os amo e os estranho. Em 1988 me desgarrei, escolhi um caminho que me levou para longe. Fui morar em outro país, incorporei novas ideais, meu corpo se transformou, meus cabelos se mudaram para um endereço desconhecido, minha língua aprendeu a se comunicar em outras línguas, me abri, me feri, me fechei, me abri novamente e nunca mais me fechei. A distância continental, não nos afastou emocionalmente. Retornei ao país e nessa última década tive que readaptar minhas lentes focais para enxergá-los sem a película embaçada pela maresia do oceano que esteve entre os continentes. A língua voltou a falar a mesma língua com facilidade, mas eu estaria mentindo se dissesse que nunca mais encontrou dificuldades de comunicação. Imagino que eles também tiveram que trocar suas lentes e mexeram nas antenas para tentar me compreender. As imagens reveladas trouxeram boas surpresas e algumas decepções. Deixar o (des)conforto da adolescência é mais do que não ter que gastar rios de dinheiro com a pomada minancora. Rebelar e apontar o dedo em direção ao passado é mais fácil do que admitir limites ou fazer mea-culpa, e não dá verruga como quando a gente aponta o dedo para alguma estrela no céu. Muita coisa aconteceu nos últimos vinte e dois anos. Minha mãe participou de todos os acontecimentos ao lado de cada um dos quatro filhos. Íntegra, incondicional. Casamos e descasamos, enviuvamos, ficamos órfãos, perdemos nosso pai, casamos de novo, ganhamos uma sobrinha, entramos no armário, saímos do armário, e querendo ou não todas as antenas tiveram que ser reinstaladas e redirecionadas. A vida não tem o câmbio de marcha à ré. A gente tem que manter os faróis acesos e olhar sempre para frente, tomar decisões, se posicionar, escolher caminhos. Só é permitido olhar para trás com uma condição: desamarrar as bolas de chumbo presas aos pés que fomos colecionando durante o tempo. Desamarrar também às que fomos prendendo nos pés dos outros, por egoísmo, medo, vaidade, orgulho (como desprezo esse sentimento!) ajuda a gente a seguir em frente com mais liberdade.

7.5.10

SEGREDOS

Hoje bateu um cansaço daqueles que eu não tinha vontade de fazer nada. Quando morava na Áustria as pessoas diziam que conforme o Outono vai se aproximando do Inverno o corpo sente com mais intensidade as transformações climáticas. Aqui no Brasil meu corpo se ressente quando uma frente fria se aproxima. Gosto de acreditar que as reações perceptíveis do meu corpo são vestígios de uma outra época. Fico feliz por ainda guardar dentro dos códigos secretos do meu dna um pouco dos conhecimentos dos meus antepassados . Tempo em que não precisávamos de satélites e outros aparelhos de medições para perceber que ia chover ou fazer sol. A tecnologia trouxe inúmeras vantagens, mas por outro lado perdemos muito da sabedoria adquirida pela observação.

Vi um documentário na televisão francesa que mostrava uma ilha na escócia onde se fabrica o whisky de maneira artesanal. Não me lembro agora do nome da ilha, mas é um lugar lindo, com uma estrada única de apenas 600 km que a circunda. Um sujeito resolveu abandonar Londres com mulher e filho e reativar uma velha fábrica produtora da bebida. Todos os ingredientes para a feitura do whisky são fornecidos pelas terras da ilha, exceto o levedo. As pessoas são muito parecidas nesses lugares, gente campestre e simples, às vezes com uma aparência rude, mas orgulhosas por morarem na ilha. O documentário mostrou também uma senhora que dava aulas da antiga língua dos celtas para as crianças salvaguardando as tradições locais. Por último mostraram um
antigo cemitério, todo coberto de mato, onde o sujeito que abandonou Londres para fazer whisky procurava informações sobre uma família de sobrenome Montgomery que no século 19 chegou à ilha não se sabe de onde, a família viveu lá por 70 anos e desapareceu. Ninguém da ilha sabe dizer de onde vieram e para onde foram, e o sujeito com a voz embargada disse que seu retorno a ilha fechava um ciclo. Segredos dos celtas. Ou muito whisky nas veias.

6.5.10

REGISTRO

Tentei rastrear desde quando perdi a vontade de me rebelar contra pessoas que tentam abusar do poder que suas profissões naturalmente lhes conferem, ou pessoas que só enxergam seus direitos e ignoram os dos outros. Essa rebeldia que eu até pouco tempo também naturalmente cultivava, e me fazia falar e discutir esperançoso de que dessa forma estaria no mínimo levando a pessoa a pensar a respeito de seu desrespeito, silenciosamente deu lugar a uma falta de vontade de revidar, contestar, dizer o que eu penso. Registro o abuso, percebo essas pessoas incharem ou abrirem os seus leques de pavão, e não sinto a menor vontade de me rebelar. Hoje tenho um sentimento muito mais de desesperança do que revolta. Não acredito mais no poder das palavras como antes acreditava. Por outro lado não acho que é resignação. Continuo não aceitando essas formas de abuso, mas não tenho mais ilusões. Na verdade acho que a medida que o tempo passa a gente inconscientemente se aproxima mais de pessoas que pensam como nós e menos das que nos agridem. Porque a gente se cansa dos embates, não quer mais perder tempo argumentando e aprendeu que as discussões desgastam mais do que agregam. Quer mais compreensão e menos desconforto emocional.

4.5.10

DICIONÁRIO PARTICULAR

Queria ter nascido com a sabedoria de um filósofo já bem velho e com muitas respostas satisfatórias para as milhares de perguntas que me perturbam. Nem todas buscam o mapa do sentido da vida. A maioria delas está relacionada mais com o cotidiano do que com a sua natureza. Quanto mais reflito, mais perguntas brotam. Devo ter uma estufa bem quentinha e úmida dentro do meu cérebro, ambiente ideal para a reprodução em massa para as minhas dino-questões.

Verfremdung. Estranhamento, distanciamento. É o título que Bertold Brecht deu a um dos seus livros. E também o que tenho tentado fazer no exercício do pensar sobre mim mesmo. Parto em busca de uma visão menos viciada, me distancio tentando me ver de outra forma, me estranho. Parcour. Percorrer caminhos onde não há sinalizações. Descobrir a língua daquele povo, tentar entender. Entender que nunca será possível entender o que me leva a partir. Distanciar-me. Estranhar-me. Não chegar a lugar nenhum. Distanciamento. Ir para fora. Ir para trás. Ir para frente. O tempo presente é uma ilusão. Nunca estamos no mesmo lugar apesar da sensação de estagnação. Distanciar-se, estranhar-se, percorrer, me faz lembrar em navegar é preciso, viver não é preciso. Penso nos mares, na imensidão do oceano, em aprender a nadar.

2.5.10

SIRI, COM PRAZER

Desci para o litoral na quinta feira e levei na bagagem dois livros. Um que trouxe de minha estadia em Paris, “Je m’en vais” de Jean Echenoz, escritor que me foi indicado por um vendedor da livraria chamada Tchann situada no Boulevard Montparnasse. Eu sei, o nome da livraria para nós brasileiros parece com nome de grupo bregation mas a livraria é boa e tem vendedores leitores, o que ajuda bastante quando você precisa de informações ou indicações. O outro livro que levei na bagagem foi “Desilusões de um americano” de Siri Hustvedt, escritora que a cada novo livro gosto mais e mais. O livro de Jean Echenoz ganhou o prêmio Goncourt em 1999 e é realmente bom, mas quem me fez companhia durante os últimos quatro dias foi a mulher do também escritor Paul Auster. Li todos os livros do Paul Auster lançados no Brasil, e nenhum deles conseguiu me emocionar tanto quanto “O que eu amava” ou “O encantamento de Lily Dahl”. Estou quase chegando ao fim do romance “Desilusões de um americano” e ele já pode ser incluído nesse rol de livros que me falam muito próximo e me emocionam. Raramente um livro consegue me fazer derramar lágrimas, mas os livros de Siri tem a chave dos meus quartos escuros. Descreve emoções sem ser piegas, e de um parágrafo a outro me faz derreter. Uma de suas características é contar muitas histórias paralelas. Você reconhece o protagonista, mas reconhece também a força de todos os outros personagens. Por exemplo, “Desilusões...” narra a vida de um sujeito que é psicanalista e sua irmã, mas no decorrer da história, Siri enxerta passagens ou referências aos pacientes do psicanalista, e um pouco sobre a vida do marido da irmã, também um pouco da vida da mãe dos dois, e do pai, e de uma desconhecida amiga do pai, e ainda da inquilina do psicanalista e de sua filha. Você vai me dizer “e daí?, muitos escritores fazem isso”. Eu sei, só que raramente conseguem fazer isso com tanta competência, principalmente porque todos os personagens se tornam interessantes, nenhum deles é secundário ou menos importante que o protagonista. Nos romances de Siri, há também muitas informações que servem como referência para sua história, então você lê com prazer e ainda aprende.

Dois dias cinzas e dois ensolarados. Cozinhei, li muito, dormi e tomei sol e banho de mar. Gosto de ir a praia nesses meses mais frios. Ficam vazias, é possível descansar sem ser incomodado por algum sujeito com seu carro caixa de som e a temperatura é das mais agradáveis. Uma amiga que não via há muito tempo veio almoçar comigo. Conversamos bastante e passamos a tarde juntos, sem pressa, sem hora para nada, conversa jogada fora, um prazer que eu às vezes esqueço e que está logo ao lado.

Abaixo uma foto lembrança da casa da praia, mesmo que estourada pela luz do sol, de um bastão de imperador, para começar a semana.