26.2.11

ROLINHO DE PRIMAVERA

Dois copos de cerveja quase vazios, um único rolinho de primavera sobre uma folha de alface murcha e uma janela com vista para a Place d’Italie. Mais adiante um prédio recém incendiado e abandonado. Alguns minutos antes ele havia comentado que a cidade em alguns pontos parecia mais abandonada que em outros bairros. Sim, ela respondeu quase que sem prestar atenção ao que ele acabara de dizer. Os dois haviam atravessado a cidade para chegar naquele lugar. O bairro chinês de Paris. Um mundo à parte.
- Você disse alguma coisa?
- Eu disse que parece que estamos vivendo num mundo à parte.
- Não entendo o que quer dizer com isso.
- Que gosto da idéia.
- Que idéia?
- De um mundo à parte.
Era isso. Uma questão de gostar e não gostar. Só isso. O resto, todo o resto do mundo podia explodir e desintegrar que ele não estava nem aí. O prédio incendiado, as manchas das fumaças, as paredes queimadas, o lixo nas ruas e os milhares de rostos dessa gente de aparência diferente que parecia muito bem integrada no mundo a parte reservado para eles. Um dia antes, quando faziam compras próximo a Porte Saint Denis, ele lhe chamou a atenção sobre os cheiros de temperos árabes e indianos que lhes penetravam as narinas.
- Você está sentindo?
- O que?
- O aroma das épiceries? Minha mãe só aceitava empregados de origem árabe. Ela dizia que essas mulheres eram muito mais limpas e organizadas que todas as outras. Gostava do silêncio que elas traziam consigo para dentro de nossa casa.
- Mas sua mãe não era judia?
- Foi. De origem. Faz tempo. Quando sua família ainda não havia atravessado a fronteira da Espanha. No século retrasado. Tanto que nem a circuncisão me fizeram.
- Eu sei.
- Eu sei que você sabe, mas adoro falar de sexo com você.
- Do seu sexo, você quer dizer...
- E do seu.
- Pare.
- Por que?
- Vamos fazer as compras e voltar para casa.
- Eu adoro o cheiro do teu sexo.
- Pare.
- Adoro tocá-lo e beijá-lo.
- ............
- É como se eu estivesse num mundo a parte, só meu e teu, nas horas em que estamos fazendo amor eu me esqueço de tudo, uma espécie de abra-te sésamo, vou para algum outro lugar, sei lá, só sei que je t’aime, você sabe disso.
Um mundo à parte. Era isso. A capacidade de compartimentar para não ter que unificar. Manter separado, como os temperos dos armazéns árabes que haviam visitado no dia anterior ou a pele crocante do pato laqueado que a garçonete chinesa acabava de trazer.
- Adoro quando eles servem a pele separada do pato.
- O que?
- No que você está pensando? Por que está tão pensativa?
- Imaginei que eles serviriam tudo junto num mesmo prato, pele, carne, o macarrão frito com os legumes...
- Ah, mas é tão bom assim.
- Não.
- Não o que?
- Esqueça. Coma enquanto a pele está quente e crocante, depois elas vão virar gomas.
- E você? Não vai se servir?
- Não. Vou esperar o prato principal.
Enquanto ele se concentrava para enrolar a pele crocante nas pequenas panquecas e começava a saboreá-las, ela se serviu do último rolinho de primavera. Era isso. Uma questão de gostar e não gostar. Só isso. O prédio incendiado e todo o resto, o lixo nas ruas, os rostos estranhos, no fundo tudo isso era uma única coisa. Fazia parte de um todo. Talvez ela estivesse ficando louca. Foi o que pensou quando mergulhou o rolinho de primavera na cumbuquinha de molho dele.
- Por que na minha cumbuquinha?
- Porque não?
- Mas você tem a sua logo na frente do seu prato! É muito mais complicado mergulhar na minha! Além disso vai fazer uma sujeira danada.
- Je m’en fous!!!' *
- Pare com isso.
- Não. Adoro enfiar o rolinho de primavera no seu potinho.
- Você é louca! Completamente louca!


* expressão usada com frequência pelos franceses, pode ser traduzida como não estou nem aí, tanto faz, pouco me importa.

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei muito.Vero.