29.7.09

...MAS QUE EXISTEM, EXISTEM.

Hoje de manhã tive que me esconder da chuva quando voltava para casa. Entrei rápido numa livraria e quando começava a chacoalhar meu paletó, uma moradora de rua com problemas mentais, habitué dos arredores da Praça da Sé, passou por mim aos berros, com a mão no ouvido como se portasse um celular, gesticulando e gritando com alguém que ela imaginava estar discutindo. Não me assustei porque já a conheço há muito tempo, mas uma moça entrou rapidamente dentro da livraria para se esconder. Em seguida olhou para mim e disse: “coitada, tem o demônio dentro do corpo”. Eu respondi que não achava que era o demônio, mas sim loucura. A moça me olhou desconfiada e me perguntou qual a diferença. Eu disse que achava que se fosse o demônio a coisa era cíclica, durava um tempo e depois passava, uma hora ele se cansaria daquela senhora e procuraria outros corpos para possuir, mas aquela moradora de rua está desse jeito há pelo menos cinco ou seis anos, então só poderia ser loucura mesmo. Ela me olhou com um sorrisinho na cara e falou: “você que pensa, o demônio tem o poder de se dividir e possuir vários corpos ao mesmo tempo, está cheio de gente possuída por aí, é que ele sabe disfarçar muito bem e pouca gente consegue reconhecê-lo.” Bom. Não preciso dizer que segundos depois eu preferi ficar ensopado a continuar aquela conversa. Já dentro do conforto do meu lar, cheguei às seguintes conclusões: primeiro; para aquela pobre mulher não faz muita diferença se sou eu ou a mocinha quem tem razão, louca ou endemoninhada da na mesma, são apenas pontos de vistas diferentes de duas pessoas que se consideram sãs. Segundo; que eu tenho muito mais medo da mocinha do que da pobre mulher.

27.7.09

RODA MOINHO

Quase todos os dias escuto pessoas falarem “no meu tempo as coisas eram diferentes”. Quando morei na Áustria, ouvia essa frase sistematicamente. Eles têm o vício de comparar o passado supostamente glorioso com o presente enxuto do país que um dia teve a pompa da monarquia habsburguense. O número de gente mais velha lá é percentualmente bem maior do que no Brasil. Pelo menos era assim há dez anos. Na época pensava “que saco ter que ouvir essa gente fazer comparações entre épocas o tempo inteiro!”. Agora ouço as pessoas repetirem a mesma frase em todos os lugares, dentro dos vagões do metrô, nas esquinas, nas filas dos cinemas. A vida dos homens realmente mudou, mas o que mudou? As pessoas têm a tendência de depreciar o presente e enaltecer o passado, talvez uma forma de não ter que enfrentar os desafios cotidianos. Na vida real lembranças em preto e branco se transformam rapidamente em cartão postal colorido, e a percepção do presente é quase sempre cinza. Pergunto de novo, o que mudou? O homem basicamente continua o mesmo, acho que deve dar para fazer comparações através do estudo de sua história. Fome, guerras, migração de povos, genocídios continuam acontecendo até hoje.

O que mudou foi todo o aparato tecnológico desenvolvido pela inteligência do homem, mas se tirarmos a tecnologia, o desenvolvimento científico, o homem continua o mesmo. O mesmo ser que se agrupava para brigar por um pedaço de terra continua fazendo guerras por territórios, o mesmo ser que era capaz de matar seu semelhante para ficar com um pedaço de carne maior que a de seu vizinho, mata hoje para ter o controle das fontes energéticas, e se espiarmos um pouquinho a vida privada de cada um, vai ser mais fácil ainda fazer comparações. Basta olhar para dentro da vida das famílias. Brigas por pequenezas, egoísmo, ciúme, rancor, assassinatos por amor, dinheiro, poder, independente da condição econômica e social do indivíduo.

O ser humano não mudou, agregou valores (duas palavras bem atuais) tecnológicos. Conseguiu encurtar o tempo das viagens, das correspondências, a comunicação acontece ao vivo, a imagem, a voz, tudo é simultâneo e real. Pusemos os pés na lua, em marte, mas continuamos primitivos na psique, e nos locomovemos com as quatro patas no chão quando o assunto é sentimento ou relacionamentos inter pessoais. É aí que pega e muita gente não quer, ou não tem condição de sentir e ver. Mudou a paisagem, mudou a geografia, a fisionomia, a biologia, e o homem é o agente de todas essas mudanças, mas apesar de todo desenvolvimento provocado por ele mesmo, não conseguiu (pelo menos até agora) fazer uso de sua inteligência para resolver seus instintos mais primitivos.

24.7.09

VALORES

Nos últimos dias estive pensando sobre a possibilidade de valorar atitudes ou coisas que na verdade não são objetos, mas sim manifestações de sentimentos, escolhas, posturas de vida. Quanto vale uma decisão? Ou, qual o preço de uma consciência limpa? Ou ainda, quanto custa dormir e acordar sem ter que imediatamente negociar seu humor com o resto do dia? O que não conseguimos estimar em valores, normalmente é intrínseco, inseparável, inalienável. Está dentro da gente, faz parte do ser como se fosse um membro do nosso próprio corpo.

Falando em corpo. Novas histórias começam a criar forma dentro da minha cabeça. Ainda não tenho vontade de transformá-las em texto. Mas estou dando fermento a elas. Resolvi esperar até que elas decidam me ameaçar, escapar ou se refugiar dentro dos porões escuros do meu cérebro. Falta de tempo por excesso de trabalho e preguiça, não são bons ingredientes.

22.7.09

OLHO MÁGICO

Dar sentido a vida. Quando por algum motivo meu piloto automático se desliga (não sei como ele se desliga, talvez esteja programado para se desligar automaticamente quando percebe uma über sensibilidade), tenho a sensação de que perco um pouco a capacidade de distinguir coisas/cores/indivíduos. Ou talvez ele precise de reparos. Pausa para limpeza, manutenção e novas camadas de graxa para voltar a comandar vontades e certezas. Minha engrenagem interior (mal acostumada com a comodidade do piloto automático) precisa de um bom tempo para reagir. O trabalho de convencimento é quase um trabalho braçal. Antigas perguntas voltam a superfície. Transformar o que em que? Para que? Por que? Quem? Inevitavelmente vou bater a porta da casa da velha e boa fé. Nesses momentos ela nunca está. Bato de novo só para ter certeza. Desconfio que ela me observe através do olho mágico. Sinto um pouco de vergonha e culpa. Não deveria estar aqui, duvidar. Deve estar zangada. Não quer abrir a porta. Não vou insistir. Queria apenas tomar um café e conversar um pouco. Recuperar algumas certezas. Eu a compreendo. Sou um sujeito chato, cheio de incertezas e perguntas. Por outro lado conheço o mecanismo. Já posso afirmar que tenho vivência. Pego carona no tempo. Espero. Sentido não é direção, mas acumulo de informação e experiência.

21.7.09

REFORMAS

Desde o ano passado vinha pensando em aumentar o tamanho da minha estante de livros. Quando tinha um pouco de dinheiro, não tinha tempo, quando tinha tempo, já tinha gastado o dinheiro. Agora tudo conspirou para fazer a reforma da estante, tempo e dinheiro resolveram entrar em acordo. Na semana passada o marceneiro veio retirar a estante, e exatamente no mesmo momento em que a retirou, eu descobri que tinha que pintar as paredes da sala. Daí para perceber que já que estou pintando as paredes da sala poderia pintar as da cozinha, durou apenas um piscar de olhos. Falando em olhos, assim que entrei no quarto, eles me chamaram a atenção para o branco desgastado das paredes. Agora todo o apartamento está pronto para ser pintado, móveis foram arrastados, quadros foram retirados, o caos se instalou dentro da minha casa e da minha cabeça. O único lugar que ficou intacto é o meu escritório. Sei que em duas ou três semanas tudo voltará a normalidade, mas até lá... . Pensei até em dormir, acordar e fazer as refeições dentro do escritório, uma espécie de território neutro ou quartel de resistência. Não suporto conviver com a desordem do resto do apartamento. Já pensei em sair e voltar somente quando tudo estiver pronto, bater na porta do vizinho e pedir para passar o dia com ele, mas ter que dividir o espaço com seus três cachorrinhos miniaturas lambe lambe vestidos com agasalhinhos de tricô me desestimularam. Agora estou aqui, torcendo para que o tempo e as semanas passem rápido, dizendo a mim mesmo que nunca mais vou ter nenhuma iniciativa que tenha a ver com mexer com a ordem estabelecida das coisas. Sei que vou gostar do resultado final, ter mais espaço para meus livros e tudo e tal, mas acho que vou fazer como essas pessoas que passaram por regimes de emagrecimento e grudam fotografias de quando gordas na porta da geladeira para desestimular a vontade de comer guloseimas. Vou fotografar a desordem para manter a coisa sob controle.

19.7.09

CASAMENTOS

Não tenho problemas com dias cinzas. Nem com dias frios. E quando esses dias são preenchidos pelo prazer da descoberta de um bom livro, pode até chover, para mim tanto faz, sol e chuva, casamento de viúva, chuva e sol casamento de espanhol, não é o tempo quem dita meus humores, muito menos os casamentos. Nunca tinha ouvido falar do escritor norte americano Raymond Carver até ler uma matéria sobre ele e seus contos no jornal. Comprei o livro faz umas duas semanas, queria ter começado a leitura dele antes, mas tinha outros dois que já estavam na metade. Ontem no final da tarde comecei a ler “Iniciantes”, um livro de contos surpreendentemente bom, cheio de ritmo e histórias diversas e não parei mais. Você reconhece um bom contista por sua capacidade de síntese para contar histórias sem perder a intensidade das emoções, dentro de um texto enxuto e ao mesmo tempo rico. Nesse livro desde o primeiro conto, a gente sente a tensão emocional dos personagens criados por Carver. E ele usa muito bem esse poder de manter o leitor em suspense, mesmo quando nos dá dicas já no começo da história que está contando. O livro traz a versão original e integral dos contos que já foram editados e depois publicados em 1981 sob o titulo “Do que estamos falando quando falamos de amor”. Não conheço a edição anterior, e não consigo imaginar como ficaram depois dos cortes e edições do editor, gosto deles como estão. Prefiro o título dado pelo antigo editor ao atual. Então não reclame do frio, vá até uma livraria comprar um livro, não precisa ser necessariamente esse, compre qualquer um de sua preferência, faça um café e boa leitura.

17.7.09

OBSERVAÇÕES

Tenho um cocar emoldurado na minha sala de televisão. Comprei em Brasília quando morei por alguns meses lá e ainda era estudante. Não me lembro do nome da tribo, mas comprei numa loja da FUNAI. Algumas pessoas quando o vêem, logo elogiam a beleza e perguntam se pertenceu a algum destaque de escola de samba. Outras reconhecem como uma obra de arte feita por alguma tribo e querem saber de onde é e coisa e tal. Reparo que esses tipos são bens distintos. Os que ligam o cocar com escola de samba são mais rasos e tiram conclusões rápidas, não param para pensar no perfil do dono da casa, e os que identificam o cocar como um autêntico cocar, são mais observadores, mais atentos, mergulham por águas mais profundas. São apenas observações. Gosto da especulação pela observação. Outra coisa que pensei outro dia foi sobre alguns compositores. Sou um amante da música clássica. Outro dia ouvindo o segundo concerto para piano do Brahms tive o seguinte pensamento: Brahms deve ter sido muito generoso. Porque sua música é espaçosa, larga, se derrama como líquido, vibra livre dentro das nossas cabeças. Já Schönberg deve ter tido uma mente mais complicada, cheia de contradições, ele não chega a lugar nenhum, não entra fácil nos ouvidos, é cheia de ângulos. Tenho também mania de observar os lábios das pessoas. As que têm lábios superiores que a gente quase não vê, imagino que são mais travadas, mesquinhas, e quando têm mãos com dedos curtos e pontudos, são de uma pequeneza irremediável. E tem também o jeito das pessoas andarem. Ou o jeito de rir. A forma como seguram um objeto. Poderia fazer uma lista de A a Z. Um montão de observações que faço sem me forçar. As conclusões pessoais vão acontecendo sem que eu queira. Então me lembrei que quando ainda estava na universidade, pensei que deveriam inventar a profissão de observador. Na verdade tenho um prazer enorme em observar. Não fazer nada a não ser olhar para as pessoas ou objetos sem obrigação de ter que pensar em nada. Mas um observador profissional teria que necessariamente chegar a conclusões. Seria remunerado, teria sindicato, e todas essas conquistas de classe, que se por um lado nos protegem, por outro nos enquadram. E com a perda da liberdade, perderia toda a graça.

15.7.09

TUPPERWARE

Fui a Curitiba para a derradeira despedida de um querido amigo de muitos anos. Consegui quase na última hora um lugar no vôo da manhã. Durante a viagem foi inevitável relembrar da época em que nos conhecemos, quase trinta anos de amizade. Um exercício de puxar da memória histórias que eu já nem mais me lembrava. Ao chegar em Curitiba reencontrei outros amigos que não via há bastante tempo. Durante o velório resolvemos sair para comer alguma coisa juntos. Impossível não fazer comentários sobre passagens da vida do amigo que partiu para outra, as contradições que existem numa mesma pessoa, o lado bom, o lado ruim, as excentricidades combinadas com atos de generosidade. Não sei se acontece dessa forma com todo mundo, mas quanto mais eu vivo, mais acredito na realidade fictícia registrada dentro da minha cabeça, um real arquivo de memórias inventadas. Porque não existe uma só realidade, mas várias. Cada um de nós armazena de forma ficcional a imagem que lê daqueles que conhecemos. Uma mistura do que o outro realmente é e o que a gente conseguiu ler e quis entender. Papo psico esse, mas é o que está ocupando meus pensamentos.

Retornei a noite, e cada vez mais constato meu medo de viajar de avião. Odeio ficar dentro dessas cápsulas voadoras computadorizadas. Sei que é rápido e mais seguro que outros meios de transportes, mas vou rezando e volto implorando para a coisa não cair. Durante meu martírio penso: e se um fiozinho que liga uma coisa a outra queimar e o sistema falhar? E se...

Sinal dos tempos é a sopinha de tomate que nos ofereceram a bordo. A sopinha é mantida numa garrafa térmica e servida em potinhos de papel. Nojo daquele líquido amarelado. Agradeci, mas não aceitei. Prefiro me alimentar das minhas velhas imagens. Até sabor elas têm. E não vêem servidas para serem tomadas com colherzinhas de plástico. Não sei de onde essa gente tira essas idéias práticas e sem graça. Teria preferido um saquinho de amendoim a tomar aquela sopa.

10.7.09

É TUDO ARTE, OU É POR KILO?

Não conheço profundamente a história de Gregoire Bouillier e Sophie Calle e acho que eles podem fazer o que quiserem com a vida deles, porém me sentiria profundamente desconfortável no lugar de qualquer um dos dois. Sou avesso a exposições públicas desnecessárias do que possa somente interessar a mim mesmo ou pessoas com quem me relaciono. Talvez seja apenas mais um truque de autopromoção, o que não duvido, em tempos como o que estamos vivendo, no qual a exposição da vida intima passou a ser um impulso para se fazer rapidamente conhecido e conseqüentemente vender mais. Mesmo assim. Transformar experiências pessoais em produção artística é verdadeiramente o significado da arte, mas acho bastante doentio essa lavação de roupa. Na verdade acho muito pouco para se considerar algo de interesse público. Porque não há um trabalho de elaboração pessoal feito pelos próprios envolvidos, mas sim a mera exposição dos fatos. Não vou entrar no mérito e discutir se o sujeito deve ou não deve acabar uma relação por e-mail, por carta ou pessoalmente. Estou falando de outra coisa. Falo da cultura da auto exposição, e do equívoco que ela vem provocando no jeito de pensar das mentes contemporâneas. Enquanto escrevo tenho a impressão de que sou um bicho pré histórico, já que ao contrário de muita gente, continuo entendendo que arte é decorrência de trabalho e elaboração feita pelo próprio artista, e nesse caso acho que se houve elaboração (acho difícil de acreditar pelas declarações dadas em suas entrevistas), ela vem de fora e da forma mais primitiva que existe. Eu distribuo minhas cartas para cento e tantas mulheres (por que os homens não foram incluídos?) lerem e dizerem o que pensam do fora que levei do meu amante, filmo tudo, monto uma exposição e corro o mundo com ela. Me distancio de um sentimento pessoal e o transformo em uma obra de arte. Mais do que isso, quero que todo mundo opine sobre ela. Sophie disse numa entrevista que aquilo não tem nada a ver com seus sentimentos, mas sim com imagens. Eu já acho que tem muito de senso de oportunismo nisso. Esta bem, vou me esforçar para acreditar nela. Bem, se ela própria conseguir se ver nas imagens, a exposição já valeu para alguma coisa. E se depois de se ver ainda consiga, mesmo que distanciada, sentir alguma coisa, então melhor ainda, para ela.

9.7.09

CINE PRIVÊ

Sorte minha ter comprado o livro de contos “Cine Privê” de Antonio Carlos Viana horas antes de ir para o analista. Não conhecia o autor e não sabia que teria que esperar quase duas horas até chegar minha vez de ser atendido. Li quase o livro inteirinho naquelas duas horas, com um prazer e curiosidade que somente bons autores conseguem despertar no leitor. Quase não percebi o tempo de espera. Sua escrita é concisa sem que esta concisão tenha qualquer relação com pressa. Concisa no sentido do modo como conta suas histórias. Diz tudo o que quer dizer sem meias palavras, vai direto ao assunto, sem rodeios. As histórias, mesmo as mais violentas, são muito bem elaboradas, misturam o passado dos personagens com a atualidade. Fui fisgado do primeiro ao último conto. Tive que me livrar dos personagens excêntricos para voltar a ser eu mesmo diante do analista. São essas boas surpresas que me incentivam a ler cada vez mais. E a continuar a escrever. Não sei porque ainda não criaram decalques como esses que a gente está acostumado a ver grudados nos vidros dos carros, do tipo “Jesus é a Salvação”, com a frase “Literatura é a salvação”. Tudo bem, pode não ser a salvação de todos os males, mas que minimiza a ansiedade e maximiza os horizontes ninguém pode duvidar.

6.7.09

CENÁRIOS

Caminhar pelo centro de São Paulo é como caminhar dentro de uma enorme lata de lixo. Nas ruas, além da sujeira, camelôs, barraca de milho ou até carros que espremem suco de laranja na hora, muita gente miserável e doente mendigando ou dormindo nas calçadas. Bem no início da Rua Sete de Abril hoje a tarde havia pelo menos quinze pessoas dormindo na calçada em frente a uma loja que tinha as portas fechadas. Depois ao redor da boca do buraco do metrô, mais umas dez dormindo sobre as grades. Triste, triste, triste. E quando já pensava em me jogar do Viaduto do Chá, eis que vejo uma quaresmeira toda florida, sem nenhuma folha, apenas os galhos carregados de flores rosa choque sob o viaduto, do lado direito de quem olha sentido zona norte. Um colírio para olhos cansados de ver miséria e sujeira.

Vamos para a arte que é mais fácil de digerir, fica restrita ao campo do pensamento e da reflexão e a gente faz de conta acreditar que porque é ficção, não tem nada a ver com a realidade. Fui assistir o filme “Horas de Verão” no sábado a tarde. Sala cheia, até a última poltrona todos os lugares ocupados. O filme é bom, me deixou bastante aflito, diálogos rápidos, interrompidos, tema delicado, herança, passado, o que fazer com ele no presente nosso de cada dia. Silêncio total na sala. Todos os presentes prestando muita atenção. O filme não conclui nada, não tem a intenção de ser didático, mas de expor algo que afeta toda humanidade: transição da herança cultural, o que podemos ou devemos fazer. Preservar? Enclausurar em museus? Apagar de nossas vidas fugindo para o oposto de tudo o que foi construído por nossos antepassados? Falo por mim, apenas por mim, e não gosto do rumo que estamos nos levando. Não haverá graça. A formalidade é necessária, sem tradição e continuidade não há registros. E é isso que já se vê. No final do filme, o casal de jovens, formado pela neta da velha senhora morta que um dia foi detentora de todo aquele patrimônio, pula um muro porque não quer ser visto, passam para o outro lado do terreno, onde não há nada além do mato alto. No nosso caso é lixo sobre lixo, gente miserável e louca pelas ruas. Prestem atenção no número cada vez maior de sem teto e morador de rua espalhados pelas ruas da cidade.

4.7.09

SILÊNCIO EM LUGAR DE PALAVRAS

Um dos personagens do filme “Há tanto tempo que te amo”, o avô, pai do marido da irmã que acolhe Juliette após sua saída da prisão, teve AVC, não consegue mais falar, mas, exceto pela impossibilidade da fala, está inteiramente saudável. Passa o dia lendo em seu quarto. É para lá que Juliette se refugia de vez em quando para desabafar. O velho ouve tudo, às vezes nem levanta a cabeça do livro que está lendo. Um personagem que aparentemente não tem muita importância, mas que é essencial na construção do filme e na reconstrução da vida de Juliette. O silêncio como um dos remédios para a cura. Demorou um bocado para eu entrar no filme, isto é, me sentir parte dele, mas a partir da metade eu fui fisgado e a emoção tomou conta das minhas indagações racionais. Grande parte do segredo do sucesso do bem realizado filme do Philippe Claudel está no silêncio. Silêncio que há dentro do rosto frio de Kristin Thomas, silêncio que há entre as duas irmãs, silêncio mesmo que forçado pela desconfiança do cunhado, silêncio na aproximação dos homens que a cercam. O filme é construído sobre essas bases. Os personagens falam sob medida. O excesso de explicações o deixaria óbvio e cansativo, como muitas vezes muitos diretores franceses fazem seus filmes. Além disso, uma combinação de bons atores, excelente roteiro, fotografia e música simples contribuem para a qualidade do filme. Recomendo. Se você tiver sorte, não terá como companhia duas mulheres tagarelas que sentaram duas fileiras atrás da minha e só pararam de comentar quando outra, logo atrás de mim, pediu para elas pararem de falar durante o filme. E se tiver mais sorte ainda, não terá como vizinho de fileira um rapaz que atendeu o celular duas vezes durante o filme, apenas para dizer para quem havia ligado que ele estava dentro de uma sala de cinema.

3.7.09

GASPARZINHO

Não sei se é cíclico, acontece de tempos em tempos. De vez em quando fico esquisito mesmo. Não sei bem como sou levado para dentro dos acontecimentos e sem refletir me envolvo com todos eles ao mesmo tempo. Não tem seqüência, vou fazendo, vou falando, fazendo e falando, aparentemente organizo os pensamentos, depois paro de falar e sem perceber não sou mais eu quem fala ou faz. Uma entidade, independente e convincente assume o meu lugar. No final desses dias me sinto esgotado. Como se tivessem apagado uma luz dentro de mim. Aí me recolho, fico sozinho dentro do escurinho de mim mesmo tentando achar o interruptor para acender a luz novamente. Queria poder me ver. De fora para dentro, direcionar a luz de um holofote e vasculhar tudo. Mas e se o que eu encontrar for exatamente a mesma pessoa que penso que sou quando estou dentro de mim mesmo? Pensei até em instalar vários interruptores e várias lâmpadas nas paredes desse lugar. Mas é que quando estou dentro, não tenho vontade de fazer nada, só de ficar lá dentro, como uma pedra, inerte, fria, pontiaguda, pesada, resistente a qualquer tipo de esforço. E não tenho um sensor, um dispositivo que me avise que estou a caminho de dentro de mim mesmo. Quando me dou conta já estou dentro. No início ficava assustado, mas depois de tantas entradas e saídas, sei que é só uma questão de paciência. Aprendi a enxergar no escuro, e que os fantasmas mais assustadores são os oriundos da minha imaginação.

2.7.09

INDIGNAÇÃO

Poucas horas antes do Corinthians se sagrar campeão da copa do Brasil e garantir vaga na Libertadores do próximo ano, terminei de ler o livro “Indignação” do Philip Roth. O início do livro, assim como o início desse post começa falando de uma coisa para falar de outra, nos leva a crer que o romance será recheado de informações sobre a guerra da Coréia. Não deixa de falar, mas da seqüência do primeiro parágrafo até o último capítulo, fala sobre a curta e intensa vida do personagem que morreu durante a guerra. Roth é hoje um dos meus autores preferidos. Porque sabe contar uma história com competência rara no universo dos escritores vivos. Não gosto de ler romances cujos temas sejam política ou guerra, mas quando sou conduzido a esses dois temas através dos personagens, da vida intima e dos sentimentos deles, então a leitura se torna um prazer. Mal acabo de ler um livro dele e já fico ansioso pelo próximo. Gosto da fluidez, e da injeção de energia que as pequenas histórias inseridas dentro da história que ele quer contar dão aos seus romances. Vida longa para ele.

Voltando ao jogo do Corinthians. Meia hora antes do início, o sinal da minha tv a cabo deixou de funcionar. Minha frustração foi tamanha quando ouvi a moça do outro lado da linha me dizer que estavam tentando resolver o problema e que a previsão para normalizar o sinal levaria pelo menos mais cinco horas, que num momento de desespero por não poder ver o meu time se classificar para a Libertadores, perdi a compostura e mandei ela enfiar o número do protocolo onde ela bem entendesse. Fica assim confirmada a conhecida crença popular que sempre ouvi e nunca acreditei que pudesse ter sua veracidade confirmada na minha pessoa: o ser humano pode mostrar seu lado mais irracional quando o assunto é política, religião ou futebol.