28.3.11

ACREDITE SE QUISER

Fui almoçar na casa de um casal de amigos no domingo. O dia amanheceu ensolarado e os dois moram em Neully um bairro residencial e nobre pouco afastado do centro de Paris. No cardápio churrasco. Oui. Você leu corretamente: churrasco. Basta o sol começar a aquecer as cabecinhas deles e eles já querem fazer tudo do lado de fora. Ele, um melange austro americano, ela uma berlinense daquelas legítimas, alta, magra, simpática, falante e com opinião. Moram na cobertura um duplex com terraço de 70 metros quadrados, jardim e bla bla. Um luxo numa cidade como Paris. No dia anterior me lembrei da primeira vez que fui a um churrasco na Áustria. O almoço terminou e eu fui diretamente a um restaurante porque o churrasco havia servido para abrir meu apetite. Temi que no almoço de ontem eu repetiria a experiência. Mas não, pelo contrário foi um almoço agradabilíssimo e farto graças a Deus, sem constrangimentos do tipo uma baguette para quatro. O que pode acontecer facilmente por essas bandas.

No final da tarde fui ao encontro de um amigo. Havíamos combinado de nos encontrar num Café e quando cheguei me assustei com sua aparência. Na conversa ele disse que se sentia muito deprimido, que não conseguia mais executar pequenos trabalhos como sempre fez, que não tinha mais vontade de manter sua casa limpa (escuto muitas vezes essa história, deve ser um traço típico dos deprimidos aqui), que estava se achando velho, sua vida sexual estava um horror e a lista de descontentamento consigo mesmo foi aumentando e aumentando. Percebi que ele precisava falar e o escutei atenta e pacientemente. Também tenho dias parecidos, compreendo. Não tem muito o que fazer a não ser escutar. Depois me ofereci para ajudá-lo no que precisasse, como, por exemplo, ajudá-lo a colocar sua casa em ordem. Como estávamos próximos de sua casa eu o acompanhei. Chegando lá ele me convidou para entrar. Queria mostrar uma pedra que havia comprado num antiquário em Brugge, Bélgica. O sujeito que vendeu a pedra ao meu amigo jurou com os dois pés juntos que ela é um pedaço de meteorito encontrada sei lá onde no século XIX. Bem. O que dizer? Ele quis saber minha opinião. Não entendo de pedras nem de meteoritos. Custou caro. Quando ele me disse o preço senti que teria que tomar cuidado com a minha opinião. Tudo bem, caro ou não caro nesse caso é subjetivo, o valor do objeto deve ser medido pelo interesse do comprador, por sua admiração e vontade de possui-lo. Eu já vi pedras parecidas antes e nunca dei valor algum a elas. Se encontrasse uma no meio da rua provavelmente chutaria para o lado. E não sei como perceber se ela é realmente um pedaço de meteorito ou um pedaço de uma rocha qualquer. Então percebi que sua depressão estava diretamente ligada a compra dessa pedra. Sei lá como. Na hora entendi que ele desconfiava da legitimidade do objeto. “Você já pagou o sujeito?” fiz a pergunta. “Sim, não posso mais devolvê-la.” Pois então agarre-se a idéia de que você agora tem um pedaço de meteorito e que essa pedra vai mudar a energia de sua casa. “Você acha mesmo que ela é capaz de fazer isso?” Lógico que acho!

Hoje acordei pensando nessa maldita pedra e no desgraçado que a vendeu ao meu amigo. Depois falei com os meus botões, mas por que não? Talvez ela realmente seja um pedaço de meteorito e se meu amigo acreditou que ela vai mudar a energia de sua casa, então ótimo, é isso o que importa. Liguei para ele agora pouco. Atendeu com a voz mais disposta que ontem. Contou que havia passado a manhã pondo a casa em ordem e que fez uma espécie de altar para o meteorito. Ai meu Deus!

25.3.11

LANG LANG E O BLOG DO KHALIL

Assisti pela primeira vez o pianista chinês Lang Lang. Foi na Salle Playel e ele executou o terceiro concerto para piano do Beethoven. Um sujeito talentoso, especialmente hábil, que toca piano com a mesma facilidade com que a gente toma banho ou respira, mas que tem um grave porém, que é constrangedor: faz muitas caras e bocas, se movimenta com o corpo e a cabeça constantemente enquanto toca, levanta o braço para o ar tipo Michel Jackson quando está se servindo apenas de uma mão para tocar, vira os olhinhos para cima e mexe a cabecinha como um boneco, um exagero, sem nenhuma finalidade. Não precisa de nada disso para convencer o público de sua total entrega e “relação” com a peça escolhida, um equívoco de estratégia, e o que é pior, com sua mis en scène estapafúrdia ele acaba distraindo os ouvidos do público e atraindo a atenção do mesmo para seu show. Foi acompanhado por Christoph Eschenbach e a Orchestra de Paris que decepcionou no primeiro e no último movimento, mas isso deve ter pouco importado aos fãs de Lang Lang que aplaudiram de pé e só faltaram urrar de êxtase quando o concerto acabou. Ele é bom, mas não é para tanto, tem gente menos escandalosa e mais técnica que ele, como por exemplo, Evgeny Kissin, Nelson Freire, Marta Argerich, Alfred Brendel que vi tocar em Viena, só para lembrar alguns. A partir do segundo movimento fechei os olhos. Não queria mais ver aquele sujeito que mais parecia ter problemas motores do que outra coisa. Deu dois bises, uma barcarola do Chopin e outra peça do Scriabin. Ouvi com atenção mas olhos fechados para não sentir tontura.

Para quem não sabe: existe vida inteligente lá fora, digo, na África do Norte, propriamente na Tunísia. Khalil Khalsi é o nome do rapaz e eu tenho o privilégio de ser amigo dele. Gente que fala o que pensa, que não tem medo de opinar, mas com a delicadeza típica dessa gente magrebiana. Khalil tem um blogue que é o http://khalilkhalsi.blogspot.com. Dê um pulo nesse território tunisiano (já inclui ele na lista dos blogs amigos logo ao lado), onde você vai ser apresentado a filmes e escritores que nunca ouviu falar e que tem muito para nos contar.

23.3.11

ABAJURES, GLOBALIZAÇÃO E CERVEJA BELGA

Hoje no meio do dia recebi a visita de um amigo. Ele chegou com dois vasos chineses antigos que havia comprado e queria que eu fosse com ele comprar peças para transformá-los em abajures. Sempre achei a relação vendedor/cliente nas lojas aqui meio estranha, mas dessa vez ela superou minhas expectativas. Entramos na loja e fomos atendidos por um senhor formalésimo depois de esperar uns quarenta minutos numa fila com meia dúzia de pessoas na nossa frente. Ninguém atravessa dizendo “só um minutinho, só quero saber onde fica, só vim perguntar uma coisa”. Não. O vendedor nem olha para a cara do sujeito que se aproxima dele com cara de “só um minutinho”. E isso é regra que vale para todo mundo em todas as lojas: enquanto o atendimento do cliente da vez não acabar ele não olha para os lados. Gosto disso. Do que não gosto começo a contar agora.
Depois de passarmos por essa fila fomos enviados a seção de cúpulas e apetrechos. A vendedora que nos atendeu estava sentada diante de uma tela de computador. Sem olhar para nós, ela disse:
“Vous désirez?”
Meu amigo francês que como todo parisiense é um pouco estressado, imediatamente respondeu que desejava falar com ela olhando para a nossa cara.
“Oui monsieur, como o senhor quiser, mas vai ter que esperar um pouco, antes vou acabar o que estou fazendo”.
“D’accord, mas não por muito tempo” meu amigo retrucou.
Eu que não tenho espírito para confrontações comecei a ficar constrangido. Não sou da turma do “deixa pra lá”, mas odeio essas saias justas Depois de alguns minutos a mulher veio e começou a nos mostrar as cúpulas. Fomos proibidos de tocá-las.
“Sou eu que as mostro a vocês, tudo aqui é muito delicado e pode sujar ou quebrar.”
Imaginei que meu amigo iria dizer “tudo, menos a senhora”, mas graças a Deus ele não respondeu. Tirou do bolso uma fita métrica e pediu para ela medir uma das cúpulas. A vendedora, nem tocou na fita, procurou a etiqueta onde estava escrita a medida e nos passou a informação.
“Não acredito! Parece muito maior!”, meu amigo disse a ela.
Nesse ponto eu compreendi que ele começaria um jogo daqueles que eu nunca consigo saber o que é sério e o que não é.
Oui mais... se o senhor acredita ou não, essa é a medida”.
“Pois eu gostaria que a senhora mesmo assim tirasse a medida para mim.”
“Não é necessário senhor, há uma etiqueta contendo as informações sobre a cúpula”
“Eu insisto”
“O senhor é teimoso.”
“E a senhora é o que? Me ajude a encontrar um adjetivo ou qualquer coisa parecida para a senhora.”
“Monsieur” ela disse pausadamente, “estou fazendo o meu trabalho”.
“Muito mal, Madame, e não tem idéia de como faz mal o seu trabalho. Mas a senhora pode me provar que estou enganando. Vamos recomeçar a nossa conversa do jeito que ela deveria ter sido desde o início: Bonjour Madame, gostaria de ver algumas cúpulas.”
A mulher pegou a fita métrica e mediu as cúpulas. Sua cara azeda foi adocicando e sua voz perdeu a agressividade. Dali em diante foram trocas de gentilezas entre meu amigo e ela e eu comecei a respirar aliviado. No final, por pouco os dois não trocaram beijinhos.
Essa história não é uma exceção. Observo os vendedores com muita freqüência e na maioria das vezes eles só pegam no tranco, isto é, depois de algum diálogo ríspido ou de você esbofeteá-los com palavras. O mesmo acontece com as caixas dos supermercados que ficam segurando as sacolinhas de plástico, quase que nos obrigando a implorar por uma, ou o vendedor de frutas que fica de olho para a gente não tocar nas frutas. Talvez esse meu lado brasileiro classe média mal acostumado com a subserviência da maioria dos empregados brasileiros seja a razão do estranhamento. De qualquer forma eu sinto falta da gentileza. Meu amigo francês diz que não.
“C’est normal. Voce tem que dizer como quer, o que quer e o que eles devem fazer por você.”
“Ai que preguiça” eu respondi.
“Bienvenu ça c’est aussi la France. Aqui a maioria das pessoas só aprende quais são os seus direitos, os deveres é você quem vai obrigá-los a compreender.”
“Ah não, isso não acontece só aqui, gente mal educada você encontra em qualquer lugar do mundo”
“Efeitos negativos da globalização”, ele respondeu.
Caminhamos alguns minutos em silêncio. Eu pensava na tal da globalização que aqui é chamada de mondialisation, e o que ela tinha a ver com a nossa conversa.
“Vamos tomar uma cerveja? Tem uma brasserie logo ao lado da Bastille que oferece uma variedade de cervejas belgas incríveis.”
"Vamos" respondi sem pestanejar.
"Efeitos positivos da globalização" ele sorriu.

21.3.11

AFFREUX!

Tive duas decepções nesse final de semana.

A primeira foi o filme dos irmãos Coen, “True Grit”, “Bravura Indômita” no Brasil, um título absurdamente besta que eu acho que o filme merece. Assisti e não vi nada de interessante. Um faroeste que não me diz nada. Um filme oco, sem graça, com interpretações caricatas, grandes planos, você sai do cinema com a sensação de ter perdido tempo. Não basta saber filmar, cinema não pode ser somente técnica, a gente tem que ouvir o coração do diretor bater. Não ouvi nada.

A segunda foi a ópera Luisa Miller do Verdi, encenada na Bastille. Considero essa uma das mais fracas óperas do compositor italiano, tem algumas árias bonitas e tal, mas é bobinha. Normalmente livreto de ópera já é recheado de diálogos idiotas, essa apesar de baseada no obra do Schiller, é um grande pastel de vento. Nessa montagem, o diretor e o cenógrafo foram tão simplistas e óbvios que conseguiram deixá-la ainda mais sem personalidade. Todas as cenas eram dirigidas para o meio do palco que ao fundo tinha uma grande pintura dos Alpes tiroleses. Então colocaram uma casinha no meio e obrigatoriamente os cantores iam para o centro e tudo se passava no meio do palco. O coitado do Marcelo Alvarez foi obrigado a se ajoelhar em todas as árias que cantou. Hoje li uma crítica no “Monde” em que o crítico disse que só faltou uma vaca daquelas malhadas da marca de chocolate Milk no cenário. Pois é. Se eu falar que pensei nisso ontem enquanto assistia a ópera, vocês vão achar que estou mentindo, mas foi o que comentei com meu amigo que não se conformava com o que era obrigado a ver e teve que controlar a vontade de rir durante toda a segunda metade da ópera. No final alguns buuus, a maioria gostou e aplaudiu e gritou bravo. A maioria vocês já sabem porque o Nelson Rodrigues nos avisou tempos atrás, quase sempre é burra. Adoro essas manifestações públicas de amor e ódio por parte do público. Aqui eles se controlam um pouco mais. Em Viena numa peça da Elfriede Jelineck, vi senhores e senhoras de aparência das mais angelicais gritando verdadeiros insultos.

17.3.11

CERCAS INVISÍVEIS

Alguém me disse que a vida dá voltas. Não me lembro mais em que contexto ou em que ponto de nossa conversa essa frase foi necessária para interromper um raciocínio e iniciar um outro mais positivo. Ouvi calado, mas não por muito tempo, ou melhor, ouvi calado, mas logo uma voz forte começou a dialogar comigo internamente. Dou voltas para tentar abraçar a vida. Algumas pessoas tricotam, minha mãe, por exemplo, faz botinhas de lã que agasalham os pés das pessoas que ela ama no inverno, outras constroem muros visíveis ou invisíveis em torno de si mesmas, o bicho da seda faz seu casulo, eu dou voltas em torno de mim mesmo. Vou me cercando, olhando para o meu interior, não quero perder nada e me perco dentro de mim mesmo.

Almocei com uma amiga austríaca de passagem por Paris. Ela deve estar hoje com mais de 85 anos. Nasceu no sul da Alemanha e se casou bem mocinha em 1944 com um austríaco veterinário e assim os dois foram parar em Wels, a cidade onde eu morei e os conheci há muitos anos. Assim ele escapou do front e ela ao contrário foi para o front. Explico: ontem pela primeira vez ela me contou o que foi o começo de sua vida nos primeiros anos de casada quando foi obrigada a morar com a sogra. Um verdadeiro conto de fadas, com todos os elementos que devem fazer parte de uma história onde a mocinha só consegue se libertar das atrocidades que é obrigada a viver depois da morte da bruxa. Seu marido alcoólatra, no meu tempo um ser ainda sociável, no final da vida assumiu o papel da bruxa e fez a vida dela virar um inferno. Ela jamais se posicionou como vítima. Ao contrário ri muito de si mesma e das situações que foi obrigada a experimentar. Não tiveram filhos. Nem bichos. Ela diz ter horror de ficar mais de duas semanas em casa. Viaja sem parar. Compra pacotes de viagem combinados, turismo de dia, ópera de noite. No final da tarde da rive gauche para a droite, fomos lentamente caminhando até o hotel onde ela está hospedada. Insisti para pegarmos um táxi, ela está andando com dificuldades depois de uma cirurgia no joelho e usa uma bengala como apoio. Não. Ela quis andar de braços dados comigo. Devagar. Assim posso aproveitar mais desse nosso encontro, ela disse. Na porta do hotel nos despedimos, hoje de manhã ela retorna para casa, por pouco tempo, no máximo em duas semanas uma outra viagem está programada, dessa vez mais para o sul, alguma cidade do norte da Itália. Um abraço bem demorado. Desses que a gente não sabe o momento certo de soltar. No caminho de casa comecei a me cercar, a olhar atentamente para dentro de mim. Em algum momento o sono me convidou a dormir. Acordei muito cedo. Tenho que devolver livros na biblioteca, terminar alguns textos que comecei a escrever. Prazos. A vida está do lado de fora.

14.3.11

AGUA NA BOCA

Hesitei por um tempo porque desconfei que não ia gostar pelo que havia visto nos trailers, mas ontem acabei indo ver Black Swann. Como esperava, uma bobagem, cheio de clichês, raciocínio dotipo causa e efeito, explicações simplistas sobre os traumas da “white swann”, menina cheia de complexos evidentemente justificados pela interferência maligna da mãe, falta de sexo, relação conflituosa com o diretor da companhia de balé, ai meu Deus, que preguiça desse tipo de filme, da metade até o fim ele foi me dando enjôo e se tornou mais e mais constrangedor, quando acabou senti um alívio do tipo sal de frutas, imediato, passou, não quero nem mais pensar no assunto.

Uma das entradinhas que mais gosto de comer por aqui é oeufs cocotte au foie gras. Normalmente eles são feitos assim: dentro de uma tigelinha ou forminhas pequenas são colocados dois ovos, um pouco de creme de leite, pedacinho de manteiga, alguns pedaços (eu sempre exagero) de foie gras, sal e pimenta. Tradicionalmente se faz em banho Maria ou direto no forno, mas dá para fazer muito bem no micro-ondas. Fica rapidamente pronto. Hoje tive duas aulas que foram de matar (os professores). Cheguei em casa tarde ,com fome e cansado. me joguei no sofá e liguei a tv para relaxar os neurônios. Havia um programa de culinária e eles estavam fazendo exatamente os oeufs cocotte que eu tanto gosto. Uma fome absurda se juntou a minha vontade de comer. Não pensei duas vezes, desci direto ao monoprix que tem logo do lado, comprei os ingredientes e preparei uma porção gigante para mim. Como é bom comer isso! Além de pão e um copo de vinho tinto não precisa de mais nada. Experimente.



O “Dissonantes” meu terceiro livro deve sair no final de abril. Quando a capa ficar pronta, coloco aí em primeira mão. Talvez consiga ir para o lançamento no Brasil. Estou estudando a possibilidade de um bate volta com o meu editor. Informarei assim que souber datas. Por enquanto é espalhar a notícia.

13.3.11

QUAM MINIMUM CRÉDULA POSTERO

Ontem no final do dia quando sai de casa para encontrar um casal de amigos, fui surpreendido por um mendigo que dormia exatamente na soleira da porta de entrada do prédio onde moro. Passar os pés sobre seu corpo foi a solução. Bonsoir Monsieur ele disse assim que eu coloquei o segundo pé do outro lado, já na calçada. Bonsoir respondi. Quando voltei já era tarde e ele continuava no mesmo lugar. Tinha headphones na cabeça e fumava um cigarrinho. Já está de volta? Respondi que já era tarde. Tarde para o que? Na hora não sabia como responder sua pergunta, fui surpreendido pela aparente intimidade, sorri e entrei. Pouco antes da segunda porta de vidro se fechar atrás de mim ouvi ele dizer nunca é tarde, nunca é tarde.

No café Beaubourg os garçons são bonitinhos e escolhidos a dedo. Pelo menos é essa a impressão que todos eles juntos nos dão. São simpáticos na maioria das vezes, mas um pouco cheios de ar, demoram para pegar os pedidos e fazem bicos e bocas quando sabem que você está a fim de pagar. Ficam parados a alguns metros da gente, sabem que você está olhando para eles e partem em retirada. Na última quinta feira marquei um encontro com um velho amigo que freqüentou esse café em sua época áurea. O garçon que nos atendeu foi um lolito jovem e cheio de confiança em si mesmo. Tudo bem. Pegou os pedidos e sentiu o olhar de desejo do meu velho amigo atravessando os tecidos de suas roupas. Voltou com um sorriso maroto e cheio de oui monsieur, non monsieur. Assisti ele se deixar assediar como o chapeuzinho vermelho pelo velho lobo mau, queria ver o final daquela história. Na hora de pagar ele repetiu o teatro de sempre. Viu que queríamos pagar e não veio, passou várias vezes por nós sem olhar para a nossa direção, foi, veio, desfilou entre as mesas, enfim nos irritou a ponto de levantarmos para pagar diretamente com a caixa. Au revoir monsieur, ele nos surpreendeu na saída. O lobo lhe comeu com os olhos. Putain! completou o lobo. De rien monsieur, ele respondeu com seu sorriso de lolito estampado na cara.

“Appassionata” a sonata n. 23 do Beethoven é minha trilha sonora imaginária. Porque não poderia ser diferente nesse momento. Os dias ficaram mais curtos depois do terremoto no Japão. Foi o que disseram alguns especialistas. Coisa mínima, milésimos de segundos que a gente nem consegue perceber. As placas tectônicas se ajustaram e a terra parece ter ficado um pouco menor e algo entre o eixo e ela é a justificativa para essa afirmação. Ouço a appassionata do Beethoven o tempo todo tocar na minha cabeça, independente da hora e do lugar onde estou. Alguém me sussurrou nos ouvidos que a vida é bela. Carpe Diem, Sergio, carpe diem! Eu disse que sim enquanto pensava em outra coisa. Quam minimum crédula postero. Tudo é passível de mudanças. Tudo.

11.3.11

AMPLIANDO A GEOGRAFIA

Os dois últimos dias foram de sol e temperaturas mais elevadas. O que fazer? Ficar dentro de um estúdio minúsculo estudando ou sair? Não foi difícil responder a essa pergunta. Ir para fora de île de france para conhecer mais castelos, boa comida, bom vinho e encontrar com uma porção de franceses menos estressados não é um convite, é uma obrigação. Fomos ao Chateau de Fontainebleau a pouco mais de 40 minutos da cidade, e em seguida a cereja da sobremesa foi visitar a capela que Jean Cocteau decorou com suas pinturas em Milly-la-forêt, a cidade onde ele morreu. Os desenhos no interior da capela emocionam pela simplicidade e pelo significado. Logo que você entra uma gravação explicativa começa a ser lida por Jean Marais que foi seu companheiro por quase toda a vida. Você se senta num banquinho e fica ouvindo ele falar das escolhas dos desenhos feitos por Cocteau. E a voz de Jean Marais vai entrando em seus ouvidos e ativando a sensibilidade para a simbologia das imagens. Tudo é delicado e sem exageros, como um ritual você se aproxima da obra de Cocteau para descobri-la inteligente e próxima dos habitantes do pequeno vilarejo.

A capela Saint-Blaise-des-Simples onde Cocteau está enterrado. Data do século XIII.


O altar.


Parede lateral


Assinatura do Cocteau e o gato que aqui representa a ressureição.



6.3.11

AI QUE PREGUIÇA

Na quinta feira quando Colette me ligou toda cheia de cuidados para me perguntar se eu a acompanharia na semi maratona de Paris eu não pensei duas vezes, disse sim, lógico que iria com ela. Ela precisava de alguém para ficar com seus pertences e queria um amigo por perto, um apoio moral. Colette é uma das minhas amigas de curso, jornalista profissional, no momento trabalhando como babá para uma família francesa para ganhar alguns trocados. Depois que desliguei pensei ai meu Deus por que disse sim? Vou ter que acordar às 7 horas da manhã num domingo e ficar nas redondezas do Chateau Vincennes fazendo hora até ela voltar da maratona, justo eu que só de pensar em fazer qualquer tipo de esporte sinto vontade de me deitar na rede mais próxima. Como tenho uma séria tendência a pensar compulsivamente sobre o mesmo tema quando não me sinto confortável em alguma situação, comecei a imaginar toda aquela gente saudável ao meu redor, falando sobre colesterol e proteínas, gel adstringente, tênis com amortecedor para o calcanhar, camisetas térmicas que sugam o suor e etc... Achei que ia pagar um grande mico só de estar entre essa gente cheia de energia. Na noite de sábado para domingo fui a um jantar e devo ter bebido uma garrafa e meia de vinho para me acalmar. Bom, acordei antes das sete e fui encontrá-la na saída da estação do metrô. Devia estar fazendo uns 3 graus no máximo quando chegamos ao local, mas o dia amanheceu com céu azul e sol e assim ficou até anoitecer.
Colette antes da corrida e com a sacola que deixou comigo

Alguns dos cheios de energia

Para quem não conhece, o Chateau de Vincennes é um palácio fortificado que começou a ser erguido na idade média, e tem um imenso parque ao seu redor. Pare de pensar no castelo de caras, nada a ver, esse é muuuuuito maior e muuuuuito mais chique, além disso não tem gente brega tomando café da manhã e tirando fotografia do lado da lareira. Quer dizer, gente brega tem sim, um monte, nos arredores ou visitando, mas se eles te encherem o saco você dá um empurrãozinho e eles somem nos fossos vazios que circundam a fortaleza.O Chateau

A lateral da capela feita para a ordem de São Miguel

Quando chegamos lá um mundo de fanáticos corredores já se preparava para correr. Colette estava ansiosa e teve que usar os banheiros biológicos algumas vezes. Eu estava tranqüilo e estupefato com o número de loucos já naquela hora da manhã. Com frio e já pensando no croissant que comeria e na xícara enorme de café que tomaria logo depois que os 30.000 freaks saíssem correndo. Ela foi atrás dos loucos. Eu fiquei. E foi agradabilíssimo o meu passeio. Tomei duas grandes xícaras de café, comi um croissant delicioso e ainda deu tempo de paquerar e ler dois jornais. Depois empurrei alguns cafonas nos fossos e entrei no palácio para conhecê-lo. O palácio já serviu para um pouco de tudo desde sua fundação, começou como pavilhão de caça, serviu de prisão para alguns famosos (nem se atreva a dizer que tem algo a ver com a ilha de caras, dá uma olhada na lista dos famosos), que lá ficaram presos, Henrique IV, Marquês de Sade, Diderot entre outros. Depois caminhei pelos arredores, e quando percebi às duas horas e meia que Colette avaliou que precisaria para fazer o percurso de 21 quilômetros já haviam passado. Me plantei no lugar combinado e a esperei. Vinte minutos depois ela chegou. Bochechas rosadas e feliz. Falou com pai, mãe, o namorado sul-americano que faz doutorado na Holanda e lentamente voltamos para casa. Cheguei exausto. Está pensando o que? Que dar apoio moral não cansa?

Colette e sua medalha, feliz

5.3.11

MÉLANGE


Sentada ao meu lado, na última aula de antropologia sobre espaço e globalização, uma garota linda de olhos e cabelos negros, rosto em formato de pingo de mel e lábios bem desenhados. Sorrimos um para o outro logo que me aproximei e comecei a me livrar de casaco, cachecol e casquete. Salut, ela me disse timidamente. A aula começou e fomos informados pela professora que naquela sala entre os pouco mais de 60 alunos estão representadas 26 nacionalidades diferentes e que poderíamos nos comunicar por meio de mais de 30 idiomas. Pergunte ao seu colega do lado de onde ele vem e quais são as línguas que ele fala. Eu imaginava que ela fosse espanhola com origens árabes, uma espécie de moura pós moderna e ela me imaginou italiano ou norte africano, confessou que não sabia muito bem onde me ordenar dentro de seu mapa geográfico mental. Ela é um misto quente, feito de mãe turca e pai tunisiano nascida na França, e eu sou brasileiro sem mistura nenhuma, 100% de sangue armênio. Ela me disse então que sua mãe turca tinha sangue armênio correndo nas veias, não sabia muito bem me explicar, mas o avô de sua mãe era armênio, casou-se com a avó turca em alguma região que um dia havia pertencido à Armênia e foi morto pelos turcos na mesma época em que meus avós foram obrigados a fugir de lá. Ufa. Respiramos fundo. Ela não conheceu a avó turca. Mas a mãe conta que ela nunca mais quis voltar para a sua cidade, falava o armênio com a filha quando não queria que seus netos entendessem o que estava falando. Ao contrário de meus avós que costumavam falar o turco quando não queriam que os filhos entendessem o que estavam falando. Constatamos surpresos a familiaridade dos hábitos. Gosto de olhar para os olhos dela quando conversamos. São negros e amendoados e tenho a impressão de que posso a qualquer momento penetrar em suas profundezas. Jasmim é seu nome.

Do oriente para o ocidente.
Fui ver a exposição de Cranach, pintor renascentista alemão pouco divulgado e conhecido que está acontecendo no Musée du Luxembourg. Cranach foi contemporâneo de Dürer e Jacopo de Bárbara, e algumas obras desses pintores também podem ser vistas na exposição. Pintor oficial da corte da Saxônia, apoiou a reforma protestante e foi íntimo de Lutero. As cores de suas telas me impressionaram, mas a falta de sintonia entre alguns títulos de suas obras e as imagens me surpreendeu. Por exemplo, na tela que ele intitulou “Melancolia”, o rosto da mulher é muito mais de indiferença do que de qualquer sentimento que pudesse traduzir a melancolia. Bem como a feiúra e a desproporção dos corpos. Os pés pintados por Cranach são esquisitos e as vezes deformados. Na mesma época na Itália ou na França, Botticelli, Da Vinci, Rafael e mesmo Michelangelo produziram obras de uma beleza estética inquestionável. As formas e a beleza dos corpos na obra desses artistas são relevantes. Cranach era muito mais um retratista. Seu auto-retrato é uma beleza. Seus nus envoltos por véus transparentes são delicados mesmo que seja preciso admitir uma certa ausência de movimentos. Já o “Martírio de Santa Catarina” é uma explosão de cores. É isso. Uma bela exposição. Reserve antes se quiser ver, porque a fila é um desestímulo.

Essa semana fiz uma visita guiada na biblioteca Sainte Geneviève. Uso freqüentemente a biblioteca para fazer pesquisas, mas não conhecia suas entranhas e nem as obras raras que fazem parte do seu patrimônio. Mas como a visita fazia parte do curso da Sorbonne tivemos acesso a alguns desses livros, como por exemplo, a primeira edição das fábulas de La Fontaine. Para quem gosta de livros uma visão de valor inestimável. Abaixo duas fotos. Não se esqueçam, são fotos tiradas pela câmara do meu celular.