24.9.10

DÉSOLÉ


Normalmente depois de ouvir alguém pedir desculpas, por mais grave que tenha sido a razão que originou o pedido de desculpas, o mais provável é que a gente desarme, baixe as armas, abandone a vontade de reagir e retome ao caminho da razão e da razoabilidade. Uma das observações que venho fazendo aqui em Paris como antropólogo vira latas, é que o pedido de desculpas só funciona quando ele “vem de dentro”, isto é, quando ele for feito com sinceridade, caso contrário, melhor não dizer nada. Aqui o excuse moi e o désolé são muito mal empregados e muitas vezes usados como disfarce para um cinismo que beira ao sadismo. Eles são usados para qualquer coisa, e como além de antropólogo vira latas sou também analista psico-social na horas vagas, estou quase querendo afirmar que esse mal uso talvez demonstre inconscientemente um pouco do caráter das pessoas. No Brasil, nas ruas, nos estabelecimentos comerciais, dentro dos vagões do metrô não é comum alguém se desculpar por ter esbarrado em você ou simplesmente porque não tem o produto que você queria comprar. O sujeito entra carregado de sacolas pisa no teu pé e das duas uma; ou ele reclama com você por que você ocupava o lugar onde ele queria colocar o pé dele, ou te ignora, não fala nada. Aqui em Paris, o que me chama a atenção é o costume de se pedir desculpas por qualquer coisa de uma maneira tão automatizada que desconfio que o excuse moi e o désolé perderam seus propósitos originais e passaram a servir também como uma forma de mascarar um tipo de prazer sádico. Exemplo disso é o que acontece no metrô diariamente. O vagão chega lotado na plataforma, duas ou três pessoas dessem e mais de vinte estão esperando para entrar. Qualquer ser humano normal esperaria o próximo metrô, mas como todo mundo está com pressa ou por alguma outra razão que ainda não consegui entender, todos querem entrar e avançam para dentro do vagão empurrando e esmagando os que já estavam dentro. A cada empurrão ou esmagamento ouvi-se um pedido de desculpas. Aperta-se daqui e dali, e a campainha já tocou avisando que as portas vão se fechar e que o trem vai partir e as pessoas que estão de fora continuam empurrando as de dentro e repetindo excuse moi para cá e désolé para lá. Eu me pergunto se realmente o sujeito estaria tão désolé. Porque ele sabia que deveria ter ficado do lado de fora esperando o outro trem chegar. Outro exemplo é a enorme quantidade de vendedores mal humorados que depois de atenderem o cliente com cara de quem acaba de chupar um limão, no finalzinho do diálogo soltam um “désolé” com um prazer in-des-cri-tí-vel. Na verdade o désolé deles é muito mais um “ caia fora, não me encha o saco, não percebeu que eu não estou a fim de te atender?” do que um pedido de desculpas.

Por sugestão do meu orientador li um livro chamado “Paranóia Global” do escritor Éric Sadin. Livro composto de pequenos textos que foram escritos com a mesmo formato das escrituras usadas para descrever tecnologias de vigilância. O resultado são textos frios, que não provocam nenhum tipo de emoção. Depois de ler o livro, percebi que nada ficou retido na minha memória. No final há um texto explicativo interessante sobre a ausência de vírgulas, opção feita pelo autor do livro para melhor demonstrar como a forma de escrever textos de sms, e-mails, twitters e afins estão alterando a forma narrativa ao desprezarem as convenções linguísticas implantadas há alguns séculos. A vírgula como instrumento usado para dar sentido e ritmo a um texto/pensamento está condenada a desaparecer para sempre de nossas vidas. Até mesmo o ponto, que determina o fim de uma frase corre o risco de entrar na lista das formas de linguagem e narrativa em extinção por causa da maneira abreviada que os utilitários desses meios passaram a fazer dele.

Estamos nos transformando em corpos de bases de dados. Acumuladores e distribuidores de informações que não se submetem a nenhum tipo de reflexão profunda sobre essa mesma base de dados.

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