26.2.11

ROLINHO DE PRIMAVERA

Dois copos de cerveja quase vazios, um único rolinho de primavera sobre uma folha de alface murcha e uma janela com vista para a Place d’Italie. Mais adiante um prédio recém incendiado e abandonado. Alguns minutos antes ele havia comentado que a cidade em alguns pontos parecia mais abandonada que em outros bairros. Sim, ela respondeu quase que sem prestar atenção ao que ele acabara de dizer. Os dois haviam atravessado a cidade para chegar naquele lugar. O bairro chinês de Paris. Um mundo à parte.
- Você disse alguma coisa?
- Eu disse que parece que estamos vivendo num mundo à parte.
- Não entendo o que quer dizer com isso.
- Que gosto da idéia.
- Que idéia?
- De um mundo à parte.
Era isso. Uma questão de gostar e não gostar. Só isso. O resto, todo o resto do mundo podia explodir e desintegrar que ele não estava nem aí. O prédio incendiado, as manchas das fumaças, as paredes queimadas, o lixo nas ruas e os milhares de rostos dessa gente de aparência diferente que parecia muito bem integrada no mundo a parte reservado para eles. Um dia antes, quando faziam compras próximo a Porte Saint Denis, ele lhe chamou a atenção sobre os cheiros de temperos árabes e indianos que lhes penetravam as narinas.
- Você está sentindo?
- O que?
- O aroma das épiceries? Minha mãe só aceitava empregados de origem árabe. Ela dizia que essas mulheres eram muito mais limpas e organizadas que todas as outras. Gostava do silêncio que elas traziam consigo para dentro de nossa casa.
- Mas sua mãe não era judia?
- Foi. De origem. Faz tempo. Quando sua família ainda não havia atravessado a fronteira da Espanha. No século retrasado. Tanto que nem a circuncisão me fizeram.
- Eu sei.
- Eu sei que você sabe, mas adoro falar de sexo com você.
- Do seu sexo, você quer dizer...
- E do seu.
- Pare.
- Por que?
- Vamos fazer as compras e voltar para casa.
- Eu adoro o cheiro do teu sexo.
- Pare.
- Adoro tocá-lo e beijá-lo.
- ............
- É como se eu estivesse num mundo a parte, só meu e teu, nas horas em que estamos fazendo amor eu me esqueço de tudo, uma espécie de abra-te sésamo, vou para algum outro lugar, sei lá, só sei que je t’aime, você sabe disso.
Um mundo à parte. Era isso. A capacidade de compartimentar para não ter que unificar. Manter separado, como os temperos dos armazéns árabes que haviam visitado no dia anterior ou a pele crocante do pato laqueado que a garçonete chinesa acabava de trazer.
- Adoro quando eles servem a pele separada do pato.
- O que?
- No que você está pensando? Por que está tão pensativa?
- Imaginei que eles serviriam tudo junto num mesmo prato, pele, carne, o macarrão frito com os legumes...
- Ah, mas é tão bom assim.
- Não.
- Não o que?
- Esqueça. Coma enquanto a pele está quente e crocante, depois elas vão virar gomas.
- E você? Não vai se servir?
- Não. Vou esperar o prato principal.
Enquanto ele se concentrava para enrolar a pele crocante nas pequenas panquecas e começava a saboreá-las, ela se serviu do último rolinho de primavera. Era isso. Uma questão de gostar e não gostar. Só isso. O prédio incendiado e todo o resto, o lixo nas ruas, os rostos estranhos, no fundo tudo isso era uma única coisa. Fazia parte de um todo. Talvez ela estivesse ficando louca. Foi o que pensou quando mergulhou o rolinho de primavera na cumbuquinha de molho dele.
- Por que na minha cumbuquinha?
- Porque não?
- Mas você tem a sua logo na frente do seu prato! É muito mais complicado mergulhar na minha! Além disso vai fazer uma sujeira danada.
- Je m’en fous!!!' *
- Pare com isso.
- Não. Adoro enfiar o rolinho de primavera no seu potinho.
- Você é louca! Completamente louca!


* expressão usada com frequência pelos franceses, pode ser traduzida como não estou nem aí, tanto faz, pouco me importa.

25.2.11

MAIS VARIEDADES

Lembro-me que quando cheguei na Áustria no final da década de 80 precisei de algum tempo para realmente entender o humor austríaco (me surpreendo com a velocidade do tempo e décadas que me separam de alguns eventos importantes da minha vida). Mas o que queria dizer é que o humor é um dos últimos obstáculos a ser superado para nos sentirmos realmente integrados a uma nova cultura. O humor dos franceses, muitas vezes me surpreende pela falta de delicadeza. Não que eu considere o humor dos brasileiros mais delicado que o dos franceses, brasileiros metidos a engraçados quando querem se mostrar simpáticos não são exceções nem maioria eles existem em um número muito maior do que voce pode imaginar, mas de alguma forma o humor francês as vezes beira a um elefante dentro de uma loja de porcelanas. Falta tato? Não sei. Mas em alguns casos ainda é um obstáculo.

Quarta passada assisti a Orquestra de Paris sob a direção do maestro espanhol Josep Pons na Salle Pleyel. No programa Béla Bartok e Ravel. De Bartok o pianista Boris Berezowsky acompanhou a orquestra no Concerto n. 2 para piano. Perfeito numa peça difícil de ser tocada. Depois do intervalo Shéhérazade do Ravel foi “interpretada” por uma mezzo soprano francesa. Mulher esquisitíssima, com uma postura de corpo estranha e com a voz ainda muito pouco madura. Como a imagem me constrangia, resolvi acompanhar a letra enquanto ela cantava. E a coisa despencou. Porque os textos que acompanham essas três canções são bem fraquinhos e tolos. Não faça jamais o mesmo. A não ser que as canções sejam de Richard Strauss, com ele, além da dramaticidade musical rica você vai encontrar qualidade na poesia. Cada vez mais reconheço a qualidade musical incomparável desse sujeito.

O piso da Salle Pleyel fotografado através do "buraco" do restaurante da sala. Antes da restauração da sala no lugar do restaurante funcionava uma academia de ginástica. Hoje o teatro é impecável, a arquitetura e a decoração foram totalmente recuperadas.


A coisa está preta na África do Norte (será que ainda posso usar esse trocadilho?) Um dos meus amigos na universidade é argelino e estava lá há quinze dias. Meu medo de que islamitas radicais possam reverter à situação a favor deles é compartilhada por muita gente. Mas que vivemos um momento interessante da história, isso não podemos negar. E ver a imagem do Gaddafi num mini carrinho sob um guarda chuva aberto fazendo ameaças foi como ver um filme do Didi mocó. Toda esses ditadores pré históricos e mais Berlusconi e Chaves são figuras que me constrangem quando os vejo. São caricatos e cafonas, parecem saídos de algum clip dos anos 80 ou de uma festa em algum castelo ou ilha de caras. O problema é que eles fazem um mal danado. Se fossem apenas bregas e vivessem suas vidas tudo bem, mas eles matam, roubam e alimentam a ignorância e a pobreza dos povos que eles oprimem. Nada mais previsível que um fim trágico para eles. Não tenho pena. A pátria livre ou a morte.

21.2.11

VARIEDADES

As ruas de Paris estão cheia de músicos amadores e profissionais que ganham suas vidas alegrando os pedestres. Tem de tudo, chineses e suas guitarras, orientais com tambores, grupo de brasileiros batucando, mas um grupo em especial me faz parar para ouvi-lo toda vez que passo por ele. Essa banda de americanos de New Orleans se apresenta quase todos os domingos na Rue Francs des Bourgeois no coração do Marais. Mesmo que ela não esteja no meu caminho, eu faço questão de passar por ela para ver se encontro com essa banda. Ela é composta de músicos experientes, quatro senhores tocam um jazz de primeiríssima qualidade. O grupo se intitula “Riverboat Shufflers e eu descobri que Madeleine Peyroux por exemplo começou sua carreira sendo acompanhada por eles. O repertório é top top top, Louis Armstrong, Sidney Bechet, Jelly Morton e etc… Você não consegue ir embora. Descobri que eles se apresentam por exemplo no Paris Jazz Club e cobram 17 euros pelo ingresso, é um privilégio poder escutá-los na rua gratuitamente ou por apenas alguns euros que as pessoas vão jogando na caixa do saxofone deles.




Vou tentar sempre que possível tirar algumas fotos com o meu celular para mostrar por onde ando em Paris. Sem nenhuma obrigação ou finalidade. As fotos não terão uma qualidade profissional, mas sim valor emocional. Quando tiver vontade farei isso e postarei para dividir com vocês. Começo hoje.


Fim de tarde no 16éme, entre o Boulevard Lannes e o Boulevard Suchet

Lateral da Ile de Saint Louis, caminho de casa quando volto a pé da universidade

Notre Dame vista de costas


20.2.11

INCÊNDIOS

Um drama familiar com fundo histórico de primeiríssima qualidade é o que você vai ver se for assistir ao filme do canadense Denis Villeneuve chamado “Incendies”. Para mim um dos melhores filmes que vi nos últimos meses. Tudo começa com a morte da mãe de um casal de gêmeos que deixa um testamento e que na abertura deste recebem a incumbência de entregar dois envelopes, um para o pai que acreditavam estar morto e outro ao irmão que desconheciam a existência. Roteiro perfeito, essa revelação feita nos primeiros minutos do filme vai ser o motor de todo o filme. O filme me conquistou logo no início, quando tendo ao fundo com trilha sonora música do grupo Radiohead crianças tem seus cabelos raspados e repentinamente um corte nos leva a um vilarejo libanês (o nome do país do oriente médio nunca é mencionado, mas o cenário histórico apresentado no filme se parece ao do Líbano), algo criticado por aqui sob a acusação de abuso de senso estético. Um argumento bobo, típico de críticos que não tem o que falar. Essa primeira imagem é uma das chaves do filme, nada mais justificável que colocá-la em evidência. Um quebra cabeça se forma e Jeanne, a filha, é a primeira a tentar solucioná-lo rastreando os passos da mãe em sua terra natal. Descobrimos junto com ela o passado de Nawal e como ela foi parar no Canadá. Em seguida o irmão que se recusa a entrar em contato com o passado, é obrigado a ir ao encontro da irmã para juntos encontrarem as respostas dessa fórmula quase matemática mantida em segredo pela mãe. Não percam.


Quando sai do cinema Marco, o amigo italiano de quem já falei num outro post, me enviou um texto me convidando a ir ao seu estúdio tomar alguma coisa. Cheguei lá com a coisa já andando. Fui apresentado a três garotas polonesas, um francês tímido, uma garota de Burkina Faso, um espanhol, Marco tocava violão e cantava uma de suas composições, uma história louca de um sujeito que conhece uma garota via internet e descobre que ela é horrível ao receber sua foto. Tudo isto num estúdio de no máximo 25 metros quadrados. O Líbano ainda estava impregnado em meu espírito e de repente me vi caindo dentro de uma salada multicolorida do tipo Benneton. Tomei alguns copos de vodka polonesa que as garotas me serviram e relaxei. Ninguém gostava do final da música de Marco e confesso que eu também não. As vodcas começaram a me inspirar e eu dei a solução para fechar essa história musicada. O refrão da música teria que ser “ne me link pas” numa alusão ao “ne me quite pas” da música que todo mundo conhece de autoria de Jacques Brel. E alteramos o final também, a garota não enviaria foto nenhuma, ela poderia fazer tudo, menos acabar com a fantasia do sujeito. Nada de imagens, nada de fotos, nada de real, tudo pela manutenção da ficção.

18.2.11

ILUSTRADA

Uma das matérias obrigatórias do curso do segundo semestre na Sorbonne chama-se Crítica Freudiana. Depois de passar os primeiros seis meses estudando a Escola de Geneva e seus principais teóricos, quando o professor começou a falar sobre Freud e suas teorias sobre consciente e inconsciente, libido, ego, super ego, sexualidade infantil, compulsão e etc... a primeira impressão que deu, é que tudo seria mais fácil de compreender. Porque esses temas estão presentes em qualquer conversa de botequim. Todo mundo adora usá-los para justificar ou explicar o comportamento de algum conhecido ou de si mesmo. Esses nomes dados por Freud para explicar alguns dos pequenos desconfortos de alma viraram uma marca, como coca-cola, bic ou gilete, mas tente entender e depois explicá-los, você vai ver que a coisa é mais difícil do que parece.

O professor, um tarado por Freud, menosprezou Jung e Lacan quase que apertando o nariz para não sentir o cheiro deles. Falou dos dois com desdém. Para ele Freud é tudo, e tudo o que vem depois, com exceção a Melanie Klein, é produto de consumo das sociedades modernas. Na minha opinião esse tipo de intelectual indisposto e fechado pode prestar um desserviço enorme para as dezenas de estudantes presentes no seu curso. Por que não falar de outras correntes de pensamento? Mesmo que de passagem, citá-las ou confrontá-las serviria até como auxilio para compreender a obra do próprio Freud. Falta flexibilidade e imparcialidade a eles. Mas é assim que a coisa funciona. Se quiser saber alguma coisa sobre outros psicanalistas, você tem que fazer sua própria pesquisa. O problema é que a maioria dos estudantes não tem nem 21 anos, e a opinião de um professor com toda sua embalagem e laço como ele se apresenta, conta muito.

Ontem no vagão do metrô em que eu me encontrava quando estava a caminho da casa de um amigo, três pessoas falavam ao celular ao mesmo tempo. Querendo ou não você é obrigado a participar da vida dessas pessoas, uma verdadeira invasão da vida delas na sua. Fiquei sabendo que um dos rapazes havia terminado o namoro enquanto ele contava os detalhes para seu amigo que o ouvia do outro lado, ouvi os conselhos que a moça advogada deu para seu cliente, e uma discussão entre uma moça negra que acusava o seu interlocutor do outro lado da linha de tê-la ofendido com insinuações racistas. Os três falavam como se estivessem em suas casas ou escritórios. Isso pode servir de material para literatura, filme e teatro, mas me enche o saco. Tenho vontade de pedir para eles se retirarem do vagão ou para falarem mais baixo, mas me falta coragem. Ontem quando eu começava a me condenar pela covardia, um outro louco mais corajoso do que eu se levantou e começou a aplaudir os sujeitos. Ele parou na frente de cada um deles e os aplaudiu. Estávamos todos espremidos naquela parte reservada para quem entra no vagão e não encontra lugar para se sentar. Assisti a cena um pouco assustado, achei que era algum tipo de publicidade, mas depois quando vi que era uma iniciativa de alguém que havia se sentido agredido como eu, senti vontade de aplaudi-lo por sua coragem. Ninguém interveio. Um por um eles interromperam a conversa, desligaram os celulares bufando, mas constrangidíssimos com os olhares dos presentes. Têm muitos loucos por aqui, alguns são adoráveis.

O Le Monde da semana passada trouxe uma entrevista com Haruki Murakami, o escritor japonês que eu já comentei por aqui e que eu adoro ler. Você pode ler alguns de seus livros no Brasil, se eu não me engano o sêlo Alfaguara é titular de seus direitos. Na entrevista ele comenta sobre seu novo romance chamado “1Q84” , o q em japonês se pronuncia “kyu” que significa 9 e assim o título é exatamente o mesmo de George Orwel, 1984. A literatura de Murakami me toca muito por causa de sua universalidade. Mesmo que fatos utilizados ou o tema de seus romances sejam regionais o que a gente registra enquanto leitor é o sentimento humano e ele independe da língua que falamos ou do país em que moramos. Murakami diz não acreditar ser essencial jogar luz sobre as diferenças culturais. Sem dúvida a maneira de pensar ou de olhar uma paisagem está ligada a vivência cultural do individuo, mas a mensagem percebida é o que importa. Pela densidade de seus romances e também de temas que se desenvolvem paralelamente, eu imaginava que ele fazia planos e esqueminhas para escrever seus livros, do tipo número de personagens, seus perfis e bla bla. Não. Ele diz que começa a escrever as cegas e que não tem a menor idéia do que vai escrever quando inicia um novo romance. Eu me acreditava amador por escrever exatamente dessa maneira. Mas percebo que muitos escritores têm a mesma técnica, isto é, nenhuma, como eu.

“A ficção pode ajudar a revelar uma parcela da verdade.”
Haruki Murakami.

13.2.11

DIFERENTE

Pode ser diferente. Essa foi a frase que entrou na minha cabeça hoje no decorrer do dia. Alguém a colocou suavemente dentro dela sem que eu me desse conta e eu a compreendi claramente. Você deve estar se perguntando do que eu estou falando, e eu vou te responder da seguinte forma: falo de uma certeza que não é palpável mas intuitiva, e porque as coisas mais importantes que aprendi durante a minha vida não aprendi por meio da razão, mas desse jeito perceptivo, recebi esse recado e o aceitei. Então respirei fundo. Tomei um banho para ir encontrar um amigo e ir ao cinema. Antes de sair liguei para minha amiga Lêda aí no Brasil que de alguma forma, sem saber que eu já havia escutado essa frase me repetiu a mesma coisa em outras palavras com sua voz doce e acolhedora. Desliguei e mais uma vez respirei fundo. Dessa vez mandei para dentro de mim essa certeza, para que todos os órgãos do meu corpo pudessem também registrá-la. Pronto. Está dentro de mim e assim será. Diferente.

Fui ver “O discurso do Rei”. Gostei e não gostei. Gostei de quase todo o elenco de atores, menos do sujeito que fez o Churchil, ah por favor, o que é aquele ser caricato e rígido? O filme tem algo de didático e indutivo que me incomoda bastante. Mas não o acho monótono nem chato, apesar de acreditar que teria sido possível contar a mesma história de um jeito menos caricatural. Gosto bastante do ator Colin Firth na pele do rei, ele já foi muito bem no “The single man” e contribui bastante para a credibilidade desse filme. Vale a sessão e o ingresso, mas não vale tanta indicação para Oscar (se isso ainda tem alguma importância para qualquer ser com um mínimo de senso crítico).

Ontem fui a um bar em Pigalle encontrar um amigo italiano que é professor de lingüística na universidade da Sardenha e que está de passagem por Paris. Marcamos de nos encontrar num bar bastante diferente de tudo o que já vi por aqui, o “Marluce et Lapin” que tem no fundo uma sala com uma cama onde as pessoas sentam e deitam enquanto conversam e bebem e onde a bebida custa bem menos do que em outro bares. Além de nós dois haviam mais três outras pessoas que formavam o grupo. O papo foi dos mais ecléticos, Marco é especialista em linguagem das canções da idade média, e um sujeito bem bacana para conversar, de humor refinado e nada formal, que ama um bom rock da pesada e toca guitarra num grupo chamado blue velvet. Em algum momento a conversa foi parar em Céline, escritor não apenas conhecido pela qualidade dos seus textos, mas também por suas idéias anti-semitas, além de ter sido acusado por Sartre de ter colaborado com os nazistas. Alguém no grupo se saiu com a seguinte idiotice: antes de julgar Céline deveriam ter julgado Gide pelos seus atos sodomitas e pedofilia. Na hora pensei “será que já bebi demais e o cara falou uma coisa e eu entendi outra?” Mas não. Ele havia falado essa bobagem expondo seu caráter preconceituoso e reacionário. Marco olhou para mim que olhei para ele, vi através dos meus olhos embaçados de raiva que o sangue do italiano estava na garganta e que o sujeito não teria chance. O que uma coisa tem a ver com a outra?, pensamos juntos enquanto nos olhávamos. Para ser breve: em poucos minutos e duas frases ele foi nocauteado. Oh Dio mio, vaffanculo!

11.2.11

LOGO MAIS

Ainda falta muito tempo até a primavera, mas hoje ela pareceu querer dizer “tô chegando, guenta aí que eu logo logo chego para iluminar a cidade”. A temperatura subiu, alcançou quase 15 graus à tarde, o céu estava azul, o sol deliciosamente agradável. Cafés lotados, gente chupando sorvete nas ruas e um número surpreendente de sorrisos desfilando pelas calçadas. No meio da tarde amigos me ligaram, fui até a Île de Saint Louis me encontrar com eles num Café, antes visitamos as barracas dos livreiros que ficam próximas ao instituto do mundo árabe. O mundo parecia mais leve, as pessoas mais falantes e mais dispostas, sei lá, alguma coisa estava no ar. Depois fiquei sabendo sobre a saída pela porta de serviço do Mubarak, um ditador maluco a menos, tínhamos que comemorar. Agora espero muito que os egípcios saibam conduzir a coisa com prudência e delicadeza para não acabar caindo nas mãos de outros ditadores ou malucos religiosos. Por enquanto parabéns para essa multidão que soube se aproveitar do momento e fazer valer a sua vontade. Aqui os jornais dizem que o povo nas ruas de Cairo gritava muito mais por comida e uma vida digna do que por liberdade política. Acredito. Quando a fome junta com a vontade de comer não tem ditador que consegue se segurar no poder. Conheço o Egito e quando estive em Cairo, mesmo sendo brasileiro e conhecendo a pobreza, me lembro de ter ficado impressionado com a miséria da maioria daquele povo.

Eu e Anne Flo, minha querida amiga, temperamental, humor afiadíssimo fazendo charminho porque não queria ser fotografada.



Uma pergunta retorna sempre na minha cabeça: e Cuba? Quanto tempo ainda?

Só para lembrar voces, meu novo romance sai agora no primeiro semestre. Ele já está passando pela última revisão, feita não mais por mim, mas por alguém que não conhece o texto e tem olhos preparados para caçar possíveis incorreções. "Dissonantes" é o nome dele e logo logo estará nas livrarias. Eu voltarei a falar dele.

10.2.11

PAPO CABEÇA

Já faz algum tempo que eu quero falar sobre Fauré. Antes de vir para cá ele fazia parte de um leque de compositores franceses que eu gostava, mas não tinha o hábito de escutá-lo. Gabriel Fauré é uma redescoberta de sentimentos para mim. Porque de alguma maneira sua música me leva para lugares que eu já havia estado emocionalmente. Todavia, os atropelos da vida de alguma forma foram me afastando dessas paisagens. Um amigo me chamou a atenção para a simplicidade disfarçada que a música de Fauré nos transmite. Eu a sinto contida e ampla ao mesmo tempo, generosa dentro das regras que o compositor lhe impôs, um verdadeiro diálogo entre desejos e quereres, possibilidades e impossibilidades. Seu réquiem, por exemplo, para soprano e barítono, com coro, órgão e orquestra em ré menor, opus 48, quando eu o escutei pela primeira vez a primeira coisa que me veio à cabeça foi pensar na morte como alívio e leveza, um desencarne menos complicado. Todos os outros réquiens que conheço vêm acompanhados de milhões de toneladas de pesares e dores. O de Fauré passa pelo impressionismo, comunga com a espiritualidade de uma maneira menos tensa. Se você quiser uma dica, eu recomendo um cd de 1963, gravado na Madeleine aqui em Paris, com ninguém menos que Fischer-Diskau e Victoria de Los Angeles. Ontem tive a oportunidade de ouvir esse réquiem na Salle Pleyel, com o barítono Matthias Goerne que eu conhecia cantando óperas e ainda não o havia visto apresentando uma obra sacra. Deu conta do recado, mas eu quero ouvi-lo cantando esse réquiem daqui uns 15 anos, quando ele tiver uns sessenta anos e sua voz tiver ganhado uma parede revestida de veludo. O maestro Paavo Järvi (regente fixo da sala) optou por uma interpretação um pouco mais melodiosa do réquiem, nada que conseguisse tirar a beleza dele, mas ainda prefiro a gravação de 63 com o maestro belga André Cluytens, mais cerimoniosa e menos levinha.

Já que o papo é cabeça, então aproveito para contar que revi “Da vida das marionetes” do Bergman outro dia. O mesmo bom filme de quando o vi pela primeira vez. Amor, loucura, sexo, desejo, traição, um caldeirão psicanalítico que cozinha durante mais de cem minutos e a gente nem percebe o tempo passar.

O réquiem pede um bom vinho tinto, encoste o corpo na poltrona e boa viagem.
Já o Bergman, qualquer um deles, uma boa dose dupla de whisky para botar a cabeça em ordem em seguida.

6.2.11

O BLOG DO LUCA

Uma das primeiras pessoas que conheci logo que pus os pés na Sorbonne foi um ragazzo falante. com pinta de anarquista. Como que por uma seleção natural dentro daquela sala de aula repleta de estudantes, nós escolhemos o mesmo canto da classe para sentar. O diálogo foi rápido e a bem querência cresceu na mesma velocidade. Luca tem a metade da minha idade, mas de alguma forma eu sinto que ele tem o dobro de generosidade no coração. Além disso, ele tem uma imensa energia que mesmo nos momentos em que está em baixa continua irradiando vontades. Tornou-se um dos meus melhores amigos aqui. As vezes um bicho selvagem, com vontade de destruir o que está estruturado apenas pelo prazer de ter participado do quebra-quebra, mas na maior parte do tempo um sujeito em busca de paz. Luca resolveu ter seu próprio blog. Nele ele fala um pouco do que sente e também publica suas poesias. Eu linkei seu http://phoesis.blogspot.com/ na minha lista de blogs amigos logo abaixo do lado direito da página para que vocês também possam conhecê-lo. Bonne chance et auguri!

5.2.11

LOOKING FOR

Fui no final da tarde ver um filme espanhol chamado “Tambien la lluvia”, da diretora Iciar Bollain. O filme tem como protagonistas Gael Garcia e Luis Tosar e conta a história de um diretor e de seu produtor (os dois atores respectivamente) que vão para Bolívia filmar a chegada dos espanhóis naquela terra há quinhentos anos. Um melange de Missões (lembra?) com Robert De Niro (que tem cenas inesquecíveis) e Babel. Quase bem feito, mas guarda um ranço de filme de esquerda engajada fazendo discursos onde de um lado estão os homens bons e do outro os ruins, os explorados e os exploradores, onde contexto histórico é ignorado porque o que conta é a intenção. E para contribuir no final o roteirista (o britânico Paul Laverty) esqueceu de que ele não havia contado para a gente onde o mocinho estava e ele aparece do nada para agradecer a ajuda dada pelo vilão. Não adianta, a história por mais fictícia que seja tem que ser crível e não pode nos levar a pensar coisas do tipo, “mas como ele sabia que o sujeito estaria ali naquela hora?” Então fui obrigado a fazer a pergunta “o que é isso companheiro, além de totalmente bom e justo e cheio de ideais você também é vidente?” E o filme acabou. Não saí totalmente insatisfeito, mas poderia ter sido melhor.

Fui com Collete, uma amiga jornalista americana que estuda comigo e em seguida nos juntamos a mais dois amigos num restaurante popular bon marche avec une bonne cuisine lá no quartier Nation. Nesse bairro testemunha de milhares de cabeças que rolaram no decorrer da revolução francesa, hoje pode-se comer muito bem. Mesmo com a mesa reservada tivemos que esperar uns vinte minutos por ela. Na segunda garrafa de vinho o assunto desceu a ladeira e empacou em relacionamentos. Ah mas eu adoro falar sobre isso e posso passar a noite fazendo análises profundas. O sonho do grande amor redentor que virá para eliminar todas as nossas infelicidades está presente em 99,9% das pessoas que conheço, o 0,1% que ficou de fora fica por conta dos que se esforçam para me fazer acreditar que não estão nem aí para isso. Lógico que esses 99,9% fazem um discurso super-consciente de que sabem que não é assim, que a coisa é mais complexa, mas no fundo, o que eles esperam é encontrar alguém que os tire da lama onde se sentem atolados. Eu me incluo nesses 99,9% de sonhadores. E não venha me dizer o contrário, que eu não estou a fim de acreditar.

Falando nisso, vi um dia desses um programa que falava de um site de relacionamentos que está fazendo sucesso há algum tempo aqui na França. O site é dirigido para o público rural solitário. Explico. Gente do campo, que por algum motivo está só, envelheceu solteiro/a ou enviuvou, que é trabalhador rural ou mesmo proprietário de pequenas fazendas e que não consegue encontrar um/a parceiro/a que queira dividir não só a cama mas também os afazeres do campo. Interessante. Não apenas os perfis, mas os tipos que aceitaram se expor e falar sobre seus desejos e insatisfações. Infelizmente eu não sei tirar leite de vaca nem tosar ovelha, mas posso afirmar que me senti tentado. Profiter (aproveitar-se de algo) é um dos verbos mais usados aqui nessa terra, o problema é que dentro da lista de solitários a gente não encontra o proprietário de um chateau com um belo vinhedo na Borgonha, a maioria dos solitários continua aqui em Paris contando bateau mouche no rio sena.

Paris tem características próprias no quesito solitários a procura de. Todo mundo procura, todo mundo se acha, mas todo mundo continua procurando mesmo assim.

4.2.11

MÁSCARAS


Na quarta feira depois de ouvir a 6a sinfonia de Chostakovitch na Pleyel peguei um ônibus para ir jantar na casa de um amigo. O ponto fica logo ao lado da sala de concertos e os freqüentadores dela se aglomeram a espera do ônibus e também para serem os primeiros a entrar e encontrar um assento livre. O ônibus nos levaria ao 16éme, bairro considerado um dos melhores para se morar logo antes do Bois de Boulogne, e a maiorida dos passageiros é composta por senhores e senhoras muito bem vestidos que perdem a compostura na briga por uma cadeirinha livre. É interessante observar o comportamento dessa gente que se considera muito chique e que acabou de sair de uma sala de concertos. Você supõe que eles saberiam ser gentis em qualquer situação, mas basta arranhar um pouco a pele de porcelana que cobre os seus rostos que o barro aparece. No meio do trajeto um rapaz negro com um rosto muito bonito e a cabeça raspada, vestindo um casaco de pele pesadíííííííííssimo juntou-se a nós no trajeto. Na primeira oportunidade ele se sentou e começou a se maquiar. Imaginei que aquele seria o caminho para o seu trabalho. O bois de boulogne é conhecido pelos rapazes que se prostituem e os travestis (dizem, na quase totalidade brasileiros) que lá fazem de seu corpo um instrumento de trabalho. Acompanhei a transformação do rapaz durante o tempo em que viajei com ele até o meu destino. Não consegui controlar minha curiosidade e desviar os olhos. A tranqüilidade e a técnica utilizada não eram páreo para a elegância de suas mãos ágeis com pincéis, baton e sei lá mais o que. Fui encantado por seus movimentos. Acho ainda que ele sentia um enorme prazer em perceber que estava sendo observado e se exibiu com maestria para todos os outros passageiros. Com a ajuda de um pequeno espelhinho, em minutos ele se transformou e ficou pronto para o expediente noturno. Desci do ônibus alguns pontos antes do bois de boulogne e não pude ver como ele ficou quando colocou a peruca que ele manteve equilibrada sobre as coxas enquanto se maquiava. Pena. Assisti-lo me levou de volta a alguns camarins de teatro que pude freqüentar quando fiz a documentação fotográfica teatral para o Centro Cultural de São Paulo. A mutação de uma persona para outra é fascinante e desde sempre me instigou. Sempre gostei de ver palhaços se pintarem e depois assumirem aquele papel bufo e ao mesmo tempo trágico. Outro dia vendo um documentário sobre Placido Domingo no papel de palhaço na ópera Il Pagliaci, me emocionei com a cena final em que ele se borra todo enquanto quanta sua tragédia e seu rosto se desfigura. Já em Veneza as máscaras me assustam. Alguma coisa naquelas máscaras congeladas me amedronta, tem algo de morte nos rostos duros, uma frieza forjada que me faz lembrar o tempo todo que por trás delas há outras máscaras.

1.2.11

EU NÃO POSSO TE DAR O QUE VOCE QUER , MOI NON PLUS

Eu não posso te dar o que você quer.
Eu não posso te amar como você me ama.
Eu não posso ser o que quero ser.
Eu não posso ser o que você quer que eu seja.
Eu não posso sentir o que sinto por você.
Eu não posso sentir o que você sente por mim.
Eu não posso te amar.
Eu não posso me amar.
Eu não posso te dar o que você ama.
Eu não posso amar o que você quer me dar.
Eu não posso sentir o que você é.
Eu não posso sentir o que sou.
Eu não posso ser.
Você não é.
Você não pode amar o que eu tenho para te dar
Você não pode receber o que eu tenho para te dar.
Você não pode me amar.
Você não pode sentir o que eu sinto por você.
Você não pode ser o que eu gostaria que você fosse.
Você não pode ser o que gostaria de ser.
Você não pode me amar como eu te amo.
Você não pode me dar o que quero.
Você não é o que eu quero.
Você não é.


Je ne peux pas t'aimer comme tu m'aimes.

Je ne peux pas être ce que je veux être.
Je ne peux pas être ce que tu veux que je sois.
Je ne peux pas sentir ce que tu ressens pour moi.
Je ne peux pas t'aimer.
Je ne peux pas te donner ce que t'aime.
Je ne peux pas te donner ce que tu veux
Je ne peux pas aimer ce que tu veux me donner.
Je ne peux pas ressentir ce que tu es.
Je ne peux pas ressentir ce que je suis.
Je ne peux pas être.
Tu n'es pas.
Tu ne peux pas aimer ce que je te donne.
Tu ne peux pas recevoir ce que je veux te donner.
Tu ne peux pas m'aimer.
Tu ne peux pas sentir ce que je ressens pour toi.
Tu ne peux pas être ce que je veux que tu sois.
Tu ne peux pas être ce que tu voudrais être.
Tu ne peux pas m'aimer comme je t'aime.
Tu ne peux pas me donner ce que je veux.
Tu n'es pas celui que je voudrais que tu sois.
Tu n'es pas.