23.1.11

PARA ELE EU NÃO TIRARIA APENAS O CHAPÉU

Vou ser obrigado a falar de Richard Strauss. Com o maior prazer, porque é um dos meus compositores preferidos. Por favor, Richard Strauss. Parto do pressuposto de que meus leitores sabem que não é o Strauss das valsas, é o Strauss de “Salomé”, de “A mulher sem sombra”, de “Cavaleiro das Rosas”, de Elektra, nada a ver com Viena, nada a ver com a família Strauss e todos os seus Johann e Josefs austríacos rodopiando junto com a Sissi. Então vamos a Salle Pleyel hoje às 4 da tarde. No programa primeiro ato, Salomé (apenas o trecho da dança dos sete véus) e logo em seguida “Die vier letzte lieder”, as quatro últimas canções que ele compôs, depois da pausa “Uma vida de herói”. Descobri por acaso. Hoje no final da manhã quando começava a entrar naquele estado pré-depressivo que costumo ter aos domingos e fico meio anestesiado, pensando em círculos obsessivamente sobre o tema atual da minha vida. Pode ser o que for, pensarei em círculos e obsessivamente. A salvação foi ter começado a fuçar o que poderia fazer no período da tarde, numa tentativa de me ajudar a me salvar de mim mesmo.Caí no site da Salle Pleyel e li que hoje Strauss estaria no programa. Liguei. O mocinho gentil/frio/frio/gentil me disse que os ingressos estavam esgotados. Não faça isso comigo, porque é aí que eu começo a querer. Principalmente nesses dias de cão, em que sou de uma aridez desértica. Não diga não para mim. Não me negue água. Mas ele disse. Não. E eu fui para lá as 14:00 porque queria a todo custo ouvir as quatro canções para acabar de me acabar. Cheguei lá e havia uma pequena fila com quatro pessoas que esperavam pelo mesmo que eu, isto é, que alguém desistisse de última hora para que eles pudessem entrar. Um senhor e três senhorinhas. Deu três horas, a fila já saía do hall de entrada e invadia a calçada. Depois das três e quinze eu comecei a pensar que a coisa não ia dar certo. Até que através dos vidros da Salle Pleyel vi um senhor estacionar o seu carro do lado de fora e saltar dele com dois bilhetes na mão com cara de quem procurava compradores. Sai imediatamente da fila e o abordei ainda na calçada. Sim ele queria vender e acreditem, por apenas 10 euros, lugar privilegiado, balcão, fila c. Comprei os dois, chamei o senhor que estava na fila e vendi o outro para ele. Estava com bode da velhinha que num momento de distração se enfiou na minha frente e tomou o meu lugar na fila com a maior cara de pau. Aliás, cara de pau é o que não falta por aqui, mas vamos deixar isso para outro dia. Entrei, o concerto começou, eu fechei os olhos e só abri quando ouvi os aplausos.

Strauss compôs essas canções pouco antes de morrer. Apenas alguns meses antes. As três primeiras receberam os poemas de Hermann Hesse e a última “Abendrot”, um poema de Joseph von Eichendorff. Strauss com já 85 anos, exilado na Suíssa, fez necessariamente uma viagem dentro de si mesmo, uma progressão temporal senão não teria sido possível compor o que ele compôs. Quanta riqueza de sons e acordes que te levam para um outro lugar enquanto ouvinte. Durante a audição sou um monte de carne e osso e emoção. Não raciocino. Não penso em nada. Apenas sinto. Algo que deveria fazer mais e mais. A natureza completa está lá dentro, o homem, o amor, o tempo que passou e não pode ser resgatado, o sol que se põe lentamente, como nossas vidas seguem rumo ao fim. Por mim hoje o mundo poderia ter acabado. Acho difícil reproduzir tanta beleza. Sem ser óbvio, sem ser apelativo. E a voz da soprano polonesa Iwona Sobotka (eu não a conhecia) não me decepcionou. Tenho algumas gravações dessas canções, Sutherland, Jessie Norman, até Lucia Popp que, apesar da voz considerada “menor” que a das outras duas, está perfeita.

Voltei a pé para casa. Oui, à pied. Do final da Faubourg Saint Honoré até aqui em casa no Marais. Não sei quantos quilômetros, mas é uma caminhada e tanto. A cidade te abraça e fala venha, caminhe, ande, dane-se o frio, dane-se a distância. É isso uma das coisas que mais me atrai nessa cidade. O desenho dela foi feito sob medida para cada um de nós. Avenidas, ruas e calçadas, de cada uma delas você ainda tem o direito de apreciar o céu. Graças a Haussmann. Poucas cidades no mundo te oferecem o que Paris oferece nesse sentido. A cidade e o cidadão em perfeita sintonia. Cansou, entre num café. Descansou, saia e continue a caminhar. Dessa vez Strauss veio comigo. Na cabeça: “wir sind durch not und freude gegangen, hand in hand”- caminhamos na tristeza e na alegria, de mãos dadas.

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