28.11.08

NA PONTA DOS DEDOS


Em Setembro quando fui ao Rio para o lançamento do “Contos Indiscretos”, ganhei de um amigo francês um DVD duplo sobre a trajetória vida/obra do pianista russo Slatoslav Richter. Quando penso na hipótese de reencarnação e outras vidas depois desta, penso que na próxima “encadernação” eu quero nascer pianista. Tenho fascínio pelo instrumento e pelo som do piano. Estudei piano quando criança, depois quando já adulto voltei a estudar e desisti quando percebi que não tenho o menor talento para a coisa. Até toco algumas peças, mas prefiro poupar os amigos e vizinhos e a mim mesmo do sofrimento. Tive a feliz oportunidade de assistir duas apresentações do Richter quando morava na Áustria. Numa delas ele exigiu que todo o teatro e também no palco as luzes fossem apagadas. Ficou apenas um pequeno foco de luz em cima da partitura. Ele defende a teoria que o público tem apenas que ouvir a música. Para ele, essas nossas vontades de ver as mãos do pianista ou o rosto retorcido pelas emoções, não são importantes. Os filmes mostram desde seus primeiros passos em Odessa até o ano de sua morte em 1998. Imagine quanta riqueza de histórias que um homem que nasceu em 1915, filho de pai de origem alemã e mãe russa, que vivenciou a primeira e a segunda guerra, a era Stalin, regime comunista na União Soviética tem para contar. O filme todo é costurado por suas opiniões, ele aparece já bem velho, falando russo sua língua natural, conversando com o entrevistador (que a gente não vê), vestido de maneira simples, magro, de barba por fazer. Ele fala de sua origem, família, preferências musicais, outros pianistas, tem gravações históricas dele tocando com o violinista Oistrach e o cellista Rostropovich, ou acompanhando o barítono Fischer Diskau. Mas o que me impressionou muito foi essa dureza que ele tinha na alma e que se traduzia no rosto quase sempre rígido. Homem de emoções controladas, muito exigente consigo mesmo. Quando se apresentou nos EUA pela primeira vez e foi exaltado pelos críticos e imprensa, ele disse que naquelas apresentações ele tocou muito mal e que não aceitaria a opinião da crítica americana porque eles não entendiam nada. Até o final da vida o que fez foi exigir de si próprio a proximidade do que imaginava ser a perfeição. Dizia por exemplo que não havia encontrado o “ponto” certo para tocar a música de Mozart. Fiquei pensando sobre isso, e acho que sua rigidez batia de frente com a leveza do compositor austríaco. Leveza essa que na prática está longe de ser verdadeira se você se propuser a interpretá-lo. Tocou em muitos enterros e cerimônias fúnebres, como por exemplo no funeral do Stálin (com quem ele não simpatizava). O que me fascinou na sua personalidade sisuda foi perceber que ele construiu sua carreira respeitando os limites éticos e morais que ele havia imposto a si mesmo. Essa secura e precisão contidas em sua maneira de conduzir a vida podem ser percebidas nas suas gravações, e eu acho que isso servia apenas para ele manter sob controle o universo de emoções conflituosas que ele tinha dentro dele. E que graças a Deus vazaram através das pontas dos seus dedos.

Nenhum comentário: